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O primeiro dia internacional das mulheres após a decretação da pandemia e a imprescindibilidade de políticas públicas

A necessidade de formulação de políticas públicas com a finalidade de redução do impacto da pandemia na vida das mulheres vem sendo objeto de intensa discussão, inclusive no âmbito internacional.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Atualizado em 5 de março de 2021 14:19

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

 

Após quase um ano da decretação pela Organização Mundial da Saúde - OMS - da pandemia da Covid-19, divulgada formalmente no dia 11 de março de 2020, diversos países começaram a analisar o impacto desse fenômeno na vida das mulheres. A propósito da proximidade do dia 8 de março de 2021, primeiro dia internacional das mulheres após a decretação da pandemia, reputa-se importante alertar para a importância da elaboração de políticas públicas dirigidas a esse grupo, não raro sobrecarregado com tarefas domésticas, laborais e familiares, dentro de um mundo ainda competitivo, conquanto desigual, tanto do ponto de vista econômico, como do de gênero.

A formulação de políticas públicas perpassa por ciclos, nem sempre uniformes, que consideram, de modo metodológico, ao menos: (i) o estabelecimento de uma agenda (lista de temas ou de problemas objeto de atenção) (ii) a especificação das alternativas de escolhas concretas (com a análise das restrições orçamentárias, a viabilidade técnica e a aceitação das alternativas pela comunidade de experts) (iii) a realização de uma escolha final (normalmente a tomada de decisão é inerente ao Poder Legislativo e ao Executivo, porém, não raro o Poder Judiciário é chamado a participar desse processo1) e a (iv) implementação da decisão2.  

O Brasil não vem implementando adequadamente políticas públicas estruturadas em prol da defesa dos direitos das mulheres apesar dos indicadores que demonstram o aumento da violência doméstica bem como as dificuldades enfrentadas por mulheres no mercado de trabalho e na administração da vida familiar. Não se desconhece que a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres em 2003 foi um avanço especialmente no que tange ao combate da violência contra a mulher, que está na pauta do dia e não pode ser excluída da agenda mundial.   

É inegável que o aumento da violência contra as mulheres3 retrata a cultura machista brasileira. O coronavírus, todavia, a potencializou ao incitar o convívio intenso familiar em virtude do imprescindível isolamento social e necessários lockdowns.

A propósito, interessante artigo intitulado "Mulheres em Tempos de Pandemia: Um Ensaio Teórico-Político sobre a Casa e a Guerra", publicado na Revista Psicologia & Sociedade, pondera que, a despeito das orientações da OMS perpassarem pela recomendação do isolamento social e controle de medidas sanitárias e de higienização, a casa nem sempre é um espaço privilegiado para parte da população, seja em virtude da violência (de toda ordem) ou pela falta de saneamento básico que assolam o Brasil.

Sob esse prisma, os autores não questionam o isolamento social, mas alertam para que a orientação do "fiquem em casa", uma vez "associada à limitação de políticas sociais de educação, de saúde e assistência social, por exemplo, intensifica desigualdades e acentua outros riscos"4. Inegavelmente as disparidades sociais do Brasil alteram o conceito de casa ou de "doce lar", como alerta a antropóloga e Professora da Universidade de São Paulo Lilia Schwarcz5

Importante salientar como afirmam Fábio Angelim e Glaucia Diniz que "a politização da violência contra as mulheres teve nos palcos de debates da Organização das Nações Unidas (ONU) um apoio decisivo para pressionar os governos do mundo"6. Não por um acaso a ONU MULHERES lançou uma cartilha com Diretrizes para Atendimento em Casos de Violência de Gênero contra Meninas e Mulheres em Tempos da Pandemia da Covid-197, além de ter elaborado diversos boletins temáticos sob a perspectiva da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres nesse período voltados, precipuamente, à gestão pública e à promoção de programas de políticas públicas8.

A urgência na adoção dessas sugestões também é confirmada pelo teor da nota técnica publicada em junho de 2020 pelo IPEA (nº 78), segundo a qual, "de acordo com o PNUD (2020), a perspectiva de agravamento da situação é dada por fatores como o maior tempo de convívio entre agressor e vítima, o maior número de conflitos cotidianos, a falta de momentos rotineiros de afastamentos, que interrompem a violência prolongada, e a sensação de impunidade do agressor"9.

O problema, notoriamente se insere dentro de um cenário internacional [x] circunstância que impulsiona a imprescindibilidade de respostas mais concretas para o refreamento do quadro exposto, tais como a ampliação de serviços públicos de atendimento à mulher, a garantia de uma renda mínima, mais campanhas de conscientização da sociedade e celebração de parcerias do governo com a iniciativa privada10.

Dentre outras trágicas consequências da pandemia está, indubitavelmente, o desemprego feminino. O desafio de educar crianças foi absorvido por mães ou professoras por meio do homeschooling, o que impactou o mercado de trabalho dessa classe de modo geral, seja pela sobrecarga de tarefas multifacetadas, seja pela incompatibilidade de manutenção da produtividade esperada, desembocando na demissão de mulheres. Por sua vez, a precarização de empregos gera ainda maiores consequências às mulheres dentro de um mundo pandêmico e sob forte crise econômica. Quanto ao ponto importante avanço foi a previsão de cota diferenciada para a percepção de renda emergencial para mulheres provedoras de família monoparental (art. 2º, § 3º, da lei 3.982/20)11.

Nessa ordem de ideias, o tão festejado home office, que demonstrou ser um meio eficiente para a realização de tarefas seja na esfera pública ou privada quando prestados sob condições normais de temperatura e pressão (CNTP), gerou sobrecarga e alto stress às mulheres13, inseridas dentro de um ambiente único, confuso e ambivalente, no qual as escolhas se alternam, diuturnamente, entre a vida privada e a profissional, sem horários pré-fixados, pagamento de horas extras ou reserva de privacidade, até mesmo para cuidarem de sua própria saúde. Por outro lado, não se pode negar que a desigualdade de gênero "pode determinar diferenças nos processos de saúde, sofrimento e adoecimento"14, destacando-se a propensão à depressão e à ansiedade, especialmente na hipótese de maternagem15. Nessa esteira válido mencionar a criação no Sistema Único de Saúde políticas públicas voltadas à atenção integral da mulher16.

Saliente-se que o Superior Tribunal de Justiça, atento à essa realidade, vem realizando por meio de sua Secretaria de Serviços Integrados de Saúde - SIS - eventos virtuais tais como rodas de conversas e oficinas para auxiliar seus servidores a melhor organizarem sua rotina familiar e a gerir seu tempo, além de propiciar treinamentos online para o melhor desenvolvimento do trabalho desde o início da pandemia, o que propiciou o sucesso das sessões por videoconferências na Corte, que não interrompeu a atividade judicante em momento algum.

Aliás, digno de nota foi a adesão do STJ ao Protocolo HeforShe da ONU Mulheres assinada no dia 20/10/20 pelo atual Presidente da Corte, Ministro Humberto Martins17. Tal movimento lançado em 20/7/04 se coaduna com um esforço global para envolvimento da sociedade civil na erradicação dos entraves que obstam as mulheres de alcançarem o seu potencial, apoiando políticas públicas para melhores estratégias na solução do problema18.

 Em tempos de celebração do dia internacional das mulheres (dia 8 de março) é válido refletir acerca da desproporcional sobrecarga que a pandemia trouxe à vida das mulheres, o que longe de ser uma bandeira ideológica ou um modismo, é uma questão social. A integridade física e psicológica das mulheres deve estar sempre na agenda política, especialmente à luz dos indicadores de que o confinamento tem sido muito oneroso ao universo feminino.

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1 A título meramente exemplificativo confira-se a imposição pelo Poder Judiciário da realização de obras em presídios para garantir direitos fundamentais: Clique aqui.

2 Howlett, Michael; Rarmesh. M; Perl Anthony Perl. Políticas Públicas e seus ciclos e subsistemas - Uma abordagem integral. Tradução Técnica Francisco G. Heldemann. 3ª Triagem. Editora Elsevier.

3 Clique aqui.

4 Clique aqui. Confira-se: "Na China, o primeiro país a adotar o isolamento para prevenção da Covid-19, o número de denúncias de violência doméstica dobrou durante o confinamento comparado com o mesmo período de 2019. Na França, em uma semana de restrições, abusos domésticos reportados à polícia subiram 36% em Paris e 32% no resto do país, incluindo dois casos de feminicídios. Na Espanha, somente nas duas primeiras semanas de abril o aumento de chamadas no disque-denúncia foi de 47%, em relação ao mesmo período no ano anterior, e o aumento do número de mulheres que procurou outros serviços de apoio por e-mail ou mídia social foi de 700%, enquanto o número de mulheres que procuraram a polícia reduziu drasticamente. Na Colômbia, o número de chamadas no número de emergência para atendimento e orientações às mulheres em situação de violência aumentou 163% comparado com o mesmo período de 2019. Destas, as ligações relacionadas a denúncias de violência intrafamiliar cresceram 172% nos trinta dias de medidas de isolamento preventivo, entre 25 de março e 23 de abril. Na África do Sul, as linhas telefônicas do disque-denúncia tiveram o dobro de ligações desde o início do confinamento em 27 de março". No mesmo sentido: Clique aqui.

5 Clique aqui.

6 ANGELIM, Fábio Pereira  e  DINIZ, Glaucia Ribeiro Starling. O pessoal torna-se político: o papel do Estado no monitoramento da violência contra as mulheres. Rev. psicol. polít. [online]. 2009, vol.9, n.18, pp. 259-274. ISSN 2175-1390.

7 Clique aqui.

8 Clique aqui.

9 Clique aqui.

10 Clique aqui.

11 Clique aqui.

12 Clique aqui.

13 Clique aqui.   

14 Clique aqui.

15 "Maternal mental health is particularly important to consider, given that females are at increased risk for depression and anxiety (American Psychiatric Association, 2013).  Similarly, suicide is a leading cause of death in mothers of young children in nonpandemic populations (Rahman et al., 2013). Thus, in addition to the physical health impacts of COVID-19, the psychological and socioeconomic impacts of the pandemic and COVID-related measures should be examined to allow for the effective development and implementation of targeted prevention and intervention strategies" (Cameron, E. E., Joyce, K., Delaquis, C., Reynolds, K., Protudjer, J., & Roos, L. E. (2020). Maternal Psychological Distress & Mental Health Service Use during the COVID-19 Pandemic. doi: 10.31234/osf.io/a53zb

16 Clique aqui.

17 Clique aqui.

18 Clique aqui.

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Fernanda Mathias de Souza Garcia

Fernanda Mathias de Souza Garcia

Discente do Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas - Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília - PMPD. Analista Judiciária do Supremo Tribunal Federal. Assessora de Ministro do Superior Tribunal de Justiça.

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