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Sobre a permanência dos crimes on-line: Entre a consumação e o exaurimento

Considerar que crimes on-line sejam permanente é potencialmente criar uma nova categoria de crimes eternos.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Atualizado às 13:19

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A decisão do ministro Alexandre de Moraes se tornará tópico frequente de estudos nas sala de aulas, pois se presta para exemplificar tantas questões penais e processuais penais que é, sozinha, capaz de substituir um livro da bibliografia do curso. Vejamos um frecho do proferido nos autos do INQ 748:

Relembre-se que, considera-se em flagrante delito aquele que está cometendo a ação penal, ou ainda acabou de cometê-la. Na presente hipótese, verifica-se que o parlamentar DANIEL SILVEIRA, ao postar e permitir a divulgação do referido vídeo, que repiso, permanece disponível nas redes sociais, encontra-se em infração permanente e consequentemente em flagrante delito, o que permite a consumação de sua prisão em flagrante. (grifo nosso)

Discutir unicamente os tipos penais imputador ao congressista no caso concreto resultaria apenas em uma estreita análise. Afinal, com qual frequência temos denúncias baseadas na lei 7.170/73? Apesar de qualquer número ser grande demais, pois tal lei não ser, pelo julgamento de muitos juristas, compatível com a constituição, ainda assim os exemplos são (ainda) poucos. Pensemos então em crimes mais comuns, aqueles no capítulo dos crimes contra a honra no Código Penal. Teríamos três a escolher - calúnia, difamação e injúria - dos quais difamação é uma boa média. Há uma proximidade muito grande entre os delitos presentes no Código Penal com aqueles da Lei de Segurança Nacional invocados pelo ministro: tratam-se de delitos fundados na externalização de um processo interno através de manifestações. Temos uma clara analogia (semelhança entre diferentes) que nos permite, ao analisar um, concluir sobre o outro.

Inicialmente, leciona Busato (2017a) que quanto a crimes permanentes "a ação segue em curso enquanto dura a permanência, razão pela qual todo esse tempo é considerado tempo do crime". Diferentemente do crime continuado:

O crime permanente, ao contrário, tem uma única atividade que se desenvolve no espaço-tempo e em determinado momento cessa. Como é óbvio, não se pode determinar qualquer momento da atividade como tempo do crime, posto que todos são equivalentes e indistintos. Daí a necessidade de estabelecer a cessação da permanência como momento do crime (BUSATO, 2017a).

Cleber Masson (2016, p. 208-209) define o crime de Difamação como comum, de forma livre, comissivo, de dano, formal e instantâneo. Sobre a Consumação, afirma que consuma-se "quando terceira pessoa toma conhecimento da ofensa dirigida à vítima". Em outras palavras, o crime se consuma quando o primeiro terceiro toma conhecimento da ofensa. Mas a questão do número de pessoas alcançadas não é ignorada pelo ordenamento jurídico. Não apenas pode exasperar a pena, como condição judicial desfavorável (art. 59/CP), como é tratada diretamente no artigo 141, especificamente no inciso III: "na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria".

É pacífico que os crimes contra honra praticados na internet se enquadram nesta situação, conforme explica Paulo Busato (2017b) ao afirmar que "a ideia do meio que facilite a divulgação, é possível afirmar como tais os mecanismos de comunicação cibernéticos, como e-mails e similares". Da mesma forma, Rogério Sanches (CUNHA, 2020, p. 206) leciona que "[p]ode se inserir na majorante o crime contra a honra cometido por meio de redes sociais na internet, pois se trata de um meio que facilita a divulgação da ofensa."

Além da situação de flagrância, tratar tais crimes como permanentes trás outros problemas. Se um vídeo difamatório na internet for crime permanente enquanto o vídeo existir, o crime será eterno. Conteúdos disponibilizados na internet fogem do controle do autor, sendo arquivados e redistribuídos. Cita-se, exempli gratia, o Internet Archive que tem como proposta armazenar um conteúdo perpetuamente. Outras pessoas podem ter copiado e salvo, repostando. O provedor de conteúdo pode se recusar a tirar o conteúdo do ar, mesmo a pedido do autor. Repete-se: atribuir-se a classificação de crime permanente a crimes praticados por conteúdo disponibilizado na internet significa transformar tais crimes em uma novel classificação: crimes eternos. Igualmente problemático é que, se entendemos, como afirma Busato (2017a) que o momento do crime é quando cessa sua permanência, então jamais se teria este marco, tão necessário para a aferição da prescrição e mesmo a idade do autor. Qual dispositivo penal deve ser aplicado a um autor que, aos 14 anos, posta um vídeo difamatório na internet, e o vídeo permanece on-line por 8 anos? Deve se considerar o autor com 14 anos ou 22 anos?

Faz-se uma analogia. Com a inconstitucionalidade da Lei da Imprensa, a difamação por meio de jornais possui a mesma tipificação (art. 139 c/c 141, III). É uma manifestação que também possui permanência. Deve o crime ser considerado como tal enquanto existir qualquer cópia do jornal em circulação? Qualquer cópia arquivada? Enquanto uma única banca de jornal ainda possuir um exemplar exposto, a venda, continuará o autor em situação de flagrância? Tal situação é inaceitável. Se o crime depende do elemento subjetivo, a partir do mesmo que se excede a esfera volitiva do autor, não se pode mais atribuir-lhe o dolo. Em que pese a possibilidade de discutir-se conduta culposa (tendo-se um crime preterdoloso com a culpa no consequente), os crimes aqui analisados não aceitam modalidade culposa. Por isso existe a majorante do art. 141: para tratar do risco causado pelo meio que facilita a divulgação. Fosse o crime permanente, tal previsão não seria necessária ou, talvez, até mesmo possível.

Resta a justa pergunta: se a permanência do conteúdo on-line, disponível, não transmuta o crime em permanente, isso significa que não possui relevância jurídica, sendo mero exaurimento, como continuar a alvejar alguém já falecido? Não. E o ordenamento jurídico trás previsões. O artigo 59 do Código Penal indica que o juiz deve, ao fixar a pena, atender às consequências do crime, o que permite o aumento da pena, no caso concreto, acima da mínima cominada. Também na esfera civil, talvez mais importante em casos assim (como um professor meu lecionada, a carteira é a parte mais sensível do corpo humano), a contínua disponibilidade do conteúdo significa um dano maior, ao menos material. E, conforme prescrição do artigo 944 do Código Civil, "[a] indenização mede-se pela extensão do dano".

Além deste ponto, Juarez Cirino dos Santos (2020, p. 393) traz outro desdobramento que possui graves consequências jurídicas, quando afirma que o exaurimento do fato "tem interessa prático para a participação, o concurso de crimes, atribuição de caracteres qualificadores [...]". Com isso, fica claro que ainda que seja, para o autor original, exaurimento, outros podem ingressar, como coautores ou partícipes, durante esta fase. Alguém que reproduza o vídeo difamatório, ou retransmita, estará cometendo novo crime enquanto novo autor. Em outras palavras, o exaurimento do crime em relação ao autor original não significa que novos agentes não possam surgir, seja como partícipe, coautor ou mesmo em nova autoria.

Longe de ausência de relevância jurídica, o ordenamento jurídico pátrio já possui diversos institutos para lidar com a situação, que podem ser aplicados com muito menos contorcionismo do que alquimicamente transmutar crime instantâneo em permanente. Enquanto lacunas legais podem, e devem (devido a obrigatoriedade da jurisdição), serem sanadas pelos magistrados, não é aceitável que estes rompam com a norma jurídica, reescrevendo o texto. Adequação de normas é função legislativa. Como explorado no presente trabalho, considerar tais crimes como permanentes abre porta para consequências nefastas, algumas aqui previstas mas com certeza também outras. Cada decisão é uma nova página no que Dworkin chama de romance em cadeia, que será a base para nova decisões no futuro.

Conclui-se então que os crimes de manifestação, sejam os previstos no Código Penal sob o capítulo Dos Crimes Contra a Honra, sejam aqueles tipificados na Lei de Segurança Nacional, ou qualquer outro dispositivo normativo, são, salvo disposição em contrário, instantâneos. A contínua disponibilidade trata-se de exaurimento. Evitamos dizer mero exaurimento, pois mesmo o exaurimento possui consequências jurídicas. Consequências previstas e aplicáveis, sem a necessidade de se transformar, magicamente, crimes instantâneos em crimes permanentes.

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BUSATO, Paulo. Direito Penal: parte geral, v1. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017a. E-book.

BUSATO, Paulo. Direito Penal: parte especial 2. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017b. E-book.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte especial (arts. 121 ao 361). 12. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2020.

MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado: parte especial - vol. 2. 9. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016.

Rodrigo Pedroso Barbosa

Rodrigo Pedroso Barbosa

Mestre em Direito, especialista em Direito Penal e Processual Penal, autor e advogado criminalista.

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