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Parte I: A iniciativa inconstitucional

A SB 826 é uma lei que obriga as companhias abertas que tenham sua sede principal localizada no Estado da Califórnia a terem um número mínimo de mulheres em seus conselhos de administração.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Atualizado em 12 de março de 2021 13:14

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em 2018 o Estado da Califórnia promulgou a lei inconstitucional com o maior cumprimento voluntário da história dos EUA (Senate Bill 826 ou SB 826)1.

A SB 826 é uma lei que obriga as companhias abertas que tenham sua sede principal localizada no Estado da Califórnia a terem um número mínimo de mulheres em seus conselhos de administração. A descriminação positiva justificou-se na grave disparidade que existia entre o número de homens e mulheres a ocuparem estes assentos. No ritmo em que as mudanças aconteciam, estimava-se um prazo de 50 anos para se alcançar a paridade de gênero na alta administração corporativa do Estado.

Foi com esse intuito que a SB 826 incluiu uma previsão na lei societária californiana determinando que todas as companhias abertas locais tivessem:

  • Até o final de 2019, ao menos uma mulher no conselho de administração; e
  • Até o final de 2021:

Pelo menos três mulheres no conselho de administração, se composto por seis membros ou mais;

Pelo menos duas mulheres no conselho de administração, se composto por cinco membros;

Pelo menos uma mulher no conselho de administração, se composto por quarto membros ou menos2.

A SB 826 também estabeleceu que as companhias que descumprissem com as regras poderiam pagar multas de 100 a 300 mil dólares.

Primeiro fato curioso da SB 826: desde a sua promulgação, o próprio legislador previu que as regras ali estabelecidas teriam grandes chances de serem questionadas judicialmente. Inclusive, durante a sessão de assinatura da lei, o então governador da Califórnia Jerry Brown declarou que a SB 826 continha "potential flaws that indeed may prove fatal to its ultimate implementation"3.

Nos bastidores, restava a dúvida do porquê o Estado da Califórnia se esforçava para promulgar uma lei que tinha grandes chances de ser declarada inconstitucional de acordo com os atuais precedentes da Suprema Corte, bem como qual seria o poder de impacto e mudança social que uma lei nestas condições poderia ter4.

A resposta imediata constou na própria exposição de motivos da SB 826: as companhias precisavam de um estímulo para serem proativas na implementação de medidas que respondessem ao problema da disparidade de gênero na alta administração corporativa. Além disso, o Estado da Califórnia foi enfático no sentido de que era uma atribuição do poder legislativo promulgar leis para o progresso social, ainda que questionáveis judicialmente, sob pena de o direito constitucional se tornar ortodoxo e imutável às novas realidades5.

O que não sabiam os legisladores é que a SB 826 seria, a contrário senso, extremamente efetiva. Se o número de mulheres que compunham o conselho de administração das companhias alvo da lei aumentava em marcha lenta até 2018, após sua promulgação a tendência foi às estrelas.

Recentemente, um grupo de pesquisadores de Harvard publicou um estudo que mediu os efeitos da SB 826 e constatou que em 2018 30% dos conselhos de administração eram compostos exclusivamente por homens. Hoje, esse número caiu para menos de 2,5%. Nos últimos dois anos, 669 cargos em conselhos de administração foram ocupados por mulheres, um crescimento de 66,5% se comparado a períodos interiores. Nenhum destes números se replicou em outros grandes estados dos Estados Unidos6.

Na prática, portanto, a potencial inconstitucionalidade da SB 826 não afetou sua efetividade; pelo contrário, confirmou-se que é plenamente possível que uma lei tenha poder para mudar normas sociais, ainda que em contrariedade a sólidos precedentes judiciais que se tornaram inconsistentes com uma realidade cultural.

Outro fato curioso a respeito da receptividade da SB 826 é que, apesar de suas vulnerabilidades, nenhuma companhia tomou a iniciativa de questionar a lei judicialmente, o que se pode explicar por diversos fatores. O principal deles parece ser reputacional, afinal nos dias de hoje há um total desincentivo para uma companhia declarar publicamente que não concorda em ter um conselho de administração com diversidade de gênero. E, ainda pior, gastar o dinheiro dos seus acionistas para sustentar esse litigio impopular.

Na realidade, 2020 foi ano em que os investidores mais olharam para métricas relacionadas a critérios ambientais, sociais e de governança corporativa (ESG) como parte de seu processo de análise de risco e alocação de recursos. Um estudo publicado por pesquisadores de Harvard demonstrou que houve uma significativa correlação a maiores pontuações em ESG para aquelas companhias com conselhos de administração com diversidade de gênero, uma indicação de que a presença feminina nos boards é relevante para a adoção de melhores práticas de sustentabilidade e governança corporativa7.

Uma última curiosidade da SB 826: o Estado da Califórnia sequer precisou tomar iniciativas com intuito de dar efetividade à lei. O sucesso do enforcement natural foi tal que as poucas companhias em descumprimento às novas regras tornaram-se proporcionalmente insignificantes, seja porque representam menos de 10% em números absolutos, seja porque sequer alcançam a casa de 5% em termos relativos.
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2 Section 301.3. (a) e (b) of the Corporations Code

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Marina Pacheco de Araújo Paciullo

Marina Pacheco de Araújo Paciullo

Associada do escritório Araújo e Policastro Advogados.

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