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O mito da Ancine de 2021

A moral da história é que o pior cego não é aquele que não quer ver, mas é aquele que além de não querer ver, ainda enxerga o que não existe!

quarta-feira, 10 de março de 2021

Atualizado às 10:50

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

Na conhecida obra "Sapiens - Uma breve história da humanidade" de autoria do professor israelense Yuval Noah Harari1, são mencionadas, basicamente, duas teorias que explicam a prosperidade do homo sapiens em relação às demais espécies animais e que introduzem, de certa maneira, a revolução cognitiva.

Dessa forma, Yuval Harari descreve a "teoria do leão" e a "teoria da fofoca". Em linhas gerais, a "teoria do leão" explora a versatilidade da linguagem, que nos permite consumir, armazenar e comunicar uma quantidade extraordinária de informação sobre o mundo à nossa volta. Assim, enquanto um macaco pode avisar aos seus camaradas: "Cuidado! Um leão!"; um humano moderno pode descrever a localização precisa do leão e do seu alvo, incluindo as mais diferentes possibilidades de caminhos que levam à área em questão. Com isso o humano pode discutir com seu bando e todos podem pensar juntos a melhor forma de se aproximar do rio para realizar a caçada2.

Já a "teoria da fofoca" concorda com a singularidade da linguagem humana e a sua evolução como um meio de partilhar informações sobre o mundo. Mas para essa corrente de pensamento, as informações mais importantes que precisavam ser comunicadas aos demais eram sobre os próprios seres humanos e não sobre leões, predadores ou caças. Portanto, considerando que a cooperação social é essencial para a sobrevivência e a reprodução, para essa linha de pensamento não é suficiente que homens e mulheres conheçam o paradeiro de leões e cordeiros. É muito mais importante saber em seu bando "quem odeia quem, quem está dormindo com quem, quem é honesto e quem é trapaceiro"3.

Muito provavelmente, tanto a "teoria do leão" quanto a "teoria da fofoca" são válidas. Porém, a característica verdadeiramente única da linguagem humana não é a capacidade de transmitir informações sobre homens e leões. É a capacidade de transmitir informações sobre coisas que não existem. Assim, lendas, mitos, deuses e religiões aparecem pela primeira vez com o advento da revolução cognitiva. Portanto, a capacidade de se falar sobre ficção, talvez seja a característica mais singular da linguagem dos sapiens4.

Nesse sentido, é sobre a capacidade de falar sobre ficção e também da capacidade do ser humano de criar ficção que este artigo irá se centrar.

Indubitavelmente, após a revolução cognitiva, a "fofoca" ajudou o homo sapiens a formar bandos maiores e mais estáveis que as primeiras tribos mais rudimentares que possuam, aproximadamente, 150 seres humanos. Mas o ponto de inflexão que ultrapassa este patamar e permite a criação de cidades com dezenas de milhares de habitantes e impérios que governam centenas de milhões remonta o segredo provável do surgimento da ficção. O que permite que um número significativo de estranhos coopere de maneira eficaz se acreditar nos mesmos mitos ou no mesmo mito, - com o perdão do trocadilho.

Portanto, ainda que o texto legal prescreva de forma clara e taxativa um prazo de natureza peremptória, tal como faz o artigo 10 da lei 9.986, de 18 de julho de 2000, especialmente o parágrafo 7º, o qual aduz que mesmo servidor substituto não exercerá interinamente o cargo de Diretor por mais de 180 dias contínuos (e na Ancine os substitutos já estão cumprindo o terceiro mandato com estratégia da "dança das cadeiras"). Ou ainda, como na hipótese do prazo contido no art. 39, § 3º da MP 2.228- 1/01 que trata dos 270 dias para que o investidor aplique o investimento oriundo de incentivo fiscal em um projeto previamente aprovado pela Ancine. Cria-se uma ficção para permitir que não seja aplicado aquilo que está escrito na lei. Isso só para citar poucos exemplos.

Como muito bem explicado por Lenio Streck5 no Artigo: "E a professora disse: 'você é um positivista'", o sentido da produção democrática do Direito e o papel da jurisdição constitucional devem ser devidamente respeitados. Ora, não se trata aqui de falar das mais variadas tonalidades de cinza que se encontram entre a cor preta e a branca, mas de se permitir indevidamente que o preto ou o branco se transformem em amarelo ou lilás!

Dessa maneira, apesar de tudo aquilo que fora apontado no artigo anteriormente publicado, denominado "A Diretoria da Ancine e a Nova Roupa do Rei" no qual foi retratado que além do Diretor Presidente-Substituto da Ancine estar com mandato anual vencido, os demais Diretores substitutos encontravam-se em situação irregular. Bem como no artigo denominado "O looping da Diretoria Substituta da Ancine e a Teoria da Katchanga", que trata de nova recondução de diretores substitutos que já estavam há 360 dias exercendo aquelas funções quando a lei permite a permanência máxima no prazo de 180 dias. Talvez todas essas falhas sejam como aquela nota desafinada dada pelo violinista do Titanic enquanto tocava "Nearer My God to Thee" durante o naufrágio. Afinal de contas, uma Fake News repetida por diversas vezes, pode se tornar mais um mito em que aquela "tribo" pode acreditar.

Talvez então seja melhor não apontar os fatos, mas continuar permitindo a existência de uma agência de fomento público, ainda que ela esteja paralisada e não crie novos editais de fomento público6.

Ou talvez seja melhor não reclamar e permitir que seja mantida a existência de uma agência que regula o mercado audiovisual e não possui sequer um projeto para a regulação do video on demand. Ou que não tem fiscalizado os títulos advindos do vídeo por demanda que seriam "tributados" sob a rubrica de "outros mercados" desde 2012.

Ou, ainda, que seja mantida a existência de um órgão que tem se empenhado em revirar contas prestadas de mais de 10 ou 15 anos atrás, as quais sabidamente tem chances de se sustentar em um embate jurídico nos Tribunais Regionais Federais. O que já ocorreu na decisão proferida nos autos do processo 5071513-70.2020.4.02.5101. Sendo certo impossibilidade de permanência infinita do poder persecutório do Estado".

Diante do exposto, cabe uma reflexão: o que será que sobra da agência sem uma Diretoria regularmente instituída?

Será que é melhor manter como "existente" aquele símbolo no estilo do rei que "reina mais não governa"? Ou melhor, que não regula, não fiscaliza e não fomenta...

Nessa toada, pode até ser que aquele citado conto dinamarquês traduzido para o português como "A Roupa Nova do Rei" ou "A Roupa Nova do Imperador", de autoria de Hans Andersen chame muito mais atenção para o seu desenvolvimento do que para o seu desfecho, apesar do final da história impactante, especialmente quando o menino grita: "o rei está nu!".

Para relembrar, a indigitada anedota trata de um foragido recém chegado na cidade se fez passar por um nobre alfaiate que tecia roupas maravilhosas. E, após ter conseguido uma audiência com o rei, o convenceu de tecer uma roupa especial que somente poderia ser vista por "pessoas inteligentes". Assim, depois de cobrar uma enorme quantia em ouro e joias, o farsante entregou a "roupa" nova para o rei que na verdade não existia, sob o argumento de que "só inteligente vê". Por conseguinte, as pessoas insistiam em dizer que a viam para não se passar por burros. Até que um belo dia, reza o conto, que uma criança avistou o rei caminhando pela calçada e gritou imediatamente: "o rei está nu". Somente aí que os cidadãos começaram comentar e confessar que também não enxergavam roupa alguma no rei.

Mas o bem da verdade é que o rei não ficou nu somente depois que o menino ousado gritou. Fato é que o rei sempre esteve nu! E está nu desde quando "vestiu" a roupa que "só os inteligentes veem".

Mas uma coisa é certa. O rei continuará "vestido" enquanto os cidadãos acreditarem no mito da roupa nova do rei que só é vista pelas pessoas inteligentes. Assim como existirá uma agência que não fomenta, não regula ou não fiscaliza.

A moral da história é que o pior cego não é aquele que não quer ver, mas é aquele que além de não querer ver, ainda enxerga o que não existe!

________

1- HARARI, Yuval Noah, Sapiens - Uma breve história da humanidade, Porto Alegre, RS: L&PM. Trad. Janaina Marcoantonio. 50ª Ed. 2020.

2- Idem. p. 28-30.

3- Idem. Ibidem. p. 31.

4- HARARI, Yuval Noah, Sapiens - Uma breve história da humanidade, Porto Alegre, RS: L&PM. Trad. Janaina Marcoantonio. 50ª Ed. 2020. p. 32.

5- STRECK,   Lenio     Luis.    E   a   professora   disse:   você   é   um   positivista.  Acesso em 09 de março de 2021.

6- MPF   entra   com   ação   contra   diretores   e   procurador-chefe  da  Ancine. Disponível aqui. Acesso em: 05 de março de 2021.

Magno de Aguiar Maranhão Junior

Magno de Aguiar Maranhão Junior

Professor da FTESM e especialista em Regulação da ANCINE. Mestrando em Direito na linha de Finanças, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ. Especialista em Direito Civil-Constitucional pela UERJ.

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