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Dois lados de uma mesma moeda? Competência e suspeição no âmbito dos processos do ex-presidente Lula

No caso, cindir por completo os elementos da "competência" e da "suspeição" nos levaria a aventar a inverossímil possibilidade de que a adoção do juízo agora reconhecido como incompetente seria decorrência de mera falha técnica.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Atualizado às 10:56

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

Ao concluir a leitura das 46 páginas da decisão do ministro Fachin em sede de embargos declaratórios opostos no HC 193.726/Paraná, somos tomados por uma perplexidade inescapável. Ao mesmo tempo em que o Ministro declara a "perda do objeto" de todas as pretensões apresentadas pela defesa do ex-presidente Lula em relação à suspeição do ex-juiz Sergio Moro, a decisão - de forma contraditória e surpreendente - acena com a possibilidade de futura "convalidação" dos atos instrutórios, no futuro, a critério da discricionariedade do novo juízo a ser estabelecido por sorteio (na Seção Judiciária do Distrito Federal).

Ora, mas tais conclusões conduzem a uma dúvida imediata e incontornável: como poderia ter havido "perda do objeto", em relação à questão da suspeição de Moro, ao mesmo tempo em que todas as provas produzidas por ordem (e/ou sob a supervisão) deste, nos processos agora anulados, permaneceriam passíveis de futura convalidação discricionária pelas mãos de outro juiz? Dito de outro modo: se a declaração de nulidade dos processos, motivada por questão de incompetência do juízo, não abarca todos os efeitos da suspeição arguida pela defesa, então não se pode falar em "perda do objeto" em relação a esta pretensão.

A decisão, mantida nos termos da decisão monocrática do ministro Fachin, mostrava-se insustentável - e o ministro Gilmar Mendes, na condição de presidente da 2ª turma do STF, agiu com acerto e propriedade ao pautar a análise da questão da suspeição perante todos os integrantes da referida turma já no dia seguinte à decisão proferida pelo ministro Fachin. Conforme bem observado pelo Ministro Lewandowski em seu voto, o procedimento adotado pelo ministro Fachin, entre outras coisas, implica em manifesta inobservância do art. 96 do CPP, que estabelece que "a arguição de suspeição precederá a qualquer outra, salvo quando fundada em motivo superveniente".

Não pretendo, aqui, questionar a declaração de incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba feita pelo Ministro Fachin em sua decisão monocrática. Observo que, tanto entre juristas e operadores do Direito quanto entre cidadãos "leigos", não foram poucos os que manifestaram estranhamento e perplexidade ao ver uma questão técnica tão elementar, apontada de forma reiterada e exaustiva pela defesa do ex-presidente Lula por anos a fio, sendo subitamente reconhecida de forma tão manifestamente tardia. Compartilho de tal estranhamento, mas chamo a atenção para o fato de que a definição dos limites de competência da chamada "Lava Jato" passou por diversas "mutações" dentro da jurisprudência do STF ao longo dos anos, o que - pelo menos em tese - autoriza a construção do argumento de que o HC 193.726 representaria a primeira oportunidade de análise da questão no contexto da atual criteriologia do Supremo em relação às regras de definição de competência da operação no juízo de Curitiba.

No entanto, observamos que, no caso em tela, a análise da questão da competência mostra-se difícil até mesmo de ser inteiramente separada da arguição de suspeição do ex-juiz Moro - na medida em que o artifício argumentativo utilizado para julgar o ex-presidente Lula em Curitiba se insere como peça necessária e inafastável da própria agenda política que agora surge reconhecida e declarada nos votos já proferidos pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Se havia uma agenda política por trás de uma operação de "lawfare" disfarçada de processo penal ordinário, então o artificioso estabelecimento da competência nas mãos dos protagonistas desta operação era, por óbvio, condição de possibilidade para a concretização do resultado jurídico-político pretendido.

Com efeito, no caso em exame, cindir por completo os elementos da "competência" e da "suspeição" nos levaria a aventar, de forma ingênua e temerária, a inverossímil possibilidade de que o processamento e julgamento dos referidos processos, naquele juízo agora reconhecido como incompetente, teria sido fruto de inocente equívoco técnico, de descuido, de uma falha procedimental não intencional - e não parte necessária e inseparável de uma narrativa condenatória cuja construção já se iniciava no caráter arbitrário e excepcional da "competência universal" do juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba.1 Há evidente violação ao Princípio do Juiz Natural quando a denúncia e definição da suposta conduta delituosa é concebida de antemão para assegurar que o processamento e julgamento do feito se dê perante o juízo desejado tanto pelo acusador quanto pelo julgador.

Mostra-se de grande relevância o alerta dado pelo ministro Gilmar Mendes em seu voto, ao ressaltar que o combate à corrupção não pode se dar por meio do cometimento de outros crimes, bem como ao frisar que não se pode admitir política disfarçada de persecução penal. Caberia acrescentar, no entanto, que o episódio também nos deixa como legado a lição de que, no futuro, o Judiciário pátrio deverá atuar no sentido de jamais permitir novamente, em nome de certo populismo penal, o estabelecimento de quimeras de ocasião, como à toda evidência foi o caso da bizarra e etérea competência "universal/excepcional" da 13ª Vara Federal de Curitiba - um absurdo sistematicamente denunciado pela comunidade jurídica ao longo da última meia década.

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1- Importante relembrar, por oportuno, que o caráter de excepcionalidade da chamada "Operação Lava Jato" chegou às raias do flerte com uma verdadeira espécie de "metafísica jurídica" no ano de 2016 quando, por ocasião do julgamento do PA nº 0003021-32.2016.4.04.8000/RS, o TRF4 afirmou textualmente que os processos da Lava Jato escapariam ao "regramento genérico" - que seria destinado apenas a "casos comuns". O pressuposto implícito é de que, em algum lugar do céu platônico das ideias, existiria um "regramento específico" destinado a "casos especiais" (seja lá o que isso for) - e que o acesso privilegiado a este "metadireito" teria o condão de autorizar até mesmo o atropelo de direitos fundamentais consagrados na Constituição (no caso em tela, tal fundamento foi utilizado para justificar como " juridicamente correta" a violação de sigilo de comunicações telefônicas, ao arrepio da norma constitucional).

Henrique Abel

Henrique Abel

Mestre e Doutor em Direito pela UNISINOS/RS, com estágio doutoral na School of Law of Birkbeck, University of London. Autor. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Advogado.

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