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A teoria da quebra da base do negócio na jurisprudência do STJ

Sob esse prisma, oportuno que o STJ inicie um processo de superação dos precedentes sobre o tema e passe a admitir a aplicação da teoria da quebra da base não só às relações de consumo.

quinta-feira, 11 de março de 2021

Atualizado às 10:33

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

A análise da jurisprudência do STJ evidencia que aquela corte superior, antes da vigência do CDC, aplicava a teoria da quebra da base do negócio a contratos puramente civis e, após o advento do diploma consumerista, passou a adotar uma interpretação restritiva, admitindo sua aplicação apenas aos contratos de consumo, em nome de uma segurança jurídica que, não raro, tem potencial para violar o princípio da justiça no contrato e gerar enriquecimento sem causa de uma das partes.

Embora após a edição da lei da Liberdade Econômica a tendência seja uma intervenção estatal mínima e excepcional nos negócios privados, avisto, em tempos de coronavírus, um possível e necessário fortalecimento da funcionalização do contrato e da boa-fé objetiva como fundamentos à revisão, em especial, para fundamentar a aplicação da teoria da quebra da base a todos os contratos e determinar alocação dos riscos e repartição de prejuízos entre os contratantes - o que, atualmente, como já referido, não é admitido pela jurisprudência majoritária do STJ.1

A relevância prática da aplicação da teoria da base objetiva é que, segundo o STJ, não é necessário comprovar a existência de fato imprevisível para a revisão.2

É esse o entendimento que prevalece no STJ sobre a aplicação da teoria da imprevisão, da teoria da onerosidade excessiva e da teoria da quebra da base do negócio, quando promove a exegese dos arts. 317, 478 e 479, todos do CC/02 e do art. 6º, V, 2ª parte, do CDC.3

Ainda, em precedente de 2015, aquela corte superior afirmou expressamente que a teoria da quebra da base do negócio jurídico tem sua aplicação restrita às relações jurídicas de consumo, não sendo aplicável às contratuais puramente civis ou empresariais.4

Todavia, oportuno recordar que, mesmo após a vigência do CDC, autorizadas vozes no STJ, como a do saudoso ministro Ruy Rosado de Aguiar, sustentavam que o princípio que considera ilícita a unilateral quebra da base do negócio deve ser aplicado ainda que não se reconheça a existência de relação de consumo, pois o diploma consumerista veio só reforçar sua aceitação no ordenamento jurídico nacional.5

Houve tempo em que o STJ, ao examinar em recurso especial alegada violação ao ato jurídico perfeito, reconheceu que "o respeito ao pacta sunt servanda cede passo quando surgem fatos supervenientes, suficientemente fortes para caracterizar a alteração da base em que o negócio foi realizado, que tornem insuportável o cumprimento da obrigação para uma das partes. Nessa hipótese, cabe a revisão judicial do contrato, ou mesmo sua resolução".6

Reconheceu-se também que até uma instituição financeira teria o direito de propor ação de revisão judicial de cédula de crédito rural pignoratício em que constou expressa exclusão de correção monetária, porque houve circunstâncias posteriores à contratação (inflação) que ensejavam a necessidade de modificação do contrato, celebrado quando presentes outras circunstâncias, a fim de garantir o reequilíbrio da avença.7

Aposta-se que o considerável volume de litígios que decorrerão da pandemia, ainda sem previsão para terminar, propicie uma reformulação da jurisprudência do STJ relativamente aos limites à aplicação da teoria da quebra da base negocial, mais concretizadora das cláusulas gerais da função social do contrato e da boa-fé objetiva, previstas nos arts. 421 e 422, ambos do CC/02 e que, desde o início, estiveram na gênese dessa doutrina.8

Quando a modificação da realidade objetiva exigir do contratante um sacrifício econômico não suportável, por exemplo, a ponto de inviabilizar a continuidade da atividade econômica afetada pelo contrato, a revisão judicial da avença se impõe, abarcando relações negociais civis e empresariais, pois está vulnerada a própria estrutura do contrato.9

 Portanto, não importando se a relação é de consumo ou se a parte que postula a revisão do negócio jurídico encontra-se em posição contratual de vulnerabilidade, demonstrada a existência de uma modificação da realidade objetiva na qual o negócio jurídico está inserido (v.g., uma pandemia viral e suas medidas de enfrentamento), é dever do outro contratante condicionar o exercício do seu direito à prestação contratada ao limite do sacrifício do obrigado.10 11

Entendo que o limite do sacrifício do obrigado pode ser determinado a partir do princípio geral de direito que veda o enriquecimento sem causa.

No atual CC, o enriquecimento sem causa foi contemplado expressamente a partir da cláusula geral do art. 884, tendo especial relevo ao raciocínio que se desenvolve aqui a previsão no art. 885, de que haverá enriquecimento indevido quando ele se deu sem uma causa que o justificasse ou quando essa causa, que existia inicialmente, deixou de existir.

Evidente que um decreto governamental que, para enfrentamento à pandemia da Covid-19, proíbe, por exemplo, o atendimento presencial em estabelecimentos comerciais, afeta diretamente as atividades do empresário e, de conseguinte, a redução do aluguel comercial que esse empresário paga ao locador é necessária para manter a saúde financeira da empresa e o equilíbrio do contrato de locação.12

Se o aluguel continuasse a ser pago em sua integralidade, a prestação e a contraprestação entrariam em manifesto desequilíbrio, gerando um empobrecimento indevido do locatário e um enriquecimento sem causa do locador. Se o locador não concordar com a redução do valor, estará violando dever contratual de boa-fé, bem como estará exercendo de forma abusiva seu direito à contraprestação.13

O que se exige do locador é uma concepção realista do seu direito à contraprestação diante da modificação da realidade fática que o contrato de locação comercial passou a experimentar diante da pandemia, bem assim a compreensão do locatário de que o desequilíbrio contratual se deu por fato alheio à responsabilidade do locador.14

É exemplo, dentre tantos outros, de hipótese em que os sujeitos da relação negocial devem dividir os prejuízos para reestabelecer o equilíbrio do contrato afetado pela pandemia.

Refere Clóvis do Couto e Silva que muitos autores germânicos advertem que o conceito fundamental do direito das obrigações é o da equivalência das prestações, de modo que da perda de 25% ou de cerca de 50% do seu valor já permite afirmar ter-se rompido a base objetiva do contrato.15

Entende-se, ademais, que o locador não teria direito de postular a resolução do contrato por inadimplemento do locatário, pois o direito potestativo à resolução do contrato só passaria a existir depois que o locador cumprisse seu dever de cooperação para a manutenção e execução do contrato, oportunizando a renegociação.16

A par disso, frustrada a tentativa de renegociação extrajudicial, o reconhecimento pelo Poder Judiciário da necessidade de revisão contratual não conflitaria com a função econômica do contrato, mas promoveria uma readequação do exercício do direito/liberdade contratual do locatário aos limites da função social do contrato de locação comercial, nos termos do caput do art. 421 do CC/2002, já com a nova redação dada pela Lei nº 13.874/2019.17

Em situações similares à hipótese acima referida, haverá quebra da base negocial e, para seu reconhecimento, com consequente readequação judicial do contrato, não é necessário invocar o disposto no art. 6º, inc. V, 2ª parte, do CDC e, de conseguinte, a jurisprudência restritiva do STJ limitando a aplicação dessa teoria apenas às relações de consumo.

Pode-se, outrossim, a partir da demonstração pelo contratante de que, por conta da pandemia do novo coronavírus, a execução das obrigações contratadas acarretará encargos ou  causará um prejuízo econômico cujo valor ultrapassará o limite do sacrifício razoavelmente projetável à época da celebração do contrato para uma situação de anormalidade, requerer ao Poder Judiciário, em nome do princípio da conservação do negócio jurídico, o reconhecimento i) do direito à revisão de cláusulas da avença com fundamento na cláusula geral de boa-fé objetiva, na vedação ao abuso de direito e na proibição de enriquecimento sem causa, que autorizam - através de expressas previsões legais no CC/02 - a possibilidade de aplicação da teoria da quebra da base objetiva a qualquer contrato (civil ou empresarial)  bilateral, comutativo e de prestações de execução continuada ou diferida, não só aos contratos de consumo, ou ii) do direito à resolução do negócio.18

O nosso sistema jurídico admite a adoção da teoria da base objetiva do negócio jurídico - e de forma ampla -, porque todo negócio jurídico experimenta a tensão permanente entre o contratado entre as partes e a realidade econômica. E a base objetiva do contrato, antes de ser uma teoria ou um artigo de lei, é essa inegável e real tensão.

Recorde-se, ademais, que a base objetiva é um modelo jurídico próprio e independente, cuja formulação sistêmica está no princípio da boa-fé objetiva, tendo seu desenvolvimento sido obra da jurisprudência e da doutrina, na procura de adaptar o contrato às novas realidades econômicas.19

A aplicação da teoria da base negocial é uma alternativa à revisão/resolução judicial dos contratos quando não demonstráveis de plano as mudanças supervenientes das circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de evento imprevisível ou de evento imprevisível e extraordinário, que comprometam o valor da prestação, demandando tutela jurisdicional específica, nos termos dos arts. 317 e 478 do CC/02, que estabelecem os pressupostos à aplicação, respectivamente, da teoria da imprevisão e da teoria da onerosidade excessiva.

Não se desconhece que esse avanço jurisprudencial é lento. Todavia é necessário. Recorde-se que até janeiro de 2003 o ordenamento jurídico brasileiro mantinha a boa-fé objetiva no âmbito das relações de consumo e que a jurisprudência estendia sua aplicação apenas àquelas situações em que se verificasse a presença de uma parte vulnerável a ser protegida.20

Como a teoria da base do negócio tem fundamento na boa-fé objetiva e o CC/02 impõe a aplicação desse princípio a todas as relações contratuais, não se justifica dentro do sistema jurídico vigente as restrições impostas pela jurisprudência para a revisão contratual por quebra da base negocial.

Sob esse prisma, oportuno que o STJ inicie um processo de superação dos precedentes sobre o tema e passe a admitir a aplicação da teoria da quebra da base não só às relações de consumo, mas a todas as relações negociais, a partir da cláusula geral de boa-fé objetiva, da vedação ao abuso de direito e da proibição ao enriquecimento sem causa, em uma interpretação sistemática dos arts. 422, 187 e 884, todos do CC/02.

__________

1- Lei nº 13.874, de 20.092019.

2- A afirmação do STJ no sentido de que a teoria da base do negócio dispensa a imprevisibilidade do evento sofre críticas da doutrina especializada, sustentando que o art. 6º, V, do CDC não trata propriamente da teoria da base do negócio, mas sim de um regime revisional próprio (FRITZ, Karina Nunes. Revisão contratual e quebra da base do negócio. Migalhas de Peso, Portal Migalhas, 17.12.2020, p. 22 e 23).

 

3- REsp nº 268.661/RJ, Terceira Turma do STJ, rela. Mina. NANCY ANDRIGHI, DJ de 24.09.2001.

4- REsp 1.321.614-SP, Terceira Turma do STJ, rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, DJe 03.03.2015.

5- REsp nº 300.129/RJ, Quarta Turma do STJ, rel. Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, DJ de 29.10.2001.

6- REsp nº 73.370/AM, Quarta Turma do STJ, rel. Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, DJ de 12.02.1996.

7- REsp nº 32.488-2/GO, Quarta Turma do STJ, rel. Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, DJ de 05.12.1994.

8- Na lição de Karina Nunes Fritz, a teoria da base do negócio é uma decorrência lógica e axiológica da boa-fé objetiva, consagrada no art. 422 CC2002. A uma, porque nada pode ser mais desleal que exigir o cumprimento do contrato profundamente perturbado em sua base por eventos extraordinários e alheios à esfera de risco e responsabilidade do contratante, razão pela qual alguns procuraram até impor um dever de renegociar ao credor. A duas, porque a boa-fé exige a correção do desequilíbrio superveniente ao exigir que a parte tenha consideração pelos interesses legítimos da outra, primando pelo equilíbrio (justiça) contratual (FRITZ, op. cit., p. 22).

9- SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O Direito Privado Brasileiro na Visão de Clóvis do Couto e Silva; org. Vera Maria Jacob de Fradera. 2. ed. rev. - Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014 (A teoria da base do negócio jurídico no Direito Brasileiro - Extrato de parecer, publicado na Revista dos Tribunais nº655, 1990).

10- O Relator do REsp 1.321.614-SP, Terceira Turma do STJ, DJe 03.03.2015, Min. PAULO DE TARSO, em voto vencido, sustentou a aplicabilidade da teoria da quebra da base objetiva do negócio jurídico, para além das relações de consumo.

11- Sobre o conceito de "limite do sacrifício" (Opfergrenze) do direito alemão, previsto no § 242 do BGB, ver SILVA, op. cit., p. 130.

12- Para opções à readequação do contrato de locação comercial, ver: PIETNICZKA JUNIOR, Nelson et. al. Reajuste de aluguel em tempos de Covid-19. Portal Consultor Jurídico, 16.01.2021.

13- Sobre vedação de liminar em despejo, ver: art. 9º da Lei nº 14.010, de 10.06.2002 (Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado).

14- A expressão concepção realista é de Orlando Gomes, ao tratar da teoria do abuso dos direitos, ver: Introdução ao Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1995, p., 131.

15- Refere a doutrina de Kegel, Rupp, Zweigert, Die Einwirkung des Krieges auf Verträge, 1941, p. 202; Wieacker, "Gemeinschemeinschaflier Irrtum der Vertragspartner uma cláusula rebus sic stantibus", in Festschrift für Wilburg, 1965, pp. 229 e ss.; Peter Ulmer, Wirtschaftslenkung und Vertragserfüllung cit., p. 181 (SILVA, op. cit.).

16- Desenvolve-se o raciocínio a partir da ideia de violação positiva do contrato pela parte credora, decorrente do descumprimento ao dever de cooperação entre as partes contratantes.

17- Resp nº 803.481/GO, Terceira Turma do STJ, rela. Mina. NANCY ANDRIGHI, DJ de 01.08.2007.

18- O princípio da conservação dos negócios jurídicos (utile per inutile non vitiatur, ou seja, um ato válido não se vicia por uma cláusula inválida), tem previsão expressa nos arts. 184 do CC/2002 e 51, § 2º, do CDC.

19- SILVA, op. cit.

20- TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil de 2002. In: PASQUALOTTO, Adalberto; PFEIFFER, Roberto Augusto Castellos. Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 - Convergências e assimetrias. São Paulo: RT, 2005, p. 221.

Fabiano Cotta de Mello

Fabiano Cotta de Mello

Advogado em Mato Grosso e Brasília, mestre em Direito pela UFMT, professor e ex-assessor técnico-jurídico do TJ/RS e do TJ/MT.

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