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Embriaguez ao volante

Atualmente, prevalece na jurisprudência que o delito de embriaguez ao volante é de perigo abstrato e que o simples fato de dirigir com a concentração de álcool prevista na lei já é suficiente à consumação do delito.

sexta-feira, 12 de março de 2021

Atualizado às 14:17

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

1. INTRODUÇÃO

O crime de embriaguez ao volante está presente no cotidiano dos brasileiros. É amplamente discutido na mídia e é causa de diversos acidentes, sendo pouco provável que alguém desconheça casos em que a mistura entre álcool e condução de veículo automotor foi nociva à sociedade e às vítimas dos acidentes causados pela condução perigosa.

Neste artigo, entende-se que tal fato deve ser combatido, tanto de modo preventivo quanto repressivo, para proteger a sociedade dos indivíduos que dirigem sob a influência de álcool ou outras substâncias psicoativas, contudo, numa análise crítica do tema, sem deixar escapar os princípios e garantias penais e constitucionais que norteiam nosso Estado de Direito.

Atualmente, prevalece na jurisprudência que o delito de embriaguez ao volante é de perigo abstrato e que o simples fato de dirigir com a concentração de álcool prevista na lei já é suficiente à consumação do delito.

No entanto, este entendimento adequa-se à interpretação constitucional do tema? Os crimes de perigo abstrato são admissíveis num Estado Democrático de Direito? Pessoas diferentes que mantêm a mesma concentração de álcool no sangue reagem da mesma forma? A forma como as pessoas reagem ao álcool interfere na subsunção dos fatos concretamente analisados ao tipo penal do artigo 306, do Código de Trânsito Brasileiro? A "capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool" prevista no referido dispositivo legal pressupõe atos atentatórios à segurança viária?

A princípio, parece que a complexidade do assunto não permite que seja resolvido com um simples exame de etilômetro ou sangue para constatar concentração de álcool igual ou superior a 6 decigramas por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama por litro de ar alveolar. Aparentemente, tais critérios não bastam nem à prevenção e repressão do delito, nem à manutenção da segurança viária, nem aos direitos e garantias individuais preconizados num Estado Democrático de Direito.

2. PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE

Guia-se o direito penal por princípios que, alicerçados na Constituição Federal, visam à garantia de proteção a bens jurídicos. Consoante o princípio da fragmentariedade, o direito criminal não se preocupa com todos os bens jurídicos, porém tão somente com aqueles que representam intolerável lesão ou, ao menos, perigo de lesão a bens jurídicos.

Depreende-se, então, que de acordo com o princípio da ofensividade, podem ser criminosas apenas as condutas que, além de possuírem acentuado desvalor social, apresentem lesão, ao menos potencial, a bens jurídicos de terceiros.

Em complemento, importante mencionar o princípio da alteridade, segundo o qual apenas condutas que lesionem bens jurídicos de terceiros - não do próprio agente - é que poderão ser objeto de criminalização.

Deste modo, verifica-se que o princípio da ofensividade funciona como limite ao direito de punir do Estado, pois estabelece que apenas poderão ser tipificadas as condutas lesivas ou, ao menos, potencialmente lesivas a bens jurídicos de terceiros.

3. CRIME DE PERIGO

Trata-se de classificação de crime consistente exatamente na conduta potencialmente lesiva a bens jurídicos de terceiros, conforme explicitado no tópico precedente. Assim, tem-se que o crime de perigo dispensa o efetivo dano, exigindo apenas que o bem jurídico protegido esteja em risco real. Diferencia-se, pois, do crime de dano, o qual o pressupõe.

Fernando Capez leciona que os crimes de perigo são aqueles que "para a consumação, basta a possibilidade de dano, ou seja, a exposição do bem a perigo de dano".1

O crime de perigo concreto consiste na própria representação do crime de perigo, atendendo ao parâmetro do princípio da ofensividade. Isto é, o delito de perigo concreto se consuma somente se constatado o real risco a bens jurídicos.

O resultado jurídico é presente em todos os crimes, consistindo na ofensa ao bem jurídico tutelado pela lei penal; ofensa esta que pode ser real, reduzindo ou até mesmo exterminando o bem jurídico tutelado, ou de perigo efetivo, que põe o bem jurídico em risco iminente.

Ressalta-se que, no delito de perigo concreto, necessita-se da comprovação de antijuridicidade material, não a suprindo a antijuridicidade formal, tida como mera contrariedade do fato ao ordenamento. Portanto, para o delito de perigo concreto, faz-se imprescindível a perniciosidade real da conduta.

Entende-se que o delito de perigo concreto foi concebido pelo ordenamento jurídico pátrio em razão de haver bens jurídicos demasiadamente importantes, de modo que se faz necessária lei incriminadora para proibir e punir condutas que os afrontem, pois, mesmo que inexistente resultado fático que efetivamente os lesionem, o risco de lesão basta para que sejam tutelados penalmente.

Em contrapartida, o crime de perigo abstrato prescinde da existência de fundado risco de lesão a bens jurídicos. Aqui, nesta espécie, há presunção de perigo, logo, pune-se a ação do indivíduo apenas em decorrência da previsão do fato como criminoso, independentemente da real perniciosidade da conduta.

Então, a cabal diferença entre os delitos de perigo concreto e abstrato é que o primeiro tem como elementar do tipo penal o risco causado a terceiros pela conduta, enquanto o segundo não o possui.

Apesar disso, o delito de perigo abstrato é rechaçado com afinco por parte da doutrina, pois, em razão da prescindibilidade de comprovação de risco real da conduta, fere-se o princípio da lesividade (ofensividade), o qual, como visto, é pressuposto imprescindível à salvaguarda dos direitos individuais na figura do Estado Democrático de Direito decorrente da Constituição Federal de 1988.

Ademais, não somente o princípio da lesividade é inobservado pela referida categoria de crime. Também se deixa de respeitar o princípio da intervenção mínima, o qual preleciona que o direito penal serve somente quando for o único meio possível para conter a ação indesejada, cujo fundamento repousa no artigo 8º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ao preconizar que a lei só deve prever as penas estritamente necessárias2.

4. DISCIPLINA LEGAL DO DELITO DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE

O artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, com redação dada pela lei 12.760/12, prevê em seu caput a elementar do tipo "influência do álcool ou outra substância psicoativa". Portanto, pode-se afirmar que, com o advento da lei 11.760/12, o legislador teria aceitado que o delito necessita que a "influência do álcool ou outra substância psicoativa" afete a condução do veículo automotor pelo agente.

Noutros termos, teria o legislador admitido que o delito previsto antes da alteração legislativa era de perigo abstrato, pois não exigia a condução perigosa em razão da influência do álcool. No entanto, ao incluir expressamente a necessidade de o condutor dirigir sob a influência de álcool, consignou o legislador que o delito de embriaguez ao volante é de perigo concreto. Ainda, o parágrafo primeiro do referido artigo prevê que a influência de álcool ou outra substância psicoativa pode ser constatada pela "concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar", de modo que, o que antes era crime, agora é apenas meio de prova, sendo imprescindível a ocorrência de direção perigosa e o nexo de causalidade entre o perigo e a influência exercida pelo álcool ou substância psicoativa no agente.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve como finalidade o estudo do delito de embriaguez ao volante de forma criteriosa, notadamente na qualidade de crime de perigo concreto. Para tanto, foi exposto o princípio da ofensividade ou lesividade, com o intuito de nortear a interpretação das leis penais em conformidade com o referido princípio penal-constitucional.

Posteriormente, foram tratadas as classificações dos crimes de perigo, distinguindo os crimes de perigo abstrato daqueles de perigo concreto.

Por fim, foi analisada a atual redação do artigo 306, do Código de Trânsito Brasileiro, com o fito de interpretá-la consoante princípios constitucionais.

Pelo estudo acima exposto, depreende-se que, sobretudo após a lei 12.760/12, quando se passou a exigir para a consumação do delito "capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool", tornou-se clara a intenção do legislador em enquadrar o crime de embriaguez ao volante como de perigo concreto.

Noutras palavras, o tipo penal passou a prever a conduta de "conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada", o que é completamente diferente de "conduzir veículo automotor com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas".

É bastante provável que pessoas diferentes (por exemplo, uma mulher de 50 kg não habituada ao consumo de álcool e um homem de 120 kg habituado a ingerir tal substância) reajam de forma diferente, mesmo se mantiverem exatamente a mesma quantidade de álcool por litro de sangue.

Dessa forma, é possível que 6 decigramas de álcool por litro de sangue sejam insuficientes para alterar a capacidade psicomotora de alguém, enquanto a metade desta concentração (3 decigramas) pode ser mais que suficiente para alterar a capacidade psicomotora de outra pessoa, impossibilitando-a de conduzir veículo automotor sem pôr em risco a segurança viária.

Assim, utilizar a concentração aritmética prevista no inc. I, do § 1º, do art. 306, do CTB, como base inconteste para tipificação do delito demonstra equívoco na compreensão do tipo penal, isto é, quais condutas são, a priori, proibidas, haja vista que a referida concentração atualmente não passa de meio de prova.

Além disso, a mera avaliação da concentração de álcool no sangue do agente possibilita a punição de fato que não deveria ser punido, por não proporcionar risco algum a qualquer bem jurídico, e a não punição de fato praticado por pessoa que, pela pouca resistência ao álcool, ofendeu o bem jurídico tutelado pela norma (coletividade), conduzindo veículo automotor de forma perigosa.

Destarte, infere-se do presente estudo que a subsunção dos fatos ao art. 306, do CTB prescinde da presença de álcool na concentração prevista no inc. I, do § 1º, do referido dispositivo legal, sob pena de ofensa aos princípios da (i) ofensividade, haja vista que não necessariamente o motorista, apenas em razão da concentração de álcool sobredita, conduza o veículo de modo temerário, colocando a coletividade em perigo; (ii) isonomia, pois não deve o ordenamento tratar igualmente situações desiguais, sobretudo em casos de tipificação penal de fatos díspares, porquanto atualmente prevalece que tanto pessoas embriagadas quanto não embriagadas respondem pelo mesmo delito; e (iii) proporcionalidade, pois é inconcebível que conduta não lesiva e sequer perigosa possa ser tipificada como crime.

Por fim, conclui-se que a correta interpretação da norma em comento depende de plena consonância aos princípios constitucionais, notadamente ao princípio da ofensividade, e integral respeito às garantias individuais preconizadas em um Estado Democrático de Direito, para somente assim atender à real vontade do legislador, qual seja, punir fatos que ofendam o bem jurídico tutelado pela norma (coletividade). Para tanto, faz-se necessário avaliar cada caso concreto isoladamente, a fim de constatar se o agente conduzia veículo com capacidade psicomotora alterada pela influência do álcool, expondo a risco a segurança viária - caso em que seria admitida a infração penal -, ou se o fato praticado não expõe a coletividade a risco e, portanto, não ofende o bem jurídico tutelado, caso em que seria admitida apenas a infração administrativa.

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1 CAPEZ. Fernando. Curso de Direito Penal. Vol. 01. Parte Geral. 9ª Ed. São Paulo. Saraiva. 2005. P 261.
2 CAPEZ, Fernando. op. cit., p. 36.

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CAPEZ. Fernando. Curso de Direito Penal. Vol. 01. Parte Geral. 9ª Ed. São Paulo. Saraiva. 2005.
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito Penal. Série as ciências criminais no século XXI. vol. 6. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais: 2002.
JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patrícia. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
EWERTON, Conrado Álvares. Crime de Perigo Abstrato, 2011. Acesso em: 2 dez. 2020.
GOMES, Luiz Flávio. Reforma do Código de Trânsito (lei 11.705 /2008): novo delito de embriaguez ao volante. Acesso em: 3 dez. 2020.

Victor Luiz de Andrade

Victor Luiz de Andrade

Estudante de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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