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"Cala a boca já morreu...!" Liberdade de expressão e o direito da sociedade auditar as contas públicas

Como demandar maior transparência pública na solicitação de informações do Estado no qual os cidadãos são impedidos de se expressar livremente?

segunda-feira, 22 de março de 2021

Atualizado às 13:42

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O título deste artigo não poderia deixar de fazer menção à antológica frase cunhada no jargão da sabedoria popular e proferida pela Ministra Cármem Lúcia, recentemente citada no voto proferido pelo Ministro Ricardo Lewandowsky nos autos da RCL 43007 AGR/DF que tratava do compartilhamento de provas da denominada "Operação Spoofing", plasmada no voto oriundo na ADI 4815/DF, em defesa da ampla divulgação de informações de interesse público - naquela ação derivadas de obras biográfica, literárias ou audiovisuais: "Cala boca já morreu ...!"1.

O primado da transparência é nuclear para o exercício do controle social da administração pública, nos termos do art. 5º, LXXIII da Constituição Federal2. A esse respeito, a decisão proferida pelo ex Ministro Celso de Mello nos autos do Inquérito 4.831/DF3 é magistral ao descrever que "Os estatutos do poder, em uma República fundada em bases democráticas, não podem privilegiar o mistério nem legitimar o culto ao sigilo: consequente necessidade de este Inquérito transcorrer sob a égide do postulado da publicidade".

Na mesma linha foi a decisão proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do MI 284/DF, cuja redação do acórdão também foi da lavra do ex Min. Celso de Mello (RTJ 139/712-732), dispondo que "o novo estatuto político brasileiro - que rejeita o poder que oculta e que não tolera o poder que se oculta - consagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como valor constitucional a ser observado, inscrevendo-a, em face de sua alta significação, na própria declaração de direitos e garantias fundamentais reconhecidos e assegurados pela Constituição da República aos cidadãos em geral".

Mas o que esperar de um país que pune uma jogadora de vôlei de praia (Carol Solberg) por ter gritado "Fora, Bolsonaro" durante entrevista ao vivo, na cerimônia de premiação da etapa de Saquarema (RJ) do Circuito Brasileiro do Vôlei de Praia? Ou mesmo de um delegado de polícia que envia uma intimação para o YouTuber Felipe Neto responder a um inquérito sobre um suposto "crime contra a segurança nacional" por ter usado a expressão "genocida" se referindo a potencial omissão do presidente em razão do número de mortos pela COVID-19 no Brasil4?

Nesse diapasão, a questão fulcral deste artigo é: como demandar maior transparência pública na solicitação de informações do Estado no qual os cidadãos são impedidos de se expressar livremente?

Ora bolas, se a mensagem não agrada, que "matem o mensageiro"!

"Matar o mensageiro" é uma expressão que atribuída a Dario III, rei da Pérsia, por volta do ano de 333 a.C., ao mandar executar o oficial que lhe levou a notícia da derrota de seu exército por Alexandre da Macedônia. Mas certamente este não foi o único soberano ou membro da alta casta da realeza a mandar executar portadores de más notícias.

Para contextualizar este artigo no tempo e espaço, é preciso mencionar que há, hodiernamente, um certo modismo no tocante a processos judiciais oriundos de "crimes contra a honra", "crimes contra a segurança nacional" e, no caso dos servidores públicos, ainda se encontram alguns enquadramentos absurdos como o de "violação de sigilo funcional".

Frise-se que esse movimento por parte do Estado tem o condão de gerar uma retração ainda maior a respeito do desenvolvimento da democracia brasileira no que tange aos postulados da liberdade de expressão e transparência. Ou seja, afasta-se de uma condição de liberdade e publicidade para atingir um indesejável estado de medo e paralisia.

No capítulo "ideologia e terror" na saudosa obra Hannah Arendt "Origens do Totalitarismo", ela explica que o terror procura "estabilizar" homens. Esse movimento seleciona os inimigos da humanidade (ou do Estado) contra os quais se desencadeia o terror, e não pode permitir que qualquer ação livre interfira com a eliminação do inimigo objetivo5.

É justamente por este motivo que a sociedade brasileira não pode ficar apática no que diz respeito a essas investidas antidemocráticas que subjazem no terror em face de supostas "personas non gratas".

Esse fato ainda fica mais agravado no caso dos servidores públicos que tem verdadeiro DEVER de comunicar irregularidades que ocorrem na repartição pública, em respeito aos arts. 116 e 126-A da lei 8.112/90 e sob a proteção que lhe confere os arts. 4º-A, 4º-B e 4-ºC da lei 13.608/18.

Não é demais lembrar do famoso caso ocorrido na Inglaterra em 13 de novembro de 2003 acerca do suposto vazamento dos motivos nada ortodoxos e ilegais que deram ensejo à guerra contra o Iraque e Sadam Hussein. Nesse sentido, Katherine Gun foi acusada de um delito nos termos da seção 1 da Lei de Segredos Oficiais de 1989 (que no Brasil seria equivalente a violação de sigilo funcional) e que deu origem ao longa metragem "Segredos Oficiais"6.

O caso foi levado ao tribunal em 25 de fevereiro de 2004. Contudo, passados apenas 30 minutos da audiência, o caso foi encerrado porque a promotoria se recusou a oferecer provas. Na época, as razões para o Procurador-Geral desistir do caso eram obscuras. Mas no dia anterior ao julgamento, a equipe de defesa de Gun solicitou ao governo quaisquer registros e documentos de aconselhamento jurídico sobre a legalidade da guerra que recebeu durante o período que antecedeu a guerra. Dessa maneira, um julgamento completo (full disclosure) poderia ter exposto tais documentos ao escrutínio público, uma vez que se esperava que a defesa argumentasse que a tentativa da whistleblower de impedir uma guerra ilegal de agressão superava as obrigações da Gun no tocante a Lei de Segredos Oficiais.

Destarte, sábias são as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello ao ressaltar o dever administrativo de manter plena transparência em seus comportamentos impõe não haver em um Estado Democrático de Direito, no qual o poder reside no povo, ocultamento aos administrados dos assuntos que a todos interessam, e muito menos em relação aos sujeitos individualmente afetados por alguma medida7.

No mesmo sentido, o princípio da transparência fiscal, agora expresso na Carta Magna através do novel art. 163-A da Constituição Federal, incluído pela recente Emenda Constitucional nº 108, de 26 de agosto de 2020 permite a irradiação dos corolários da accountability, responsividade, rastreabilidade das verbas públicas e o combate à corrupção. E determina que as operações de concessões de incentivos fiscais, verbas de fomento público seja direto ou indireto, sejam efetivamente transparentes.

Por outro lado, na contramão deste entendimento, a Plataforma Fala.Br que é responsável por viabilizar a utilização pela sociedade da ferramenta constante na lei 12.527/11 Lei de Acesso à Informação - LAI, demonstra que desde 01 de janeiro de 2019 até o dia 18 de março de 2021, somente 53,2% dos órgãos públicos federais cumprem os itens de transparência ativa. Já 36,9% não cumpre e o restante cumpre parcialmente. O que significa um descumprimento de quase 50%, só no que tange a questão da transparência ativa8.

No que diz respeito aos Recursos Administrativos interpostos no período de 01 de janeiro de 2019 até o dia 18 de março de 2021, o montante de 35% das decisões foi de deferimento do Recurso e 6,22% foram deferidos parcialmente, totalizando 41,22% de êxito. Isso porque 15,86% dos Recursos não foram conhecidos e 3,73% perderam o objeto. O que sobra o montante de 38,61% de indeferimento do pedido9.

Portanto, apesar do excelente trabalho realizado pela Controladoria Geral da União para garantir, ao menos em sede recursal, a transparência que se deve perquirir dos órgãos públicos com vistas a prevenção e combate à corrupção; com base nos dados suscitados, fica evidenciada a premente necessidade de amadurecimento da sociedade brasileira para se atingir um estágio de maior transparência pública - essencial para a construção de um verdadeiro estado democrático de direito.

Veja-se que são várias barreiras invisíveis que impedem o devido acesso da população a documentos públicos, começando pela necessidade de solicitação pela plataforma e perpassando pela interposição de diversos recursos administrativos e até mesmo ações judiciais para que o cidadão possa ter resguardado o seu direito de auditar os documentos públicos. Contudo, são assustadores os números esposados acima que demonstram a inversão completa da regra da publicidade.

É justamente para que não aconteça esse tipo de movimento que a Lei de Acesso à informação, logo em seu art. 3º aduz que a publicidade se estabelece como preceito geral e o sigilo, como exceção. Trata-se, portanto, de um instrumento democrático de Participação e Controle Social.

Ora, é a garantia ao exercício do controle social sobre recursos públicos transferidos ao setor privado, seja por meio de gastos indiretos do Estado ou de hipóteses de incidência tributária, somado ao interesse maior de prevenção e combate à corrupção, justificam que seja dada a mais lúcida transparência em relação aos benefícios e ajustes fiscais efetivados.

Não é à toa que o professor Ricardo Lobo Torres aduz que a legitimidade do estado democrático de direito depende do controle da legitimidade da sua ordem financeira. Só o controle rápido, eficiente, seguro, transparente e valorativo dos gastos públicos legitima o tributo, que é o preço da liberdade. O aperfeiçoamento do controle é que pode derrotar a moral tributária cínica, que prega a sonegação e a desobediência civil a pretexto da ilegitimidade da despesa pública10.

Os estatutos do poder, que são elementos fundantes em uma República estatuída em bases democráticas, não podem jamais privilegiar o mistério, haja vista que a supressão do regime visível e público de governo (que deve ter na transparência a condição de legitimidade de seus próprios atos) sempre coincide com os tempos mais sombrios de nossa história em que declinam as liberdades e violam os direitos dos cidadãos. Não é à toa que, etimologicamente, o próprio termo "República" deriva de duas expressões em latim "res" (coisa) e pública (do povo).

É por isso que ainda precisamos de alguém para dizer em alto e bom som que: "Cala boca já morreu ...!"  e não mais admitir que se "matem os mensageiros" - ne nuntium necare.

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1- SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RCL 43007 AGR / DF, Relator(a): Min. Ricardo Lewandowsky, decidido em 09/02/2021. Disponível aqui. Acesso em 10 de fevereiro de 2021.

2- "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência"; (...)

3- SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Inq.  4.831/DF, Relator(a): Min. Celso de Mello, decidido em 05/05/2020. Disponível aqui. Acesso em 10 de agosto de 2020.

4- G1. Defesa de Felipe Neto diz que investigação da Polícia Civil por crime contra a Lei de Segurança Nacional é ilegal. Disponível aqui. Acesso em 18 de março de 2021.

5- ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.517.

6- O longa metragem se encontra disponível na plataforma Amazon Prime.

7- MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 114.

8- CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO. Disponível aqui. Acesso em 18 de março de 2021.

9- Idem.

10- TORRES, Ricardo Lobo. Uma Avaliação das Tendências Contemporâneas do Direito Administrativo. Obra em homenagem a Eduardo García de Enterría. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 645.

Magno de Aguiar Maranhão Junior

Magno de Aguiar Maranhão Junior

Professor da FTESM e especialista em Regulação da ANCINE. Mestrando em Direito na linha de Finanças, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ. Especialista em Direito Civil-Constitucional pela UERJ.

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