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A mediação como procedimento da justiça multiportas no Brasil

A importância de compreender o procedimento da mediação para o fortalecimento da justiça multiportas no Brasil.

terça-feira, 23 de março de 2021

Atualizado às 13:42

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Não é recente a discussão sobre o esgotamento das vias tradicionais do Poder Judiciário. Conflitos que buscam solução pela via judicial ultrapassam a impressionante marca dos 100 milhões de processos.1 Em uma população de 202 milhões de habitantes e considerando que em cada processo judicial necessariamente figuram ao menos duas partes, chega-se à hipótese de que toda população brasileira estaria envolvida em alguma contenda judicial.

A título de exemplo acerca do assombroso fluxo de processos que recai sobre um só magistrado, no Estado do Rio de Janeiro, cada magistrado julgou no ano de 2019, em média 4281 casos2. Na Justiça Comum de São Paulo, por sua vez, tramitam mais de 25 milhões de ações para 25013 magistrados. Tais números suscitam uma série de importantes reflexões, dentre as quais, a dificuldade em conceder a celeridade que um processo necessita.

Nesse contexto, a possibilidade de solucionar conflitos por outras portas além dos processos judiciais mostra-se promissora. O Código de Processo Civil, dispôs no artigo 3º, parágrafo 3º que "a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial"4, o que denota a tendência do fortalecimento dos mecanismos alternativos de solução de conflitos e da  sedimentação de uma justiça multiportas no Brasil, onde o jurisdicionado opta pelo procedimento que melhor se adequar ao caso concreto.

Outra reflexão relevante situa-se no fato de que algumas situações conflitantes necessitam de um procedimento que permita adentrar em sentimentos e necessidades implícitas. Em alguns conflitos, as pessoas trazem uma pequena parte aparente traduzida nas posições ou pedidos relatados objetivamente, no entanto, há uma parte encoberta consubstanciada nos interesses ou necessidades submersas, que, podem constituir no cerne da questão conflitante, e que se não forem trabalhadas em procedimentos adequados e continuarem sem esclarecimento poderão suscitar novas demandas.

Os idealizadores do Projeto de Negociação de Harvard, Roger Fisher, William Ury e Bruce Patton5, defendem que por trás das posições defendidas em uma determinada questão há importantes interesses que não estão aparentes, em um primeiro momento, mas que somente buscando atender a estes interesses é que as partes da relação conflitante terão a chance de construírem uma solução equilibrada em que benefícios mútuos são alcançados.

Seguindo a tendência preconizada pelo Código de Processo Civil de estímulo à utilização dos Meios Alternativos de solução de Conflitos (MASCs), na quinta-feira (11/03/21) o ministro Luis Roberto Barroso, ao tecer reflexão sobre a exacerbada judicialização no Brasil, afirmou que "não há estrutura - cara como seja - que possa suportar um crescente aumento de demandas que poderiam ser evitadas por composição dos litígios sem ação judicial."6

Assim, urge que se fortaleça a percepção de que "a justiça estatal clássica, adjudicada pelo juiz, não é mais o único meio adequado para a solução dos conflitos. Ao lado desta justiça de porta única, [...] a justiça se torna uma justiça multiportas" (DIDIER; ZANETI, 2018, p. 38)

A mediação, um dos Meios Alternativos (ou seriam adequados?) de Solução de Conflitos, possui peculiaridades que se mostram altamente benéficas e que, por esta razão, deve ser fortemente difundida, a fim de que, no memento em que o jurisdicionado deparar-se com uma situação conflitante possa optar, dentre as múltiplas portas da justiça, pela que lhe parecer mais adequada à questão enfrentada.

Na mediação são as próprias partes envolvidas no conflito que decidem e desenham a solução que lhes for mais benéfica, razão pela qual é denominada autocomposição, enquanto o processo judicial consiste em uma heterocomposição, uma vez que é um terceiro, o juiz, quem determinará a solução para o conflito. Além desta substancial diferença, outra nuance que a torna única consiste na função de adentrar profundamente nas necessidades e sentimentos que não são visíveis, em um primeiro momento, mas que se mostram latentes sustentando as posições aparentes nos conflitos.

Diferentemente do processo judicial, a mediação é um procedimento caracterizado pela informalidade, onde não há uma série de etapas processuais que deverão ser cumpridas, razão pela qual consiste em procedimento célere e econômico, do ponto de vista financeiro, haja vista serem reunidas todas as "etapas" procedimentais em uma ou mais sessões de mediação.

Caso as partes queiram, podem levar seu advogado na sessão de mediação, o qual será sempre bem-vindo pois poderá auxiliar seu cliente com suas dúvidas jurídicas. Todavia, não é obrigatória a presença do causídico, sendo uma faculdade dos mediandos, levá-los ou não nas sessões. Caso as partes não estejam acompanhadas de seus advogados, mas durante a sessão sintam necessidade de consultá-los, a sessão pode ser suspensa para que com eles conversem, sendo possível a posterior retomada da questão em outra sessão de mediação.

Por se tratar de autocomposição o papel do mediador não se confunde com a posição do juiz ou do árbitro, em arbitragens. O mediador é um terceiro imparcial que auxilia as partes, por meio de técnicas e ferramentas destinadas a melhorar o diálogo entre os mediandos para que estes encontrem o melhor caminho para solucionarem a questão que os leva à sessão. Assim, o mediador não decide, não julga, nem presta assessoria jurídica.

A lei 13.140/15, também conhecida por Lei da Mediação, dispõe em seu artigo 3º que "pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação" e ainda prevê que "o consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público", no parágrafo 2º do mesmo artigo.7

Assim, desde que respeitadas as prescrições acima dispostas pela legislação, a mediação pode tratar tanto de conflitos que já são objeto de processo judicial quanto os que não estejam inseridos na via judicial. Nesse contexto, qualquer pessoa, envolvida em uma desavença pode tomar a iniciativa de, por meio do mediador, enviar à outra pessoa envolvida na questão conflitante, uma carta-convite para que, caso também esteja disposta ao diálogo, comparecer na data, horário e local indicados a fim de que juntos e auxiliados pelo mediador, possam encontrar a solução mais benéfica e justa para ambos. A vontade das partes em participarem da sessão constitui em princípio da mediação, não sendo possível a ninguém, obrigá-las a isso. Caso ao final da sessão as partes cheguem a um acordo, este é transcrito, as partes assinam, e podem ou não encaminhar para homologação do juiz, caso optem pela homologação, o acordo valerá como título executivo judicial, possuindo, portanto, a mesma força de uma sentença judicial.

Caso os mediandos não cheguem a um acordo, mas percebam que tenham avançado no diálogo e que por isso desejam participar de uma outra sessão, em momento posterior, para prosseguirem no diálogo sobre a questão, é possível.  O tempo entre uma sessão e outra, aliado aos avanços obtidos por meio do diálogo na primeira sessão, podem levar ao amadurecimento de uma nova perspectiva acerca da outra pessoa envolvida na questão e do próprio conflito.

A mediação pode também ser judicial, ou seja, o juiz, em um processo judicial determina a realização de sessão de conciliação ou mediação para tentativa de acordo antes do processo ter prosseguimento. Essa modalidade atende especificamente ao artigo 3º, parágrafo 3º do Código de Processo Civil.

Tanto na mediação extrajudicial quanto na judicial, é possível que ocorram sessões privadas, momento em que o mediador conversará mais abertamente com os mediandos, buscando elementos que auxiliem na promoção da pacificação da questão conflituosa e da efetivação de um eventual acordo.

O princípio da confidencialidade é fortemente respeitado na mediação, portanto tudo o que for dito na sessão não pode ser utilizado, em um outro momento, nem pelo mediador, nem pelas partes, nem pelos advogados das partes.

Além de ser um procedimento extremamente benigno, uma vez que evita a potencialização do desgaste advindo de um conflito e permite que as próprias partes alcancem a solução que melhor lhes atenda, a mediação vem de encontro com a necessidade de fortalecimento da Justiça Multiportas no Brasil em que o processo judicial se reserve às demandas que realmente não possam ser solucionadas pelos meios consensuais de solução de conflitos.

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1- NALINI, 2018, p.28

2- CARVALHO; SOARES, 2020. Revista Forum. AMAERJ

3- Op. Cit. P. 30

4- Código de Processo Civil, 2015

5- FISHER, URY, PATTON, 2018, p. 18

6- BARROSO, 2021.

7- Lei aqui.

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BARROSO, Luis Roberto. Ministro dá receita para advogado do futuro: "resolve sem propor ação". 2021. Disponível aqui. Acesso em: 12 de março de 2021

CARVALHO, Diego; SOARES, Evelyn. Revista Fórum: Rio alcança o topo da produtividade pelo 11° ano. 2020. AMAERJ. Disponível aqui. Acesso em: 10 de março de 2021

Código de Processo Civil, 2015. Disponível aqui. Acesso em: 12 de março de 2021

DIDIER, Fredie Jr; ZANETI, Hermes Jr. Justiça Multiportas e tutela adequada em litígios complexos: a autocomposição e os direitos coletivos. In: Justiça Multiportas. Mediação, Conciliação, Arbitragem e outros meios adequados de solução de conflitos. Salvador: Juspodium, 2018

FISHER, Roger; URY, Willian; PATTON, Bruce. Como chegar ao Sim. Como negociar acordos sem fazer concessões. Rio de Janeiro: Sextante, 2018

Lei da Mediação. Disponível aqui. Acesso em: 18/03/2021

NALINI, José Renato. É urgente construir alternativas à justiça. In: Justiça Multiportas. Mediação, Conciliação, Arbitragem e outros meios adequados de solução de conflitos. Salvador: Juspodium, 2018

Glaucia Cardoso Teixeira Torres

Glaucia Cardoso Teixeira Torres

Advogada. Mediadora e Conciliadora. Professora de Direito. Doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco-USP. Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina.

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