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O presidente e o 'difícil' art. 18 da constituição

A dificuldade intelectiva do pensamento autoritário com sistemas não hierárquicos, ainda que constitucionais, como a Federação, organizada pela Constituição da República, art. 18, e a hipótese de crime de ameaça pelo presidente da República.

quinta-feira, 25 de março de 2021

Atualizado em 26 de março de 2021 11:15

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A Constituição da República, artigo 18 tem a seguinte redação: 'Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição'.

Há, entretanto, quem 'queira' que o STF tenha, há pouco tempo, 'sentenciado' que o presidente da República não pode se intrometer em estados e municípios, e não compreende muito bem o que pode estar escrito no citado artigo constitucional. Para esses aí, é apenas o caso de 'estudar', conceito meio fora de moda em épocas de filminhos de YouTube.

A autonomia de estados e municípios, sem ingerência de presidente nenhum, conquanto doutrinariamente haja alguma divergência relativamente ao ente federativo município - José Afonso da Silva, Gilmar Mendes Ferreira e Paulo Gustavo Gonet Branco, citados em Comentários à Constituição do Brasil, J. J. Gomes Canotilho et all, 2ª ed., p. 786- é um verdadeiro tormento para muitos. Principalmente para aqueles que veem a vida em obediências a hierarquias, ordens e comandos autoritários. Aí, como é que o prefeito não vai obedecer ao governador e o governador não vai obedecer ao presidente? Que infâmia, ou subversão, será esta? Mentes retilíneas assim costumam não produzir genialidades e encantamentos para a humanidade. Nem se invoque Bertold Brecht com sua poesia "Ordem, hoje em dia, encontra-se, em geral, onde não há nada. É um sintoma de deficiência."

O fato é que a autonomia a estados e municípios é concedida pela Constituição da República, e interpretada pelo Direito, por meio da hermenêutica, a ciência que determina o sentido e o alcance das expressões jurídicas utilizadas em textos jurídicos, conforme Carlos Maximiliano. Aliás, a autonomia é traço ordinário a todas as Federações da atualidade.

Leu-se na Folha de São Paulo de 23.3.2021 que o presidente advertiu governadores com o uso do Exército relativamente aos estados que tiverem decretos de fechamento para combate à pandemia. Advertia ou, tecnicamente, ameaçava? Pois é, cabem digressões jurídicas aí.

Ameaça é conduta criminal, prevista no Código Penal, artigo 147 e, no caso concreto, razoavelmente identificável como delito, segundo noções do próprio tipo penal. Se não, veja-se, numa rápida análise do crime e sua possível interpretação subsuncional, relativamente à 'vontade' externada do presidente.

Há pessoas determinadas, na fala personalista presidencial, no caso três governadores de estados, a quem a ameaça, ou a 'conjectura' foi dirigida, sabendo-se que o crime é de forma livre, inclusive por meio simbólico, conforme o próprio texto legal, estando o contexto ilícito eficacial - possível convocação do Exército - na esfera competencial fática do autor.

Veem-se, numa análise disjuntiva, os quatros elementos configuradores da ameaça: constrangimento ilegal; mal injusto ou falta de justa causa da ameaça - que, sabe-se, não necessita ser propriamente um crime -; gravidade e idoneidade, com a medida militar interventiva aventada, estapafurdiamente descabida, ou pior, inconstitucional, já que estados são entes autônomos. Bento de Faria ensina que 'todo ato ou fato intimidativo pode constituir a ameaça', em seu Código Penal Comentado, volume IV, p. 256. 

A fala do presidente também não se confunde, propriamente, com o crime de constrangimento ilegal, artigo 146, já que tem por finalidade, precisamente, a intimidação e perturbação da tranquilidade dos governadores que recebem a ameaça de intervenção - ou coisa parecida-, seja em qualquer das quatro modalidades próprias do crime: direta, indireta, explícita e implícita.

O bem jurídico tutelado é a liberdade pessoal de autodeterminação, conforme lição de Cesar Roberto Bitencourt, no caso o governador ser tolhido de agir livre e licitamente conforme 'sua' autonomia constitucional.

O crime, conquanto tenha como figura ativa um agente do Estado - o presidente -, também não se última ou se confunde com o delito de abuso de autoridade, porque a finalidade aqui é tão somente ameaçativa num plano inequívoco de potencialmente causar um mal que se sabe injusto.

O tipo objetivo se veria perfectibilizado já que a ameaça busca intimidar os governadores que porventura decretem fechamento estatal, completando-se como meio de comportamento para atingir determinado resultado, ou seja, a aglomeração humana ideológica - bandeira sabida do presidente- que considera método social saudável para uma pandemia por vírus, inclusive recomendando sucessivas vezes esse comportamento.

A ameaça também não consubstancia exercício regular de direito, porque a invocação de uso das Forças Armadas para combater autonomia constitucional de entes federativos é absolutamente inconstitucional, além de logicamente esdrúxula.

Por outro lado, o 'inocente' crime de ameaça produz um paradoxo formidável e fortíssimo: se, para um penalista puro ou em sua prática acaba, o crime, não causando a prisão de ninguém, nem grandes transtornos a ameaçadores de plantão, sendo delito de menor potencialidade ofensiva, quando manejado sobre figura expoente da política, principalmente uma que busque se descolar de vezos autoritários, um chefe de Poder, é, situação simplesmente devastadora em termos de imagem. A ameaça - seu processo penal- gera, em casos assim, uma nódoa de autoritarismo idiossincrático e mesmo de violência social na imagem que estigmatiza o agente ofensor, coisa que todo e qualquer governante da atualidade se presume não quer estar inserido.

De duas formas, ambas legítimas, note-se, um mesmo fato social que interesse ao Direito pode ser 'lido'. Da forma - perdoe-se a frouxidão epistemológica - 'intelectual', considerando-se aí jornalistas, historiadores, observadores e mesmo a sociedade em geral; e da forma jurídica, por exemplo aquela ensinada por Chaïm Perelman, Ética e Direito, com o 'engano do texto claro', p. 622; as 'noções confusas', p. 671; a diferença entre validade formal e efetividade, p. 614; o conceito de antinomia, em duas normas precisas caberem simultaneamente a um caso e só uma pode ser aplicada, p. 639; a diferença entre 'lacuna' (que o juiz pode preencher) e 'vazio' (que o juiz não pode), p. 647; e as 'noções com conteúdo variável', p. 659.

Para muitos, as 'análises lacrativas' da moda, de vídeos de YouTube, mensagens reenviadas por WhatsApp - a nova praga do 'saber' humano desta surrada atualidade-, são o suficiente. Diz precisamente o que se quer ouvir. Atende também ao chamado efeito Dunning-Kruger, o qual faz pessoas com pouco conhecimento crer, severamente, que sabem mais, muito mais, que estudiosos e pesquisadores. Muitos desses aí e mesmo seus seguidores ideológicos da política do celular, do terraplanismo etc. continuam se 'expondo' a estultices. Quando não criminais. Por ignorância, vil teimosia, ou aposta política, que, esta última, não deixa de ser uma espécie da primeira categoria.

Jean Menezes de Aguiar

VIP Jean Menezes de Aguiar

Jean Menezes de Aguiar. Advogado. Professor da Pós-Graduação da FGV e do IPOG. Parecerista da Coordenação de Publicações Impressas e da Revista de Direito Administrativo, FGV.

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