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Legislar durante a pandemia é como trocar a roda de carro com ele em movimento

O presente artigo busca tecer comentários sobre a legislação sanitária relacionada às vacinas contra a covid-19 constantemente atualizada, identificando acertos e equívocos para que a melhor compreensão sobre o tema seja possível.

quinta-feira, 25 de março de 2021

Atualizado em 29 de março de 2021 09:42

Quem que diante de uma situação bastante complicada teve que tomar uma decisão igualmente difícil e não pensou que tal tarefa é tão desafiadora quanto trocar a roda do carro com ele em movimento? Embora pareça improvável, há quem verdadeiramente consiga realizar tal façanha!1

A função de legislar sobre a covid-19 durante a pandemia é tarefa igualmente difícil. A adequação do arcabouço jurídico aos desafios impostos dia a dia deve ser tão célere quanto à mutagenicidade do coronavírus. A depender do tempo com que uma nova lei ou regulamento demoram para serem publicados, há o risco de eles "nascerem" desatualizados, sem prejuízo de que ocorram equívocos que mais dificultam do que auxiliam no combate à pandemia.

A legislação sanitária concernente às vacinas contra a covid-19 sofreu recentes e importantes modificações, razão pela qual as linhas seguintes terão como objetivo apresentar uma breve contextualização dessa legislação e traçar alguns comentários às recentes inovações legislativa e regulatória concernentes ao tema.

Quando da publicação da lei 13.979, em fevereiro de 2020, embora fosse cogitada por alguns a necessidade de que uma vacina contra a covid-19 fosse desenvolvida, entendia-se que essa tarefa levaria tempo, muito tempo. Felizmente, as previsões fracassaram! A experiência adquirida ao longo do tempo e altos investimentos em tecnologia culminaram na obtenção de vacinas com diferentes mecanismos de ação, mas todas com o mesmo objetivo, que é fazer com que todos possamos desenvolver imunidade para que, caso infectados, tenhamos uma resposta imunológica rápida de maneira que o número de complicações e internações seja o menor possível.

Pois bem. No artigo 3º, VIII, da lei 13.979 havia a previsão de autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos e outros produtos sujeitos à vigilância sanitária sem que houvesse o registro na Anvisa, desde que atendidos alguns critérios que outrora comentamos2. Entretanto, é possível observar que a autorização excepcional e temporária deveria ser concedida para as atividades de importação e distribuição, mas em momento algum, essa lei previa a concessão da autorização temporária para uso emergencial de medicamentos3. O estabelecimento desta autorização foi, ao menos no Brasil, inicialmente previsto em o guia 42/204 da Anvisa que definia os requisitos mínimos para orientar as empresas que pretendiam obtê-la. Tal guia foi posteriormente referenciado na RDC 444/20, recentemente revogada pela RDC 475/21.

Ainda que se reconheça a semelhança entre as nomenclaturas das duas autorizações aqui mencionadas, é preciso compreender que a autorização em caráter excepcional e temporária para a importação e distribuição de medicamentos e outros produtos não deve ser utilizada como sinônimo da autorização temporária de uso emergencial destes mesmos produtos. A primeira diz respeito às atividades de importação e distribuição de medicamentos, podendo ser deferida mesmo quando a Anvisa ainda não tenha concedido o registro ou a autorização temporária de uso emergencial para o produto5. A segunda, por sua vez, diz respeito à autorização de uso em caráter excepcional, temporário e experimental, concedida ante a urgência imposta pela pandemia. Regulamentando ambas as autorizações, a Anvisa publicou no último dia 11 duas Resoluções: a RDC 475 e a RDC 476, as quais tiveram como fundamento as leis 14.124 e 14.125, igualmente jovens.

Antes de tecermos alguns comentários sobre a lei 14.124, que dispõe, dentre outros assuntos, sobre as medidas excepcionais relativas à aquisição de vacinas e de insumos, é importante lembrarmos que, a nosso sentir, a redação do art. 3º, §7º-A, da lei 13.979 não permitia a atuação técnica e discricionária da Anvisa, visto que a ela era imposto o "dever" de conceder a autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de medicamentos para o tratamento da covid-19. A redação desse dispositivo praticamente determinava que a concessão fosse feita automaticamente, embora isso não tenha ocorrido de fato. Ainda que pudesse ser entendido que a agência tivesse o exíguo prazo de três dias para avaliar a documentação e emitir sua decisão concedendo ou não a autorização, esta seria automática caso este prazo fosse excedido, contanto que houvesse a concessão do registro por uma das quatro autoridades sanitárias elencadas na lei e a liberação para comercialização nos respectivos países (art. 3º, VIII, "a" e §7º-A)6.

A lei 14.124 ampliou o prazo para sete dias úteis (art. 16, §1º)  para que a Anvisa se manifeste tecnicamente e decida, dentro desse prazo, se concede ou não tanto a autorização excepcional e temporária para a importação e a distribuição dos produtos mencionados no art. 16, caput (nos quais se incluem as vacinas contra a covid-19), assim como a autorização para uso emergencial de quaisquer vacinas e medicamentos contra a covid-19, com estudos clínicos de fase 3 concluídos ou com os resultados provisórios de um ou mais estudos clínicos. A parte final deste dispositivo permitia o equivocado entendimento de que bastaria a obtenção de resultados provisórios de qualquer das três fases da pesquisa clínica para que a mencionada autorização fosse pleiteada. Felizmente, a Anvisa espancou qualquer dúvida a esse respeito, deixando claro que os resultados provisórios admitidos seriam de estudos clínicos fase 37.

Ao permitir que a Anvisa requeira, fundamentadamente, a realização de diligências para complementação e esclarecimentos sobre os dados de qualidade, de eficácia e de segurança de vacinas contra a covid-19 (art. 16, §2º), a lei 14.124 deixa claro que as autorizações previstas no caput de seu art. 16 não podem ser concedidas de forma automática, mas sujeitas ao crivo técnico da Agência, ao contrário da interpretação que podia ser dada à redação do art. 3º, §7º-A da lei 13.979 quando utilizava o verbo "deverá".

Ainda que tenha igualmente estabelecido prazo para a decisão final da Anvisa, a lei 14.124 silenciou em dois aspectos que consideramos importantes: i) caso a Anvisa não decida dentro do prazo de sete dias úteis, qual é a sua consequência prática? A esse respeito dispunha lei 13.979, na parte final do art. 3º, §7º-A, que a autorização seria automática; ii) ao permitir que a Anvisa requeira a realização de diligências, o que acontece com o prazo de 7 dias? Deveria ele ser interrompido ou suspenso? Em relação a este item, felizmente essa lacuna já foi colmatada pela Anvisa tanto pela RDC 475 (art. 17, parágrafo único) como pela RDC 476 (art. 12, §4º), prevendo que o prazo será suspenso até que tais diligências sejam atendidas.

Para que fosse concedida pela Anvisa a autorização excepcional temporária para importar e distribuir medicamentos sem registro no Brasil, a lei 13.979, em seu art. 3º, VIII, "a", estabelecia um rol de quatro autoridades sanitárias estrangeiras cujo registro e autorização para distribuição comercial em seus respectivos países eram requisitos indispensáveis. A lei 14.124 ampliou esse rol para onze, sem prejuízo de que outras sejam adicionadas, desde que atendidos os critérios do inciso XII do art. 16. Não obstante, esta lei flexibilizou o requisito do registro prévio e passou a admitir, alternativamente, a autorização para uso emergencial concedida por ao menos uma das autoridades sanitárias nela elencadas, fato que nos obriga a concordar com o alerta feito pelo professor do Insper Thomas Conti de que "[n]a prática, isso torna nosso processo regulatório tão bom quanto a menos rigorosa das agências da lista. É uma regra que faz a corrente quebrar pelo elo mais fraco. No caso, provavelmente a agência argentina. Ou russa ou chinesa."8

No mesmo artigo9 o professor Conti ainda fez uma interessante proposição que mereceria ao menos uma reflexão por parte dos legisladores. Em vez de limitar o registro ou aprovação emergencial por pelo menos uma das onze autoridades sanitárias, poderia ter sido requerida a aprovação da vacina em pelo menos duas, o que faria com que a autorização brasileira para uso emergencial se tornasse mais "robusta" do que a concedida por qualquer agência individual listada na lei.

É preciso lembrar que mesmo a Anvisa concedendo a autorização excepcional e temporária para importação e distribuição de medicamentos e vacinas ou a autorização temporária para uso emergencial, em caráter experimental, os lotes das vacinas importados nos termos da RDC 476/21 somente poderão ser destinados ao uso após liberação pelo Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS)10.

Não se pode olvidar que a Anvisa detém a competência legal para dispensar de registro as vacinas quando adquiridas por intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso em programas de saúde pública pelo Ministério da Saúde e suas entidades vinculadas11. Ainda que essa prerrogativa legal expressa na lei 9.782/99 não tenha sido expressamente utilizada como fundamento da RDC 475/2112, a Anvisa fez uso de sua discricionariedade para dispensar do registro, de forma extraordinária e temporária, as vacinas adquiridas pela Covax Facility, sob o argumento de que "o consórcio internacional conta com a participação de especialistas da Agência entre os responsáveis pelas análises dos estudos e dados necessários à aprovação das vacinas"13.

Por fim, não poderíamos de tecer alguns comentários sobre a lei 14.125, que autorizou os entes federativos a adquirir vacinas e a assumir os riscos referentes à responsabilidade civil, nos termos do instrumento de aquisição ou fornecimento de vacinas celebrado, em relação a eventos adversos pós-vacinação, condicionando essa assunção de responsabilidade à concessão do respectivo registro ou autorização temporária de uso emergencial pela Anvisa. De modo análogo, é possível admitir que a responsabilidade por esses eventos adversos também é extensiva às vacinas adquiridas pela Covax Facility, visto que foi decisão da Agência dispensá-las do ato autorizativo para uso em território pátrio.

Quanto à legitimidade para importar as vacinas, a lei 14.125 também autoriza as pessoas jurídicas de direito privado (PJDPri) a adquiri-las diretamente dos fabricantes as que tenham autorização temporária para uso emergencial, autorização excepcional e temporária para importação e distribuição ou registro sanitário concedidos pela Anvisa, desde que sejam integralmente doadas ao SUS para serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI) até o término da imunização dos grupos prioritários. Uma vez vacinados estes grupos, estão autorizadas as pessoas jurídicas a adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que pelo menos 50% (cinquenta por cento) das doses sejam, obrigatoriamente, doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita, sendo vedada, portanto, a comercialização das vacinas.14

No entanto, é salutar destacar que a lei 14.125 não exonera as PJDPri da necessidade de serem detentoras de licença sanitária e autorização de funcionamento (AFE)15 caso queiram realizar a importação de vacinas contra a covid-19. A Anvisa, porém, não entendeu ser necessária a comprovação da licença sanitária como um dos requisitos necessários para a importação de medicamentos e vacinas para covid-19 registrados por autoridades sanitárias estrangeiras (art. 11, VII, RDC 476/21). Embora esta licença não tenha sido requerida de forma explícita, é difícil que alguma empresa exerça alguma das atividades previstas no art. 2º da lei 6.360/76 possuindo AFE, dada a estruturação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária atualmente.

Como se observa, ampla é a legislação sanitária atinente às vacinas contra a covid-19. Em que pese algumas poucas fragilidades apontadas em algumas delas, o presente artigo buscou principalmente dar a interpretação que entendemos ser a correta, embora possam ser admitidas outras que porventura tenham passado despercebidas ante nossos olhos. Ainda que a pandemia imponha uma necessidade constante de aprendizado e de atualização dessa legislação, o mais importante nesse processo é saber trocar a roda com o carro em movimento sem que seja permitida a queda de qualquer parafuso, a fim de que todos possamos chegar no destino final para celebrar a vitória.

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Confira o curtíssimo vídeo em: Clique aqui. Acesso em: 17 mar. 2021.

AREDA, Camila Alves; Cassano, Adriano Olian. Vacinas contra a covid019 e o "diz eu me diz": É preciso entender o que diz a legislação. Migalhas, 04 jan. 2021. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 17 mar. 2021.

Também já foi discutido em nosso artigo anterior que as vacinas são espécie do gênero medicamento, conforme definição do art. 4º, II, da Lei nº 5.991/1973. Por este motivo, o uso das palavras "medicamentos" e "vacinas" no presente artigo serão intercambiáveis.

Documento atualizado disponível em: Clique aqui. Acesso em: 17 mar. 2021.

Vide art. 10, §3º, da RDC nº 476/2021.

6 Essa foi a interpretação admitida pelo STF ao julgar a ADPF 770, cujo acórdão está disponível em:Clique aqui. Acesso em: 17 mar. 2021.

7 Art. 4º, RDC nº 475/2021.

8 CONTI, Thomas. Anvisa sob ataque? Boas intenções nunca bastam. JOTA, 09 fev. 2021. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 17 mar. 2021.

9 Op.cit.

10 Cf. art. 9º, RDC nº 476/2021.

11 Art. 8º, §5º, lei 9.782/1999.

12 Essa RDC estabelece a dispensa de registro e da autorização de uso emergencial e os procedimentos para importação e monitoramento das vacinas Covid-19 adquiridas pelo Ministério da Saúde, no âmbito do Instrumento de Acesso Global de Vacinas Covid-19 (Covax Facility) para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do surto do novo coronavírus (SARS-CoV-2).

13 Confira em: Clique aqui. Acesso em 16 mar. 2021.

14 Art. 2º, §1º, lei nº 14.125/2021.

15 A licença sanitária é concedida pelos Órgãos de Vigilância Sanitária locais, de acordo com sua respectiva legislação supletiva à lei nº 6.360/1976 (arts. 2º, 9º, 51 e 52), enquanto a AFE é concedida pela Anvisa com fundamento na mesma lei (arts. 2º, 50 e 51) e na RDC nº 16/2014.

Camila Alves Areda

Camila Alves Areda

Doutora em Ciências Farmacêutica pela FCFRP-USP; professora do curso de Farmácia da Faculdade de Ceilândia - Universidade de Brasília; Professora do programa de pós-graduação em propriedade intelectual e transferência de tecnologia para inovação.

Adriano Olian Cassano

Adriano Olian Cassano

Acadêmico de Direito na Universidade de Brasília. Farmacêutico-bioquímico graduado pela FCFRP-USP.

Rogério Olian Cassano

Rogério Olian Cassano

Acadêmico de Direito no Centro Universitário UNIFAFIBE e educador físico graduado pela ESEFIC/Catanduva.

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