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Sham Litigation: o abuso do direito processual como prática anticoncorrencial

Sham Litigation é uma expressão utilizada para designar o ato de se utilizar do Poder Judiciário para ajuizar ações sem qualquer fundamento, com intenção oculta de prejudicar negócios alheios.

sexta-feira, 26 de março de 2021

Atualizado em 29 de março de 2021 13:03

A expressão sham litigation foi consagrada nos Estados Unidos após diversos julgamentos realizados pela Corte Suprema, os dois principais casos que levaram à construção dessa doutrina foram Eastern Railroad Presidents Conference v. Noerr Motor Freight Inc. e United Mine Workers v. Pennington, em que se reconheceu que o direito de petição não apresenta natureza absoluta, legitimando a intervenção da autoridade antitruste nas hipóteses em que agentes econômicos privados praticam infrações contra a ordem econômica por meio do exercício abusivo do direito de ação.

Essa teoria ainda é recente no Brasil, tendo-se notícia de alguns casos analisados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica  (Cade) envolvendo as empresas Instituto Aço Brasil (IABr), que ingressou com diversas demandas judiciais com a finalidade de prejudicar importadores concorrentes de vergalhões de aço; Eli Lilly do Brasil Ltda. e Eli Lilly and Company que moveram ações judiciais contraditórias e enganosas para obter exclusividade na comercialização de medicamentos e das Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) em que se discute a extensão do monopólio postal.

Sham litigation diz respeito ao ajuizamento de ação judicial que careça de fundamentação jurídica, com a finalidade exclusiva de prejudicar concorrente, ou seja, está diretamente relacionada ao uso abusivo do direito processual, com o objetivo implícito e dissimulado de prejudicar a concorrência.

É certo que "o art. 5º, XXXV, consagra o direito de invocar a atividade jurisdicional, como direito público subjetivo" (SILVA, 1999, p. 432).  Entretanto, a despeito da previsão constitucional do acesso à justiça (art. 5º, XXXV da Constituição Federal) que dispõe: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito" (BRASIL, 1988),  o direito de ação não é absoluto e encontra seu limite no abuso de direito, ou seja, no excessivo uso do direito, coibido expressamente pelo art. 187 do Código Civil ao prescrever que "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes" (BRASIL, 2002).

A norma processual civil também impõe limites ao uso abusivo do direito de ação na medida em que determina a todos os litigantes que se comportem no processo com boa-fé (art. 5º do CPC), bem como tipifica e reprime a litigância de má-fé (arts. 79 e 80 do CPC), a qual é passível de multa e indenização pelos prejuízos sofridos.

Nesse ponto, faz-se necessário diferenciar a sham litigation da litigância de má-fé. Enquanto a litigância de má-fé está associada ao abuso do direito processual, utilizado em detrimento do fim econômico ou social, da boa-fé ou dos bons costumes, a sham litigation está vinculada ao uso abusivo do direito processual com a finalidade específica de causar prejuízo ao negócio de concorrentes, porquanto, "o objetivo claro de tal atitude é de prejudicar o negócio alheio de seu concorrente, aumentando suas despesas decorrentes de processos judiciais, bem como prejudicar a sua reputação" (ALMEIDA, 2004, p. 197).

Não há como negar os transtornos que uma demanda judicial pode acarretar à atividade empresarial, contudo ainda há divergência quanto à caracterização da teoria do sham litigation como ato de concorrência desleal ou infração à ordem econômica.

Para Fábio Ulhoa Coelho (2002, p. 189) a infração à ordem econômica provoca ameaça às estruturas da economia, atingindo um universo amplo de interesses. Já a concorrência desleal alcança apenas os empresários diretamente prejudicados pela ação anticompetitiva. Por conta dessas diferenças, a lei apenas se preocupa em estabelecer mecanismos de repressão administrativa nos casos de infração à ordem econômica, restando à concorrência desleal as repressões de ordem civil e penal, pleiteadas individualmente pela parte lesada.

O Cade tem adotado o entendimento de que o abuso de direito processual, em determinadas situações, pode ser considerado um ilícito antitruste com fundamento na lei 12.529/11. Isso se justifica porque atos sob qualquer forma manifestados constituem infração à ordem econômica, desde que produzam, ou possam produzir os efeitos elencados no art. 36 da Lei Antitruste1. Assim, se o abuso de direito de ação produzir (ou tiver o potencial de produzir) algum dos efeitos dispostos no referido comando legal, configurar-se-á a infração concorrencial (RENZETTI, 2017, p. 176).

Já Marcus Elidius Michelli de Almeida (2004, p. 199) entende que o abuso ao direito processual pode caracterizar um ato de concorrência desleal, na forma descrita no artigo 209 do Código de Propriedade Industrial - lei 9.279/96: 

Art. 209. Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio (BRASIL, 1996, s/p).

Com efeito, a litigância predatória (sham litigation) também pode ser caracterizada como concorrência desleal, se restar comprovado que o direito de ação foi utilizado não como instrumento para a satisfação do direito,  mas como meio para  prejudicar os negócios alheios, seja com intuito de criar despesas para o concorrente com a tramitação de processos judiciais ou denegrindo sua imagem e reputação perante clientes.

Pode, ainda, configurar infração à ordem econômica, quando praticadas condutas que tendem a limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa, tal qual ocorreu no caso da empresa Eli Lilly, em que o Cade identificou que a empresa omitiu uma série de informações relevantes sobre alteração do escopo do pedido de patente e sobre o trâmite do processo administrativo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial  (INPI). Dessa maneira, a empresa obteve o monopólio temporário do produto junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que determinou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que não concedesse autorização para outros concorrentes comercializarem produto similar ao Gemzar para tratamento de câncer de mama.

Destarte, os casos de sham litigation poderão caracterizar tanto ato de concorrência desleal quanto infração à ordem econômica, a depender da situação concreta e da extensão da prática anticompetitiva, se prejudica diretamente apenas um ou alguns empresários pelo uso abusivo do direito de ação (concorrência desleal) ou se afeta um universo mais amplo, lesionando as estruturas da economia de mercado (infração à ordem econômica).

O efeito prático disso, ao nosso ver, é que a despeito da multa por litigância de má-fé disposta na norma processual civil, os praticantes da litigância predatória poderão sujeitar-se a um processo indenizatório autônomo por danos morais e materiais ou, ainda, responder administrativamente perante o Cade ante a configuração de infração à ordem econômica, sujeitando-se as penalidades dispostas nos arts. 37 a 45 da lei 12.529/11, a depender da conduta praticada.

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1 Art. 36.  Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;

II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;

III - aumentar arbitrariamente os lucros; e

IV - exercer de forma abusiva posição dominante.

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ALMEIDA, Marcus Elidius Michelli de. Abuso de Direito e Concorrência Desleal. São Paulo: Quartier Latin, 2004.

BRASIL, Conselho Administrativo de Direito Econômico. Disponível em Clique aqui. Acesso em 21 abr. 2018.

 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em Clique aqui. Acesso em 15 abr. 2018.

lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em Clique aqui. Acesso em 15 abr. 2018.

lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em Clique aqui. Acesso em 15 abr. 2018.

lei 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; altera a lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o Decreto lei 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, e a lei 7.347, de 24 de julho de 1985; revoga dispositivos da lei 8.884, de 11 de junho de 1994, e a lei 9.781, de 19 de janeiro de 1999; e dá outras providências. Disponível em Clique aqui2014/2011/lei/l12529.htm. Acesso em 9 marc. 2021.

COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. vol. 1. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

REZENTTI, Bruno Polonio. Tratamento do Sham Litigation no Direito Concorrencial Brasileiro à Luz da Jurisprudência do CADE. Revista de Defesa da Concorrência. Vol. 5, nº 1. Maio 2017. Disponível em Clique aqui. Acesso em 10 abr. 2018.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

Katia Maria da Costa Simionato

Katia Maria da Costa Simionato

Advogada na Simionato & Aurelio Advocacia e Consultoria Jurídica. Mestre em Direito Negocial pela UEL. Especialista em Direito Empresarial pela Metrocamp/IBMEC. Especialista em Gerenciamento e Auditoria Ambiental pela UTFPR. Professora conteudista.

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