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O que esperar da nova lei de licitações

Esperemos que a nova lei venha a promover a necessária mudança de perspectiva sobre as contratações públicas.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Atualizado às 17:09

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Depois de sete anos de tramitação no Congresso Nacional, no dia 10 de dezembro de 2020, o Senado Federal aprovou o projeto de uma nova Lei de Licitações. Diante do advento do recesso parlamentar e da necessidade de conferir maior sistematicidade e organicidade ao texto, foi submetida ao Plenário do Senado, em 10 de março, a redação final do projeto de lei. A confecção da redação final pelo Senado melhorou, sem dúvidas, a qualidade do texto, mas o resultado poderia ter sido bem mais profícuo se a limitação a ajustes meramente redacionais (própria dessa fase legislativa) não tivesse impedido um aperfeiçoamento mais amplo. 

Aprovada a redação final, os autógrafos do projeto de lei foram recebidos na Presidência da República em 12 de março, de modo que, muito em breve (até 1º de abril), teremos a sanção do novo marco legal das contratações públicas no Brasil.

Mas, afinal, teremos, de fato, um novo "estatuto" das licitações e dos contratos administrativos em comparação com a vilipendiada Lei nº 8.666/1993? 

Quanto às licitações propriamente ditas, a maior novidade foi a instituição de uma modalidade denominada diálogo competitivo, com a extinção das modalidades tomada de preços e convite. Foram mantidas, como padrão, as modalidades concorrência e pregão, com a introdução de uma modelagem de disputa mais dinâmica e menos estática se comparada com a Lei nº 8.666/1993, baseada nos modos aberto, fechado e combinação de ambos. É prevista como regra a sequência de fases tradicional do pregão: primeiro o julgamento de propostas, com fase de lances (inclusive para a concorrência) e, somente depois, a análise de habilitação apenas do licitante vencedor. 

A nova norma prevê a possibilidade, a critério da Administração, de inversão de fases, ou seja, primeiro a habilitação e, depois, o julgamento das propostas. Tal instrumento é fundamental para, diante da particularidade e sensibilidade de alguns objetos, atenuar os riscos de participações aventureiras e conferir maior segurança para a Administração quanto à avaliação de propostas apenas em relação aos fornecedores que tenham demonstrado previamente sua aptidão e capacidade de contratar com o Poder Público. Nesse mesmo intento, precisamos lembrar de importantes instrumentos auxiliares que poderão ser acoplados aos procedimentos licitatórios como a pré-qualificação (de licitantes e de produtos), afastando, assim, as atuais distorções e críticas quanto ao rito atual da modalidade pregão e do RDC (regime diferenciado de contratação), notadamente (1) em relação a uma pressuposta baixa qualidade de disputa decorrente da verificação das condições de contratar com a Administração somente após o fim da disputa e, também, (2) por um fetiche dos agentes públicos - fomentado, em grande parte, pelos órgãos de controle - na busca de menor preço, desatrelado de uma preocupação com a qualidade e performance da solução a ser contratada. 

Em nossa opinião, ainda que não tenham sido adotados os mecanismos mais modernos desenvolvidos pelos estudos econômicos da teoria dos leilões - como a sinalização (signaling) e a reputação (rating) dos potenciais fornecedores - a dinamicidade empreendida pelos modos de disputa e a sequência procedimental "propostas-habilitação" (com possibilidade de inversão) tendem a imprimir maior celeridade e eficácia aos certames.  

Ainda que mantido o regime jurídico-contratual fundado na ideia da supremacia e indisponibilidade do interesse público, o novo texto introduz uma importante e necessária lógica de consensualidade nas contratações a partir da previsão de meios alternativos de resolução de controvérsias, como a conciliação, mediação e arbitragem. 

Por sua vez, o foco nos procedimentos de planejamento das contratações e na capacitação, pré-requisitos de investidura e matriz de competências dos agentes públicos parece conduzir a um ambiente negocial mais transparente e menos nebuloso, a partir de maior eficácia e da redução das intercorrências, incompletudes e vícios nos mecanismos de seleção e na própria gestão dos contratos administrativos. Mas essa visão tem um grande risco: a enorme disparidade entre as realidades dos serviços da União e, em especial, dos Municípios. As detalhadas exigências de planejamento possivelmente levarão a uma ampliação do tempo necessário à etapa preliminar da licitação, particularmente no nível municipal, onde a estrutura de trabalho para planejamento e o nível de formação e atualização dos agentes públicos tende a ser menor. 

Logo, ainda que a instituição de um maior nível de detalhamento das regras relativas à etapa de planejamento possa denotar, em uma análise preliminar, aspectos positivos de evolução do sistema de contratação pública, ao se contextualizar as novas exigências com a realidade de funcionamento de grande parte dos órgãos municipais (e mesmo os estaduais), é possível que nos deparemos com um dilema entre a paralisia da Administração ou um puro e simples descumprimento da lei. 

Apesar desse aspecto, a primazia conferida à estruturação dos instrumentos de planejamento - em especial, os estudos preliminares e a estimativa de despesa - induzirão maior aproximação e diálogo com o mercado, o que poderá implicar a mudança de perspectiva quanto às licitações, menos jurídico-formal e mais econômica, passando as contratações públicas a serem compreendidas como meio de negócio e o mercado como parceiro. 

Em termos gerais, a novel norma atinge dois intentos claros: consolidar em uma única lei os normativos esparsos sobre contratações, buscando uma sistematicidade orgânica dos procedimentos, e positivar diversos entendimentos do TCU sobre a temática de licitações e contratos administrativos. 

Em tal perspectiva (de certa forma, restringindo autonomia normativa e de gestão dos demais entes federativos), busca-se uniformização e a redução da litigiosidade - administrativa e judicial - em torno de disposições controversas, que, em geral, versam sobre requisitos de proposta e habilitação e alterações supervenientes nos contratos administrativos. A rigor, a consolidação e a positivação de entendimentos jurisprudenciais tendem a fomentar um ambiente negocial mais previsível e juridicamente seguro, mas, ao mesmo tempo, podem ensejar engessamentos hermenêuticos e um agigantamento do próprio TCU, tal como antevê o art. 172 da futura lei. Isso tudo, claro, se o dispositivo que confere tal poder à jurisprudência do TCU venha mesmo a ser sancionado, o que talvez não seja o caso...

Enfim, esperemos que a nova lei venha a promover a necessária mudança de perspectiva sobre as contratações públicas - tão colonizada pelos juristas -, sustentando ações administrativas que permitam diálogo com o mercado, com base na qualidade do produto ou prestação do serviço, para que a Administração não compre simplesmente o mais barato, mas aquilo que efetivamente atenda, com qualidade, às necessidades públicas.   

Luiz Fernando Bandeira de Mello

Luiz Fernando Bandeira de Mello

Membro do Conselho Nacional de Justiça. Ex-Secretário-Geral da Mesa do Senado Federal. Doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca.

Victor Amorim

Victor Amorim

Advogado atuante em Direito Administrativo Concorrencial. Doutorando em Direito do Estado pela Universidade de Brasília.

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