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A juridicidade da utilização dos diálogos telemáticos captados na operação spoofing

É ou não admissível a utilização dos diálogos ilegalmente interceptados por particulares, apurados na Operação Spoofing, em desfavor de seus interlocutores (membros do MPF e ex-Juiz Federal)?

segunda-feira, 29 de março de 2021

Atualizado às 17:12

A aparente e suposta ilicitude da utilização das provas telemáticas colhidas na Operação Spoofing

À primeira vista, parece ser desnecessário muito esforço argumentativo para se concluir que os diálogos do aplicativo Telegram, colhidos no âmbito da Operação Spoofing, não poderiam ser utilizados contra os Procuradores da República e contra o ex-Juiz Federal da Força Tarefa da Lava Jato, cujas mensagens escritas foram, em tese, captadas por hackers, em sede de eventuais processos penais, administrativo-disciplinares e civis que venham a ser hipoteticamente instaurados em desfavor de tais agentes públicos federais.

Isso porque o artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal de 1988, contém a seguinte redação: "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos". Note-se que nossa Constituição Cidadã não faz qualquer distinção entre os processos penal, administrativo e/ou civil, tampouco cria qualquer exceção explícita a tal vedação.

No âmbito criminal, o artigo 157, caput, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei Federal 1.690/08, diz que "são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais".

Neste texto opinativo não será examinada a (in)constitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 157 do CPP, segundo o qual "são também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras".        

Na esfera do processo administrativo em geral, e especificamente do processo administrativo disciplinar, a Lei do Processo Administrativo Federal (Lei Federal 9.784/99), em seu artigo 30, estabelece que "são inadmissíveis no processo administrativo as provas obtidas por meios ilícitos", sendo que a Lei Federal 8.112/90, que regula o processo administrativo disciplinar dos servidores públicos federais, é omissa a respeito, razão pela qual entendo que, ponto, se lhe aplicam subsidiariamente as normas positivadas na Lei Federal 9.784/99.

Por fim, no que diz respeito ao processo civil em geral, a vedação é ainda mais ampla, consoante se colhe da leitura do artigo 369 do Código de Processo Civil de 2015, cuja redação é esta: "as partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz." Vale dizer: no direito processual civil, não basta que a prova seja lícita; é preciso que ela seja "moralmente legítima".

Partindo-se da premissa fática de que os diálogos telemáticos do aplicativo Telegram foram interceptados sem prévia e válida autorização judicial, tal como exigem o inciso XII do artigo 5º da CF/1988, e os dispositivos da Lei Federal 9.296/96, concluir-se-ia, com alguma segurança e sem aparente hesitação, que sua utilização em desfavor dos Procuradores da República e do ex-Juiz Federal seria absolutamente inconstitucional e ilegal, especialmente à luz das normas constitucionais e legal acima relacionadas. Será?

A juridicidade da utilização das provas colhidas na Operação Spoofing no âmbito do processo penal, do processo administrativo disciplinar e do processo civil, em desfavor de seus agentes públicos interlocutores

Qual é o fundamento filosófico da proibição de utilização de provas ilícitas por parte do Estado? Qual é seu pressuposto? Por que existe tal mandado constitucional de vedação ao seu uso?

O fundamento me parece ser bem simples: o Estado de Direito, por meio de quaisquer de seus agentes públicos, está logicamente obrigado a cumprir todas, e não apenas algumas, as suas normas jurídicas internas, bem como aquelas a que ele soberanamente se vincula no plano internacional. O Estado, e ainda mais o Estado de Direito, deve atuar "conforme a lei e o Direito", tal como expressamente consta da redação normativa cogente do artigo 2º, parágrafo único, inciso I, da Lei do Processo Administrativo Federal (Lei Federal 9.784/99). Não basta apenas que o Estado, e notadamente o Estado de Direito, obedeça ao princípio da legalidade, tal como plasmado no caput do artigo 37 da Constituição Federal de 1988.

O Estado de Direito, no Brasil, está obrigado a seguir incondicionalmente ao princípio da juridicidade, que pressupõe dele uma permanente atuação conforme a lei e o Direito. E isso não apenas no âmbito da Administração Pública, obviamente, porque na esfera processual penal estamos a cuidar dos bens jurídicos mais importante do ser humano: a vida, a liberdade humana e a propriedade.

E a República Federativa do Brasil, pelo menos desde 5 de outubro de 1988, não é apenas um Estado, ou um Estado de Direito: por livre e soberana decisão de sua Assembleia Nacional Constituinte, ela é um Estado Democrático de Direito, ou seja, um Estado que está submetido à vontade constitucional do seu povo; logo, é ainda mais intolerável, inadmissível e ultrajante que o Estado-administrador, o Estado-legislador, o Estado-investigador, o Estado-acusador e o Estado-juiz pratiquem qualquer ato, comissivo ou omissivo, que implique, ainda que minimamente, em qualquer ofensa aos princípios, às regras, aos direitos, às garantias e a todas as demais espécies de normas, explícitas e implícitas, decorrentes de seu regime constitucional. Isso é uma premissa filosófica básica, verdadeiro dogma inarredável, afinal, qual fundamento de fato ou de direito permitiria ao Estado Brasileiro, por quaisquer de seus agentes públicos, cometer um ilícito penal, administrativo ou civil contra seus próprios cidadãos? Nenhum, obviamente. Absolutamente nenhum.

O Estado Democrático Brasileiro é súdito permanente do ordenamento normativo vigente e da soberania popular. Logo, a proteção à dignidade da pessoa humana não é apenas um princípio positivado no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. A proteção incondicional, irrestrita e permanente à dignidade da pessoa humana é um verdadeiro superprincípio constitucional, tal como já reconheceu o Supremo Tribunal Federal, ao menos no exegese da Excelentíssima Ministra Cármen Lúcia, no item 25 de seu voto proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.510/DF, cujo inteiro teor foi publicado em 28/5/10. Nas palavras de Sua Excelência, "a constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa humana modifica, assim, em sua raiz, toda a construção jurídica: ele impregna toda a elaboração do Direito, porque elemento fundante da ordem constitucionalizada e posta na base do sistema. Logo, a dignidade da pessoa humana é princípio havido como superprincípio constitucional, aquele no qual se fundam todas as escolhas políticas estratificadas no modelo de Direito plasmado na formulação textual da Constituição" (grifei).

Se a proteção à dignidade da pessoa humana é um superprincípio constitucional, e se o Estado-acusador e o Estado-juiz não podem violar qualquer norma constitucional e legal, explícita ou implícita, decorrente de nosso ordenamento jurídico, indaga-se: é lícito, e moralmente legítimo, que membros do Ministério Público e que Juízes sub-repticiamente conduzam tratativas processuais e procedimentais em investigações e ações penais que estejam sob sua pessoal responsabilidade? Ou em qualquer outra espécie de procedimento e de processo, seja ele administrativo ou civil?

É óbvio que não.

Não podem, não devem, sob pena de incorrerem em injustificável e intolerável transgressão aos seus solenes juramentos e notórios deveres de fiel, estrita e eterna observância aos preceitos constitucionais e legais vigentes na República Federativa do Brasil. Isso é uma obviedade que precisa ser dita, lembrada e relembrada sempre, neste País que historicamente tanto sofre para separar o público do privado, e do "jeitinho brasileiro" de contornar exigências legais, sociais e éticas de toda e qualquer natureza.

Se forem verídicos os diálogos dos agentes estatais participantes da Operação Lava Jato até aqui divulgados pela imprensa, o "jeitinho curitibano" de fazer processo penal, por meio de ocultas e secretas mensagens intercambiadas entre Procuradores da República e o ex-Juiz Federal, no aplicativo Telegram, se caracterizam, em tese e em concreto, como flagrantes violações aos deveres éticos e jurídicos de imparcialidade, de equidistância, de impessoalidade e de independência funcional entre o Ministério Público e o Poder Judiciário.

Então retomo a dúvida: por que o Estado não pode produzir provas ilícitas em face dos seus cidadãos que são suspeitos, investigados, indiciados, denunciados, réus e/ou condenados na esfera criminal?

Porque filosoficamente o Estado não pode ser um criminoso, um transgressor de suas próprias normas.

Até onde eu sei, a doutrina brasileira, e especialmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca da utilização de provas ilícitas, sempre partiu do pressuposto de que elas foram colhidas pelo Estado-investigador, pelo Estado-acusador e/ou pelo Estado-juiz em desfavor da pessoa humana, do cidadão comum, do particular, o que não é o caso ora em exame. Aqui, foram pessoas comuns que interceptaram diálogos telemáticos de agentes públicos estatais responsáveis pela persecução penal.

Logo, nenhum desses precedentes jurisprudenciais do STF se aplica ao caso em exame, porque estamos diante, em tese e aparentemente, de mensagens ocultamente intercambiadas, por agentes estatais no exercício das suas funções: Procuradores da República entre si, e com o ex-Juiz Federal.

Questiona-se: como é que os acusados, réus e condenados pela Operação Lava Jato poderiam ter ciência legítima de tais trocas de mensagens no aplicativo Telegram, se havia uma aparência externa de legalidade nas atuações funcionais dos Procuradores e do ex-Magistrado? Qual Tribunal decretaria a sua interceptação telefônica e/ou telemática, se aparentemente não estava em curso a prática de infrações penais?

Não estou afirmando que os Procuradores da República e o ex-Juiz Federal cometeram crimes. O objeto deste texto opinativo não é esse. Apenas entendo que suas condutas funcionais precisam ser esclarecidas em todas as esferas (funcional-administrativa e, eventualmente, civil e penal), porque não é normal que um Juiz indague a um membro do Ministério Público por que este interpôs, ou deixou de interpor, recurso judicial contra decisão sua, e porque também não é normal que Procuradores da República ajustem, ou tentem ajustar, com os veículos de imprensa, a divulgação, ou a não-divulgação, deste ou daquele ato por eles praticado no exercício da função ministerial, dentre tantas outras coisas estranhas até agora reveladas pelos trechos de diálogos parcialmente divulgados.

Ora, se a proteção à dignidade da pessoa humana é um superprincípio constitucional, verdadeiro fundamento da República Federativa do Brasil desde 05/10/88, e se nosso Estado Democrático de Direito não pode violar, por seus agentes públicos, quaisquer normas explícitas e implícitas vigentes em nosso território, então concluo que a vedação constitucional chumbada no inciso LVI do art. 5º da CF/1988 não é absoluta, e nem poderia ser, ao menos quando estamos, aparentemente, diante de violações funcionais subrepticiamente combinadas e ocorridas no aplicativo Telegram dos membros do Ministério Público Federal e da Justiça Federal, ainda mais se tais aparelhos eletrônicos (telefones celulares, tablets e notebooks) eram funcionais, ou seja, pertencentes à União, e não aos indigitados agentes públicos (Procuradores e Juiz). O que estava em jogo? Estavam em jogo a vida, a liberdade e o patrimônio das centenas de pessoas investigadas, acusadas e condenadas no âmbito da Força-Tarefa da Operação Lava Jato.

Por tais fundamentos, entendo que o Supremo Tribunal Federal, bem como os demais órgãos competentes do Poder Judiciário e do Ministério Público da União, podem e devem tomar integral conhecimento das mensagens telemáticas do aplicativo Telegram, ainda que ilegalmente interceptadas por particulares (hackers), porque não existe fundamento jurídico, ético ou filosófico atual que permita a Juízes e Procuradores/Promotores de Justiça cometer qualquer espécie de ilícito no estrito exercício de suas relevantes e imprescindíveis funções ministeriais e jurisdicionais, seja qual for a gravidade e/ou a complexidade dos fatos que eles tenham que apurar, processar e julgar. No cotejo das normas constitucionais em colisão, devem prevalecer, pelo menos neste caso concreto, a proteção constitucional ao superprincípio da dignidade das pessoas humanas que foram, e que são, alvos da Operação Lava Jato, bem como o dever constitucional de nosso Estado Democrático de Direito de ser eterno e incondicional súdito do princípio da juridicidade.

Conclusão

É juridicamente possível e admissível a plena utilização, pelos órgãos correicionais, investigadores, acusadores e julgadores competentes, de mensagens ilegalmente captadas por particulares contra agentes públicos estatais que, no exercício da função, aparentemente estejam cometendo graves ilícitos funcionais. A prova foi ilegalmente colhida por particulares, mas seu uso pelo Estado, contra os agentes estatais em aparente desvio funcional, são jurídica e moralmente legítimos, nos termos da fundamentação acima.

Por fim, quanto à definição da extensão precisa dos possíveis limites à utilização de diálogos ilegalmente captados por cidadãos em geral, que venham a ser conhecidos pelo Estado e que evidenciem o eventual desvio funcional de seus agentes públicos, ainda não sei responder, admito, mas isso inevitavelmente terá que ser decidido pelo Supremo Tribunal Federal no momento oportuno. É uma séria questão a ser debatida por toda a nossa comunidade jurídica.

Guarapuava-PR, às 19 horas de 28 de março de 2021.

Marcelo Antonio Cesca

Marcelo Antonio Cesca

Juiz federal aposentado do TRF1; Ex-juiz federal substituto do TRF4; Ex-procurador federal da AGU; ex-professor de Direito Processual Constitucional; bacharel em Direito pela UEPG.

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