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Ilicitude de cláusulas de instrumentos coletivos de trabalho que flexibilizam o cumprimento da cota de contratação de trabalhadores PCD ou reabilitados pela previdência social

Cláusulas convencionais ou acordativas que, sob o pálio de sua prevalência sobre a lei, podem alterar a obrigação de inclusão social em pauta?

segunda-feira, 29 de março de 2021

Atualizado às 18:47

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Vem sendo comum que sindicatos de categorias profissionais e econômicas ou sindicatos de categorias profissionais e empregadores celebrem instrumentos coletivos de trabalho flexibilizando o cumprimento da cota de contratação de trabalhadores qualificados como pessoas com deficiência ou reabilitados pela Previdência Social, estabelecida pelo art. 93 da lei 8.213/91.

Tal flexibilização, usualmente, consiste na exclusão de determinadas funções do cômputo da quantidade de empregados de determinados empregadores ou na limitação a um número máximo dessa base de cálculo sobre que incidem os percentuais indicados nos incisos I a IV do preceito legal acima apontado.

Cláusulas convencionais ou acordativas que, sob o pálio de sua prevalência sobre a lei, podem alterar a obrigação de inclusão social em pauta? É o que tentaremos desvendar, ainda que sucintamente, neste texto.

A regra contida no art. 611-A, caput, da Consolidação das Leis do Trabalho, apregoa que as disposições instituídas em normas trabalhistas autônomas de segmentos profissionais e econômicos e que cuidem, exemplificativamente, das matérias expressas nos subsequentes incisos sobrepõem-se às disposições instituídas em lei.

Entretanto, a norma enunciada no inciso XXII do art. 611-B da CLT, que lista as matérias proibidas de figurarem em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, quando implicarem a supressão ou a redução dos correspondentes direitos, interdita "qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador com deficiência" (destacamos), que reproduz a redação do inciso XXXI do art. 7º da Constituição Federal.

Observe-se que a norma veiculada no inciso XV do art. 611-B da CLT veda o disciplinamento, em CCT ou ACT, da "proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei".

Esse mandamento se lastreia, por óbvio, na autorizada distinção de direitos entre homens e mulheres, nos termos da CF, consoante o disposto no inciso I de seu art. 5º.

Considerando existirem direitos fundamentais implícitos no Texto Constitucional, como se extrai, ilustrativamente, da decisão proferida pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no julgamento do RE 477554 AgR (Segunda Turma, Relator: Min. Celso de Mello, Julgamento: 16/08/2011, Publicação: 26/08/2011), entende-se que a Constituição Federal contemplou, indiretamente, o direito fundamental à proteção do mercado de trabalho, no âmbito da iniciativa privada, da pessoa com deficiência.

Isso porque, além do comando inscrito no art. 7º, inciso XXXI, há, na Norma Ápice, diversos dispositivos dirigidos à salvaguarda de direitos das pessoas com deficiência. Confira-se:

TÍTULO III - Da Organização do Estado

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CAPÍTULO II - DA UNIÃO

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Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

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II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

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XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência.

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CAPÍTULO VII - Da administração Pública

SEÇÃO I - Disposições Gerais

Art. 37. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte:

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VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão.

TÍTULO VIII - Da Ordem Social

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CAPÍTULO II - Da Seguridade Social

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SEÇÃO IV - Da assistência Social

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

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IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

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CAPÍTULO III - Da Educação, da Cultura e do Desporto

SEÇÃO I - Da Educação

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Art. 208. O dever do estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

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III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;

IV - acesso aos níveis mais elevados de ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um.

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CAPÍTULO VII - Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso

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Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§1º- O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos:

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II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.

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§2º- A lei disporá sobre normas de construção de logradouros e edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir o acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.

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TÍTULO IX - Das Disposições Constitucionais Gerais

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Art. 244. A lei disporá sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência, conforme o disposto no art. 227, 2º.

Como o referido plexo normativo pavimenta haver o direito fundamental implícito sob comento, depreende-se que a norma minerada do inciso XXXI do art. 7º da CF e no inciso XXII do art. 611-B da CLT encampa também a proibição de discriminar o trabalhador com deficiência pela restrição à quantidade de vagas de emprego que devem ser ofertadas por cada empregador, ou, em outras palavras, pela restrição à proteção ao mercado de trabalho da pessoa com deficiência.

Em adendo, convém salientar que, recentemente, a Seção de Dissídios Coletivos do TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO, em sentido contrário a entendimentos pretéritos, assentou serem ilícitas cláusulas modificadoras da base de cálculo da quantificação da cota de contratação de trabalhadores PcDs ou reabilitados, conforme a seguinte ementa:

AÇÃO ANULATÓRIA. CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO FIRMADA ENTRE O SINDICATO NACIONAL DAS EMPRESAS AEROVIÁRIAS E O SINDICATO NACIONAL DOS AERONAUTAS. 1. CONTROVÉRSIA JURÍDICA QUE GIRA EM TORNO DO CUMPRIMENTO DAS COTAS DE CONTRATAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E APRENDIZES. PREVISÃO EM CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DE SUPRESSÃO DE FUNÇÕES PARA COMPOSIÇÃO DA BASE DE CÁLCULO. NÃO APLICABILIDADE AO CASO CONCRETO DO QUE DECIDIDO NO AGRAVO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.121.633 (TEMA 1.046 DA REPERCUSSÃO GERAL). A 1ª Turma da Suprema Corte decidiu, no julgamento da RCL 40.013 AGR/MG, que a controvérsia jurídica que gira em torno do cumprimento das cotas para a contratação de aprendizes e pessoas com deficiência tem assento constitucional previsto nos arts. 7º, XXXI, 203, IV, e 227, caput e § 1º, II. Dessa forma, concluiu que a referida matéria não está abarcada pelo Tema 1046 da Repercussão Geral (Validade de norma coletiva de trabalho que limita ou restringe direito trabalhista não assegurado constitucionalmente). 2. PEDIDO DE INGRESSO NA DEMANDA NA QUALIDADE DE AMICUS CURIAE. A CEBRASSE - Central Brasileira do Setor de Serviços postula ingresso nesta demanda na condição de amicus curiae. Conforme o ordenamento jurídico vigente e a jurisprudência desta Corte, é bastante restrita a legitimidade para atuação em ação anulatória de instrumento normativo autônomo. No caso, não vislumbro necessidade e pertinência para o ingresso da requerente na demanda na qualidade de Amicus Curiae. Indefere-se o pedido. 3. CLÁUSULA 3.1.19 - CONTRATAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. A norma impugnada encontra-se fixada em instrumento normativo que vigorou pelo período de 1/12/2017 a 30/11/2018, portanto, já na vigência da lei 13.467/17. Quando instada pela via da ação anulatória, compete à Justiça do Trabalho, por meio dos seus Tribunais, apreciar o teor das normas firmadas em instrumento normativo autônomo, à luz do ordenamento jurídico vigente. E, se for o caso, extirpar do diploma negociado pelos seres coletivos as regras que retiram direitos assegurados por norma estatal de caráter indisponível. O art. 7º, XXVI, da Constituição Federal de 1988, assegura o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho, que são elaborados e firmados pelos entes coletivos. A autonomia de vontade dos seres coletivos, manifestada mediante os instrumentos normativos autônomos, encontra limite nas normas heterônomas de ordem cogente, que tratam de direitos de indisponibilidade absoluta e normas constitucionais de ordem e de políticas públicas. O art. 611 da CLT dispõe que "Convenção Coletiva de Trabalho é o acordo de caráter normativo, pelo qual dois ou mais Sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho" Efetivamente, a autonomia coletiva dos sindicatos, assegurada pela Carta Magna, abrange a elaboração de normas de natureza coletiva, atinentes às condições aplicadas no âmbito das relações bilaterais de trabalho. No caso, a primeira questão que deve ser examinada nesta ação anulatória é se a matéria objeto da cláusula tem natureza coletiva. Observa-se que, ao excluir os aeronautas do cômputo na base de cálculo da cota prevista no artigo 93, da lei 8.213/91 e artigo 141, do Decreto nº 3.048/99, a norma impugnada trata de matéria que envolve interesse difuso (direito indivisível em que são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato), no caso, interesse das pessoas com deficiência. Ou seja, a regra ora atacada transpassa o interesse coletivo das categorias representadas, para alcançar e regular direito difuso, tratando-se, inclusive, de matéria de ordem e de políticas públicas, e, por isso, não é passível de regulação pela via da negociação coletiva. Há, portanto, flagrante violação do art. 611 da CLT, que autoriza a pactuação de instrumento normativo autônomo (convenção coletiva de trabalho) entre dois ou mais sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais, a fim de fixar condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho. Nessa condição, contata-se que a cláusula não atende os requisitos de validade estabelecidos no art. 104 do CCB, notadamente quanto à falta da capacidade dos agentes convenentes, para consentir e de dar função à regra, cujo objeto, repita-se, ultrapassa os interesses coletivos das categorias representadas, avançando sobre interesse de caráter difuso, que não são passíveis de negociação coletiva. Esta SDC já se pronunciou algumas vezes no sentido de declarar a nulidade de cláusula que trata de matéria estranha ao âmbito das relações bilaterais de trabalho, por afronta ao art. 611 da CLT (há julgados da SDC). Acrescente-se que, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proibição de discriminação no tocante ao salário e aos critérios de admissão do trabalhador com  deficiência (art. 7º, XXXI, da CF), da isonomia (art. 5º, "caput", da CF) e da valorização do trabalho (art. 170, III, da CF), a jurisprudência desta Corte Superior orienta-se no sentido de que o art. 93 da lei 8.213/91, estabeleceu cota mínima para contratação de pessoas com deficiência ou reabilitados pela Previdência Social com base no percentual de incidência sobre o número total de empregados da empresa, não estabelecendo nenhuma ressalva ou exceção de cargos ou atividades para o cômputo do cálculo. Nessa perspectiva, forçoso declarar a nulidade da norma. Julga-se procedente esta ação anulatória, a fim de declarar nula a Cláusula 3.1.19 da Convenção Coletiva de Trabalho da Aviação Regular - 2017/2018 - SNA/SNEA - registro no MTE Nº MR085025/2017. 4. CLÁUSULA 3.1.20. APRENDIZ. O art. 7º, XXVI, da Constituição Federal de 1988, assegura o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho, que são elaborados e firmados pelos entes coletivos. Nos termos do art. 611 da CLT, a autonomia coletiva dos seres coletivos, assegurada pela Carta Magna, abrange a elaboração de normas de natureza coletiva, atinentes às condições aplicadas no âmbito das relações bilaterais de trabalho. No caso, observa-se que, ao excluir os aeronautas do cômputo na base de cálculo da cota prevista no artigo 429 da CLT, também esta cláusula atinge interesse difuso, que transpassa o interesse privado passível de negociação pelas categorias representadas, regulando direito dissociado das condições de trabalho dos trabalhadores e, portanto, não deve constar em instrumento normativo autônomo, por afronta do disposto nos arts. 611 da CLT e art. 104 do CCB. Desse modo, forçoso declarar a nulidade da cláusula. Registre-se que, por óbvio, a declaração de nulidade da cláusula não elide as limitações e exclusões fixadas em regramento normativo estatal vigente, para efeito do cálculo do percentual de contratação de aprendizes. Julga-se procedente esta ação anulatória, a fim de declarar nula a Cláusula 3.1.20 da Convenção Coletiva de Trabalho da Aviação Regular - 2017/2018 - SNA/SNEA - registro no MTE Nº MR085025/2017. 5. PEDIDO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER E NÃO FAZER. O Ministério Público do Trabalho postula a imposição de obrigação de não fazer relativa à pactuação de cláusulas futuras com idêntico conteúdo normativo, bem como obrigação de fazer, com a fixação de cópias da decisão que vier a ser proferida por esta Corte, com a finalidade de dar ciência aos trabalhadores. A jurisprudência desta Seção Especializada firmou-se no sentido de que a imposição aos réus de obrigação de fazer, mediante a publicidade da decisão ou de não fazer, com a imposição de multa, consubstanciada na abstenção de repetir, em instrumentos normativos futuros, idêntico teor das cláusulas anuladas, é incompatível com a natureza da ação anulatória, que é meramente declaratória, o que não impede a ampla divulgação da decisão, caso seja interesse das partes. Há julgados da SDC. Julga-se improcedente o pedido quanto a este tópico.

(AACC - 1000639-49.2018.5.00.0000, Órgão Judicante: Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Relatora: Katia Magalhães Arruda, Julgamento: 13/11/2020, Publicação: 04/12/2020)

Logo, cláusulas de instrumentos coletivos de trabalho que apequenem a obrigação estabelecida no art. 93 da lei 8.213/91 são ilícitas e, por consequência, devem ser desconstituídas por ações anulatórias de cláusulas convencionais e/ou impedidas de voltarem a integrar o conteúdo de convenções coletivas ou acordos coletivos de trabalho, via tutela inibitória postulada em ações civis públicas, ambas as ações manejadas pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO.

Alternativamente, é possível a celebração de termos de ajustamento de conduta entre o Parquet Trabalhista e sindicatos e entre aquele e empregadores para as finalidades há pouco mencionadas.

Ricardo Araujo Cozer

Ricardo Araujo Cozer

Procurador do Trabalho lotado na Procuradoria Regional do Trabalho da 7ª Região.

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