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Em tempos de ameaças à democracia brasileira devemos esquecer do Direito ao Esquecimento?

A nossa corte constitucional, ao enfrentar uma disputa judicial movida contra a família de Aída Curi contra um veículo televisivo que rememorou o tenebroso assassinato décadas depois de sua ocorrência, decidiu ser incompatível com a nossa Constituição Federal.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Atualizado às 12:47

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em uma perspectiva individual, lembrar de tudo nem sempre é uma vantagem. Aliás, arrisco dizer que o poder de esquecer talvez seja um dos principais mecanismos da manutenção da nossa saúde mental. Imagine só se conseguíssemos, a todo tempo, lembrar de todas as nossas derrotas, vergonhas e dores? Eu mesmo, se acordasse todos os dias com a lembrança vívida, crua e pulsante dos episódios de homofobia pelos quais passei, certamente estaria afundado em uma cama, em grave depressão. É o poder de esquecer, ou, ao menos, de deixar de lembrar a todo tempo de fatos dolorosos que nos permite seguir com vida, viabilizando a nossa auto reinvenção.

Já há algum tempo a doutrina jurídica percebeu que, em nome da dignidade da pessoa humana e dentro do espectro da tutela da privacidade, todos tinham o Direito de esquecer - ou, melhor, de não ser lembrado involuntariamente - de fatos dolorosos do passado. Essa percepção vale tanto para um "mico" decorrente de uma bebedeira da adolescência ou para um pequeno ilícito no qual, por motivações hoje inexistentes, incorremos décadas atrás. É o chamado Direito ao Esquecimento. 

Não foi assim, porém, que entendeu o nosso Supremo Tribunal Federal. Ao enfrentar uma disputa judicial movida pela família de Aída Curi contra um veículo televisivo que rememorou o tenebroso assassinato décadas depois de sua ocorrência, o STF decidiu que o Direto ao Esquecimento é incompatível com a nossa Constituição Federal. A decisão até encontra bons fundamentos, mas, aqui, quero limitar-me a apontar um nítido vício na sua extensão, e não na sua racionalidade e conclusão.

Dúvida não há de que reconhecidos fatos históricos e atos de pessoas públicas não podem ser abarcados pelo que se entendia, até então, por Direito ao Esquecimento. Não fosse assim, legítima seria a pretensão da família dos assassinos de Vladimir Herzog de que esse crime brutal não mais fosse "ressuscitado" pela mídia, por mais dor que pudesse causar aos envolvidos diretos com o caso. É óbvio que acontecimentos dessa natureza merecem ser lembrados, relembrados, e novamente lembrados, mais ainda do que já o são, tendo em vista que ainda há muita gente que continua - por pura ignorância ou maldade mesmo, como aquela que leva alguém a homenagear o Coronel Ustra - celebrando a ditadura de 1964. Mas, a verdade é que nem todo fato é histórico e relevante: a maioria, em verdade, não o é.

Afinal, qual é o interesse público que existe em relembrar o longínquo passado criminoso ou vexatório de uma pessoa comum, desconhecida? Por que seria tão caro à sociedade saber que a dona da padaria do bairro, um dia, precisou trabalhar como prostituta para sobreviver, ou que o taxista, em um único ato de deslize em mais de 60 anos de vida, furtou uns chocolates, quando tinha 18 anos, para impressionar a sua namorada? Ou mais: por que permitir a manutenção, na primeira página de pesquisa da internet, da notícia sobre o início de uma investigação criminal instaurada contra um cidadão comum que provou ser inocente? O que a sociedade ganha com a dor e o prejuízo causados a essas pessoas comuns, ao tomar conhecimento de detalhes de sua vida pregressa? Absolutamente nada. 

No entanto, em razão da amplitude da decisão do STF, essas pessoas não terão como se defender, caso alguém qualquer queira lançar luzes sobre um fato qualquer, intencionalmente escondido a sete palmos. 

A liberdade de expressão é, sem sombra de dúvidas, um dos Direitos mais caros à democracia. Por isso, inclusive, entendo que a Lei de Segurança Nacional, resquício do nosso passado ditatorial que vem sendo utilizado para perseguir aqueles que assim criticam o líder do executivo federal, é absolutamente inconstitucional. Mas, a invocação à liberdade de expressão não pode ser feita de modo genérico e amplo, colocando-a acima de todos os demais que com ela "colidem". O próprio STF, inclusive, já entendeu que esse Direito deve ser limitado frente a um discurso de ódio, por exemplo, no caso Ellwanger.

A verdade é que o STF, ao declarar a incompatibilidade do Direito ao esquecimento com a Constituição Federal, sem fazer as ressalvas relacionadas a casos cujo conhecimento geral não é de interesse de todos, acabou retirando do cidadão comum uma ferramenta de defesa de sua própria privacidade, o que poderia ter sido evitado.

Exaltemos sempre a liberdade de expressão, mas não ao ponto de, em nome dela, tornarmo-nos verdadeiros "homens de vidro", que, a qualquer tempo e por quem quer que seja, podem ter suas lembranças dolorosas invadidas e publicadas.

Felipe Varela Caon

Felipe Varela Caon

Mestre em Direito Privado pela UFPE. Doutorando em Direito Civil na PUC/SP. Sócio do Serur, Camara, Mac Dowell, Meira Lins, Moura, Rabelo e Bandeira de Mello Advogados.

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