MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Migalhas de peso >
  4. O novo "estado de calamidade de âmbito nacional"

O novo "estado de calamidade de âmbito nacional"

Enquanto vivemos momentos difíceis decorrentes da pandemia deovid-19, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 109, que trouxe, dentre outras medidas, o "estado de calamidade pública de âmbito nacional".

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Atualizado em 6 de abril de 2021 16:53

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Crise constitucional

Todos nós, em algum momento das nossas vidas, passamos por crises. Não é diferente em relação ao Estado. Na hipótese de crises ou de anormalidades institucionais, a Constituição Federal tem o condão de estabelecer algumas diretrizes a fim de se mitigar ou eliminar a situação excepcional.

O legislador constituinte se incumbiu de prever um sistema harmônico de mecanismos para a preservação da ordem constitucional democrática. Canotilho (2003, p. 1086) afirma que

é preferível que seja a Constituição quem defina e consagre os pressupostos dos estados de exceção do que princípios de necessidade extra ou supraconstitucionais, pois estes estariam sujeitos a manipulação por parte de qualquer razão de Estado ou motivos de segurança e ordem pública.

Frise-se que, no âmbito das Constituições pretéritas a fragilidade democrática não evitou que golpes de estado estabelecessem regimes de exceção, tais como a Ditadura de Vargas, nas décadas de 30 a 40, e dos militares nas décadas de 60 a 80.

Não é por acaso que a atual Constituição cidadã previu um Título específico para tratar do "Sistema Constitucional das Crises", que abarca temas como o Estado de Defesa e o Estado de Sítio, estabelecendo regras determinadas a se mitigar a pretensão de desestabilização de um Estado, que em regime de exceção poderia se configurar como Estado totalitário.

Poder Constituinte Originário reconheceu a necessidade e a urgência como critérios para o Presidente da República considerar no momento da decretação do Estado de Defesa ou o Estado de Sítio. Trata-se, em suma, de algo próximo ao "estado de necessidade" do Direito Penal (excludente da ilicitude) ou a "dispensa e inexigibilidade de licitação", no Direito Administrativo. São situações previstas em lei, mas que se constituem em exceção à diretriz daquele sistema normativo como um todo. E no caso dos estados de exceção constitucional poderão até mesmo implicar em medidas restritivas aos direitos fundamentais, tais como o direito de reunião, o direito de comunicação e até mesmo o direito de locomoção e, quiçá, o direito à vida.

Sobre o uso do decreto de exceção em situação de urgência, especialmente na história da Itália (AGAMBEN, 2004, p. 32-33):

O parlamento não é mais o órgão soberano a quem compete o poder exclusivo de obrigar os cidadãos pela lei: ele se limita ratificar os decretos emanados pelo poder executivo. Em sentido técnico, a República não é mais parlamentar e, sim governamental. E é significativo que semelhante transformação da ordem constitucional, que hoje ocorre em graus diversos em todas as democracias ocidentais, apesar de bem conhecida pelos juristas e pelos políticos, permaneça totalmente despercebida por parte dos cidadãos.

Importante destacar que as medidas de necessidade e urgência (Estado de Sítio e Estado de Defesa) são decretadas pelo Presidente da República, sendo submetidas a autorização ou aprovação pelo Congresso Nacional, respectivamente. Trata-se, em suma, de medida adotada pelo Poder Executivo, que passa pelo crivo do Legislativo.

O estado de calamidade pública de âmbito nacional

A experiência desgastante e frustrante que vem passando o país desde o advento da pandemia covid-19 fez o Brasil repensar alguns institutos jurídicos que já não se encontravam adequados. E fez também com o que o legislador passasse a prever novas medidas fiscais, financeiras e contratuais a serem tomadas diante de uma calamidade de âmbito nacional, que exige medidas urgentes e não podem aguardar o iter procedimental comum.

Nessa toada, o Decreto 06/20 previu o estado de calamidade pública que vigorou entre 18 de março e 31 de dezembro de 2020, através de um regime excepcional de medidas fiscais e de execução orçamentária.

Por derradeiro, o Poder Constituinte derivado reformador optou por criar um novo regime de exceção que embora não guarida topográfica no Capítulo do "Sistema Constitucional das Crises", também se constitui em medida de exceção que muito se aproxima ao sistema das crises, com a diferença de não implicar diretamente na restrição ou supressão dos direitos fundamentais. Trata-se do "Estado de calamidade pública de âmbito nacional", previsto no contexto das Finanças Públicas, e cuja competência para a decretação é exclusiva do Congresso Nacional, nos seguintes termos:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: XVIII - decretar o estado de calamidade pública de âmbito nacional previsto (...).

Entrementes, embora a decretação agora recaia sobre as mãos do Poder Legislativo, invertendo-se a lógica do regime de exceção no Brasil, a sua iniciativa é do Presidente da República, conforme aduz a Carta Magna:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: XXVIII - propor ao Congresso Nacional a decretação do estado de calamidade pública de âmbito nacional previsto nos artigos 167-B, 167-C, 167-D, 167-E, 167-F e 167-G desta Constituição.

Nesse diapasão vale lembrar que enquanto o Estado de Defesa e o Estado de Sítio são medidas decretadas pelo Presidente da República, submetidas a aprovação (análise posterior) ou autorização (análise prévia) do Congresso Nacional, o novel instituto do Estado de Calamidade Pública de âmbito nacional será decretado pelo Congresso Nacional, dependendo de provocação do Presidente da República.

O efeito principal do "estado de calamidade pública de âmbito nacional" consiste na inauguração de um "regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações", nos seguintes termos:

Art. 167-B. Durante a vigência de estado de calamidade pública de âmbito nacional, decretado pelo Congresso Nacional por iniciativa privativa do Presidente da República, a União deve adotar regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para atender às necessidades dele decorrentes, somente naquilo em que a urgência for compatível com o regime regular, (...)"

No que toca às contratações, importa destacar que o Poder Executivo federal pode adotar processos simplificados de contratação de pessoal, de caráter temporário e emergencial, e de obras, serviços e compras que assegurem, quando possível, competição e igualdade de condições a todos os concorrentes. Nesse caso, seria permitido contratar servidores públicos temporários, bem como contratar diretamente bens e serviços, tendo em vista a situação de calamidade pública de âmbito nacional.

Conclusão

Ademais, tendo em vista a necessidade do equilíbrio entre os poderes da república, a fim de se evitar o abuso do exercício das medidas de exceção nas mãos de um único Poder, o Presidente da República (Executivo), é salutar que a medida do estado de calamidade pública de âmbito nacional seja decretada pelo Poder Legislativo, considerando-se ainda que o Poder Legislativo é o mais habilitado a resolução de decisões de caráter financeiro e orçamentário, considerando-se as competências constitucionais.

Restará aos intérpretes da Constituição a definição do quórum de aprovação da medida pelo Congresso Nacional, já que se trata de órgão colegiado e que depende da manifestação de no mínimo a maioria simples dos parlamentares. Se considerarmos que o estado de calamidade pública de âmbito nacional consiste em medida de exceção constitucional, então poderá se abrir uma linha pensamento no sentido da necessidade do quórum da maioria absoluta dos deputados e senadores para a aprovação da medida, considerando-se que as demais medidas (Estado de Defesa e Estado de Sítio) exigem o referido quórum para a aprovação e autorização das medidas.

De outra banda, podemos caminhar no sentido da necessidade de quórum da maioria simples (maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros), considerando o silêncio do legislador reformador.  

Em qualquer caso, a triste experiência da pandemia covid-19 nos fez repensar novos institutos adequados e adaptados a situações de calamidade, que exigem medidas rápidas e necessárias que não sejam tão graves e desastrosas como um Estado de Defesa ou Estado de Sítio e permitam flexibilidade à Administração Pública principalmente no que toca ao regime de contratações e ao regime fiscal, permitindo que o Estado de amolde à novas situações e, com base na ética e na primazia da saúde da população, consiga efetivar políticas efetivas e rápidas de combate à calamidade, em homenagem ao princípio da supremacia do interesse público.

_____________________________

AGAMBEN, G. Estado de exceção. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2004. (estado de sítio).

CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. Ed. Coimbra (Portugal): Edições Almedina, 2003.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

César A. A. Babler

César A. A. Babler

Mestre em Educação, Advogado, Coordenador da Pós Graduação em Direito Público na Escola Superior de Direito, Professor Universitário, de Concursos Públicos e OAB, Autor de livros jurídicos e podcasts jurídicos.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca