MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Regime tributário federal das fintechs de crédito e §1º do artigo 108 do CTN

Regime tributário federal das fintechs de crédito e §1º do artigo 108 do CTN

A intepretação analógica encontra limite no princípio da legalidade tributária, sendo vedada aquela que exige do contribuinte obrigação tributária não prevista em lei.

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Atualizado às 17:52

1. Introdução

De modo geral, instituições financeiras estão submetidas a regras tributárias específicas, especialmente no que se refere à apuração de tributos federais como IRPJ, CSLL, PIS e COFINS. Regra de observância imediata está inscrita no inciso II do artigo 14 da lei 9.718/98, que elenca entidades do Sistema Financeiro Nacional ("SFN") e do Sistema Nacional de Seguros Privados ("SNSP") obrigadas a adotar o método do Lucro Real.

Essas mesmas entidades do SFN e do SNSP estão elencadas no rol do §1º do artigo 22 da lei 8.212/911 como entidades sujeitas ao adicional de 2,5% de INSS. Ademais, elas também estão indicadas pelo §6º do artigo 3º da lei 9.718/98 que, por sua vez, fundamenta a obrigatoriedade de adoção do regime cumulativo do PIS e COFINS, por força do inciso I do artigo 8º da lei 10.637/02 e inciso I do artigo 10 da lei 10.833/03.

No regime cumulativo, estão sujeitas às alíquotas de 0,65% de PIS e 4% de COFINS, esta última majorada em razão do artigo 18 da lei 10.684/03. Já os incisos I ao IV do §6º do artigo 3º da lei 9.718/98 permitem que elas deduzam certas despesas da base de cálculo do PIS e COFINS.

Até aqui, verifica-se que as entidades do SFN e do SNSP elencadas no inciso II do artigo 14 da lei 9.718/98 estão sujeitas ao método do Lucro Real. Em razão de também estarem elencadas no §1º do artigo 22 da lei 8.212/912, estão sujeitas ao adicional de 2,5% de INSS e ao regime cumulativo do PIS e da COFINS, esta majorada à alíquota de 4%, com a possibilidade de dedução de certas despesas da base de cálculo dessas contribuições sociais.

Vê-se, então, que tanto o inciso II do artigo 14 da lei 9.718/98 como o §1º do artigo 22 da lei 8.212/91 submetem algumas entidades do SFN e do SNSP à um regime tributário federal específico3. 

2. Ausência de expressa menção às fintechs de crédito

Desde abril de 2018, as fintechs de crédito estão regulamentadas pelo Banco Central do Brasil ("BCB") através da Resolução 4.656/18 que disciplina as duas formas pelas quais essas entidades do SFN estão autorizadas a funcionar no País, quais sejam: a Sociedade de Crédito Direto ("SCD") e a Sociedade de Empréstimo entre Pessoas ("SEP")4.

Observou-se, contudo, que em descompasso com a regulamentação do BCB, a legislação tributária não sofreu as correspondentes alterações, restando omissa quanto à inclusão da SCD e SEP entre as entidades do SFN submetidas ao regime tributário previsto no inciso II do artigo 14 da lei 9.718/98 e §1º do artigo 22 da lei 8.212/91. Estariam então a SCD e a SEP, por serem entidades do SFN, submetidas ao regime tributário atribuído por ambos os dispositivos legais, ainda que sem expressa menção?

Para esclarecer essa questão, serão analisados a seguir alguns precedentes do Superior Tribunal de Justiça ("STJ") e da Coordenação-Geral de Tributação ("Cosit") da Receita Federal do Brasil ("RFB"). Embora não tenham abordado os casos da SCD e SEP, os precedentes fornecem elementos da interpretação dos órgãos acerca dos dispositivos legais sob análise e compreensão do regime tributário federal aplicável a essas duas novas espécies de entidades do SFN.

2.1. Interpretação do STJ

No STJ, existem dois importantes precedentes que, julgados conjuntamente, resultaram na Súmula 584 do referido órgão, a saber: o Recurso Especial 1.391.092/SC ("REsp 1.391.092/SC") e o Recurso Especial 1.400.287/RS ("REsp 1.400.287/RS").

As duas teses fazendárias debatidas nos precedentes consistiam em equiparar as sociedades corretoras de seguros aos "agentes autônomos de seguros privados" ou enquadrá-las no gênero "sociedades corretoras", ambos mencionados no rol do §1º do artigo 22 da lei 8.212/91. 

De acordo com os argumentos do Min. Relator Mauro Campbell, as sociedades corretoras de seguros não são equiparáveis aos "agentes autônomos de seguros privados", pois ambos ocupam campos de atuações distintos. Enquanto as corretoras de seguros se relacionam com clientes por meio de contrato de corretagem (artigo 722 do Código Civil), os agentes autônomos de seguros privados se relacionam com as seguradoras por meio de contrato de agência (artigo 710 do Código Civil).

Já a segunda tese, de que as sociedades corretoras de seguros pertenceriam ao gênero "sociedades corretoras", também restou afastada. Para tanto, o Min. Relator argumentou que o §1º do artigo 22 da lei 8.212/91 trata de sujeição passiva tributária separada em dois blocos distintos.

O 1º bloco5, no qual consta a expressão "sociedades corretoras", refere-se às entidades do SFN, enquanto o 2º bloco6 refere-se às entidades do SNSP. Para o Min. Relator, "muito embora o art. 8º, "e", do Decreto-Lei 73/66 preveja que "os corretores habilitados" fazem parte do Sistema Nacional de Seguros Privados, se essas "sociedades corretoras de seguros" não estão expressamente elencadas no 2º bloco, não há como a elas estender a sujeição passiva tributária por analogia às demais entidades que ali estão. A vedação está no art. 108, §1º, do CTN."

Seguindo essa linha de argumentação, o Min. Relator destacou o seguinte:

"A relação do 2º bloco então restou incompleta, não abrangendo todas as entidades do Sistema Nacional de Seguros Privados. O equívoco cometido não pode ser corrigido pelo Poder Judiciário, já que ensejaria o uso de analogia vedada, pois não há que se falar em interpretação extensiva do termo "sociedades corretoras" contido no 1º bloco. Com efeito, a expressão "sociedades corretoras" já tem significado próprio no âmbito do Sistema Financeiro Nacional." (g.n.)

Assim, o Min. Relator concluiu que o termo "sociedades corretoras" somente poderia se referir às "sociedades corretoras de valores mobiliários" (regidas pela Resolução BACEN1.655/89). Essa interpretação é reforçada pelo fato de que as deduções da base de cálculo do PIS e da COFINS do inciso I do §6º do artigo 3º da lei 9.718/98 (no qual consta a expressão "sociedades corretoras") guardam relação com despesas das entidades do SFN (bloco 1), não guardando qualquer relação com despesas das sociedades corretoras de seguros, desenquadrando-a no gênero "sociedade corretoras".

A Seção, por maioria, vencido o Min. Napoleão Nunes Maia Filho, negou provimento aos recursos fazendários, nos termos do voto do Min. Relator Mauro Campbell, consolidando o entendimento de que as sociedades corretoras de seguros estão fora do rol do §1º do artigo 22 da lei 8.212/91.  

2.2. Interpretação da Cosit - RFB

Na Solução de Consulta Cosit 283, de 26 de dezembro de 2018 ("SC 283/18"), a RFB concluiu que não se aplica às Sociedades de Crédito ao Microempreendedor e à Empresa de Pequeno Porte ("SCMEPP") o adicional de 2,5% de INSS previsto no §1º do artigo 22 da lei 8.212/91.

Para chegar a essa conclusão, a RFN argumentou que o §1º do artigo 22 da lei 8.212/91 elenca um rol taxativo de pessoas jurídicas sujeitas ao adicional de 2,5% de INSS e "(...) não faz menção ao gênero "instituição financeira", mas a algumas de suas espécies". Assim, a SCMEPP, compreendida no conceito de entidade do SFN, somente estaria enquadrada no rol pelo uso da analogia.

Contudo, em linha com a interpretação do STJ, a RFB frisou que o uso da analogia não pode resultar em exigência de tributo não previsto em lei (§1º do artigo 108 do CTN), haja vista se tratar de matéria objeto de reserva legal (artigo 97 do CTN). Com base nesses fundamentos, a RFB concluiu da seguinte forma:

"Desse modo, considerando que o § 1º do art. 22 da lei 8.212, de 1991, com alterações, não fez referência ao gênero "instituições financeiras", mas a determinadas espécies de instituições financeiras, e que ele omitiu a espécie SCMEPP, depreende-se que as SCMEPP não estão sujeitas ao adicional de 2,5% da contribuição previdenciária, pois, aumento de alíquota ou sua criação é matéria objeto de reserva legal, impossível de ocorrer com base em analogia." (g. n.)

Desfecho semelhante é visto também na Solução de Consulta Cosit n. 301, de 17 de dezembro de 2019 ("SC 301/19"). Nesse caso, a consulente questionou à RFB se a majoração da alíquota de COFINS para 4% do artigo 18 da lei 10.684/03 e a dedutibilidade das despesas do inciso I do §6º do artigo 3º da lei 9.718/98 seriam aplicáveis às SCMEPP7.

A SC 301/19 está baseada nos mesmos fundamentos da SC 283/18. Isto é, ainda que a SCMEPP seja uma entidade do SFN, os §§ 6º e 8º do artigo 3º da lei 9.718/98 elencam rol taxativo e "não fazem menção ao gênero "instituição financeira", mas a algumas de suas espécies". Assim, RFB solucionou a consulta nos seguintes termos:

"Desse modo, considerando que os §§ 6º e 8º do art. 3º da lei 9.718, de 1998, com alterações, não fazem referência ao gênero "instituições financeiras", mas a determinadas espécies de instituições financeiras, e que eles não elencaram a espécie SCMEPP, depreende-se que as SCMEPP não tiveram a alíquota da Cofins majorada pelo art. 18 da lei 10.684, de 2003, com alterações, dado que aumento de alíquota é matéria objeto de reserva legal." (g.n.)

Baseada nessa interpretação, a RFB concluiu também que as SCMEPP não poderiam efetuar as deduções da base de cálculo do PIS e da COFINS mencionadas no inciso I do §6º do artigo 3º da lei 9.718/98.

Vale notar também que as SCMEPP já foram desenquadradas da obrigatoriedade de adotar o método do Lucro Real, conforme a Solução de Consulta 474, de 15 de dezembro de 2009, conforme a seguinte ementa:

 "Assunto: (...) IRPJ. SCMEPP. Lucro Real.

 

As Sociedade de Crédito ao Microempreendedor e à Empresa de Pequeno Porte (SCMEPP) não se enquadram no art. 14, inciso II, da Lei No- 9.718, de 1998, para fins de apuração obrigatória pelo lucro real.

Assunto: (...) CSLL. SCMEPP. Alíquota.

Não se aplica às Sociedade de Crédito ao Microempreendedor e à Empresa de Pequeno Porte (SCMEPP) a alíquota de 15% da CSLL prevista no art. 3º, inciso I, da Lei No- 7.689, de 1988." (g.n.)

Não se pode ignorar também o Parecer Normativo n. 1, de 3 de agosto de 1993, através do qual a Cosit desenquadrou as sociedades corretoras de seguros da obrigatoriedade de adoção do método do Lucro Real, à época, previsto no inciso III do artigo 5º da lei 8.541/92. No seu entender "(...) apenas as instituições ali expressamente elencadas estão obrigadas à apuração do lucro real, pelo que se conclui que as sociedades corretoras de seguros não estão alcançadas por aquela exigência, posto que elas não se confundem com as empresas de seguros privados."

Vale notar que as manifestações da Cosit "têm efeito vinculante no âmbito da RFB", conforme previsão expressa do artigo 9º da Instrução Normativa 1.434/13, razão pela qual devem ser obrigatoriamente adotadas pelos auditores fiscais da RFB.

3. Conclusão sobre o regime tributário federal das fintechs de crédito

Estariam então a SCD e a SEP, por serem entidades do SFN, submetidas ao regime tributário atribuído pelo inciso II do artigo 14 da lei 9.718/98 e §1º do artigo 22 da lei 8.212/91, ainda que sem expressa menção? A resposta, em coerência com os precedentes suscitados, há de ser negativa.

De fato, ainda que os precedentes tenham tratado de outras entidades do SFN e do SNSP (i.e., SCMEPP e sociedade corretora de seguros), neles existem argumentos que afastam o alcance de ambos os dispositivos legais aos casos da SCD e da SEP.

Primeiramente em razão de que a SCD e a SEP não devem ser confundidas com nenhuma das entidades do SFN mencionadas por ambos os dispositivos legais. Vale dizer, as "sociedades de crédito direto8" não devem ser enquadradas ou equiparáveis, por exemplo, às "sociedades de crédito, financiamento e investimentos9", pois ambas ocupam campos de atuações distintos. Cada uma das entidades do SFN possui estrutura jurídica própria, com seus respectivos requisitos para constituição e funcionamento no País.

Em segundo lugar, embora a SCD e a SEP sejam entidades do SFN, se essas espécies não estão expressamente elencadas no inciso II do artigo 14 da lei 9.718/98 e no §1º do artigo 22 da lei 8.212/91 não há como a elas estender o tratamento tributário por analogia às demais entidades que ali estão, pois com elas não se confundem. A vedação, para tanto, está no §1º do artigo 108 do CTN.

Por essas razões, pode-se concluir que as fintechs de crédito poderão optar pelo regime do Lucro Presumido ou pelo Lucro Real, sempre que atendidos os critérios de enquadramento de cada regime (artigo 14 da lei 9.718/98). Consequentemente, poderão estar sujeitas ao PIS e COFINS no regime cumulativo à alíquota consolidada de 3,65%, sem direito às deduções do §6º do artigo 3º da lei 9.718/98 ou, então, ao regime não-cumulativo à alíquota consolidada de 9,25% (leis 10.637/02 e n. 10.833/03), conforme o enquadramento aplicável e a natureza da receita de suas operações. Por fim, resta concluir também que não estarão sujeitas ao adicional de INSS de 2,5%.

______________________

1 Na redação §1º do artigo 22 da lei 8.212/91, há ainda menção aos agentes autônomos de seguros privados e de crédito e entidade de previdência privada fechada.

2 Vide nota 1.

3 Obrigatoriedade de adoção do lucro real (inciso II do artigo 14 da lei 9.718/98), regime cumulativo do PIS e COFINS, alíquota majorada de 4% de COFINS e adicional de INSS de 2,5% (§1º do artigo 22 da lei 8.212/91).

4 Uma das principais diferenças entre essas sociedades reside no fato de que a SEP pode fazer captação de recursos do público, enquanto a SCD deve realizar suas operações de crédito com recursos próprios.

5 "1º Bloco (Sistema Financeiro Nacional): bancos comerciais, bancos de investimentos, bancos de desenvolvimento, caixas econômicas, sociedades de crédito, financiamento e investimento, sociedades de crédito imobiliário, sociedades corretoras, distribuidoras de títulos e valores mobiliários, empresas de arrendamento mercantil, cooperativas de crédito;" (g.n.)

6 "2º Bloco (Sistema Nacional de Seguros Privados): empresas de seguros privados e de capitalização, agentes autônomos de seguros privados e de crédito e entidades de previdência privada abertas e fechadas."

7 Recorde-se que tanto o artigo 18 da lei 10.684/03 como o §6º do artigo 3º da lei 9.718/98 se referem às entidades do SFN elencadas pelo §1º do artigo 22 da lei 8.212/91.

8 Instituições financeiras que têm por objeto a realização de operações de empréstimo exclusivamente por meio de plataforma eletrônica, com utilização de recursos financeiros que tenham como única origem capital próprio

9 Instituições privadas que fornecem empréstimo e financiamento para aquisição de bens, serviços e capital de giro.

Nazir Tarek Tarraf

Nazir Tarek Tarraf

Especialista em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogado graduado pela PUC-SP.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca