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Da necessidade de se repensar a legítima no direito brasileiro

O presente artigo propõe uma releitura da legítima a partir da autonomia privada e dos fundamentos da legítima, concluindo pela necessidade de revisão da legítima, já que se deve assegurar o mínimo existencial da pessoa humana.

terça-feira, 6 de abril de 2021

Atualizado em 8 de abril de 2021 13:30

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O presente artigo objetiva discutir a (in)compatibilidade da existência da legítima - parte indisponível, correspondente à metade do patrimônio do de cujus, da qual faz jus os herdeiros necessários (art. 1846 do Código Civil - CC) - com a autonomia privada (corolário da liberdade individual e da livre iniciativa), direito fundamental que garante à pessoa o exercício de sua vontade.

Para o cálculo da legítima, leva-se em consideração os bens existentes na abertura da sucessão, bem como o abatimento das dívidas e despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos à colação (art. 1847, CC).  Como modo de proteção da legítima, inquinam-se, de nulidade, eventuais doações que excederem a parte que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento (art. 549, CC) e testamentos que não observem a parte indisponível da herança (legítima). Em casos tais, permite-se tanto a redução das disposições testamentárias (art. 1.967, CC) quanto das doações que excederem o que o doador poderia dispor no momento da liberalidade (art. 2007, CC).

O cerne é, assim, analisar se tais limitações à autonomia privada devem subsistir ou, ao menos, ser revistas, especialmente porque a livre disposição dos bens está diretamente relacionada com o direito fundamental à propriedade (art. 5º, caput, CR/88) e à livre iniciativa (arts. 1º, IV e 170, caput, da CR/88).  Tais limitações apresentam reflexos no tocante ao planejamento sucessório, que possui o "intuito de idealizar a divisão do patrimônio de alguém, evitando conflitos desnecessários e procurando concretizar a última vontade da pessoa cujos bens formam o seu objeto (TARTUCE; HIRONAKA, 2019, p. 88)". Como observam estes autores, a liberdade de testar (corolário da autonomia privada) desenvolve a iniciativa individual, já que quando o sujeito sabe que não pode contar com a herança, procura desempenhar atividades para buscar o devido sustento, fato que reflete no inconsciente coletivo pela necessidade do trabalho (TARTUCE; HIRONAKA, 2019, p. 89)". Para tanto, é fundamental analisar os fundamentos da legítima.

A ideia da legítima remonta ao direito romano, que desde aquela época trazia a figura dos herdeiros necessários. O testador, ao elaborar o testamento, não possuía liberdade absoluta, sendo limitado por duas restrições (ALVES, 2016, p. 755): a) uma de ordem formal, consistente na necessidade de mencionar alguns herdeiros legítimos no testamento; b) outra de caráter material, na medida em que o testador deveria instituir herdeiros testamentários a certos herdeiros legítimos (atribuindo-lhes certa cota de bens).

No tocante à parte disponível no direito romano, o valor da legítima iria depender da quantidade e espécie de herdeiros que a pessoa possuísse: dois terços, se deixasse até quatro filhos; metade, se deixasse mais de quatro filhos. Em relação aos demais herdeiros, "a reserva hereditária variava da metade a um terço da sua parte, ab intestato, segundo essa parte se elevava ou não a um quarto da herança; quando o herdeiro era pessoa torpe (BEVILÁQUIA, 1983, p. 748)".

A última ideia - poder de dispor de dois terços - foi adotada pelas Ordenações do Reino de Portugal, em caso de se deixar herdeiros necessários.  Quando da tramitação do Código Civil de 1916, a primeira ideia foi a da liberdade de testar, isto é, sem qualquer restrição em relação à legítima, sendo tal regra aprovada na Câmara dos Deputados e reprovada no Senado, diante da denominada "desastrosa inovação" (TARTUCE; HIRONAKA, 2019, p. 92).

Há países que reservam uma cota parte da herança para determinados herdeiros, que tradicionalmente é chamada de legítima, como é o caso do Brasil. Isso geralmente se dá em países que se basearam no Direito Romano. Por sua vez, há países que garantem um direito a crédito em relação à herança, como é o caso da Alemanha e Áustria, mas é de se notar que, mesmo em países que a liberdade de testar é maior, nenhum deles é absoluta, já que a limitação ao direito de testar mediante o reconhecimento de certos parentes e do cônjuge do direito a alimentos (HIERRO; HIERRO, 2010, p. 25). Independentemente do sistema que se adota, qual seria o fundamento da legítima?

Em Portugal, a propriedade privada se apresenta como norte do sistema sucessório (TARTUCE, 2020, p. 120). É comum que algumas Constituições associem o direito das sucessões ao direito de propriedade, como faz o art. 14 da Constituição da Alemanha, ao dispor que: "(1) A propriedade e o direito de sucessão são garantidos. Seus conteúdos e limites são definidos por lei. (2) A propriedade obriga. Seu uso deve servir, ao mesmo tempo, ao bem comum. (3) Uma expropriação só é lícita quando efetuada para o bem comum. Pode ser efetuada unicamente por lei ou em virtude de lei que estabeleça o modo e o montante da indenização. A indenização deve ser fixada tendo em justa conta os interesses da comunidade e dos afetados". Todavia, adverte Tartuce (2020, p. 121), que, na realidade portuguesa, foi mantida a ideia de proteção da família, como controle social ao exercício da faculdade de dispor, retirada do direito subjetivo de propriedade.

Quanto ao direito italiano, o cerne do fundamento da legítima diz respeito à ideia de solidariedade familiar, que se apresenta como fundamento de diversos institutos do Direito Civil brasileiro, já que a solidariedade social é um dos objetivos da Constituição da República Federativa do Brasil (art. 3º).  De acordo com os artigos 565 e 572 do Código Civil italiano, na sucessão legítima, a herança é atribuída ao cônjuge, aos descendentes, aos ascendentes, aos colaterais, aos outros parentes e ao Estado, e, se a pessoa morrer sem deixar prole, nem genitores, nem outros ascendentes, nem irmãos ou irmãs ou seus descendentes, a sucessão será aberta em favor do parente ou dos parentes próximos, sem distinção de linhas, seja ela paterna ou materna., sendo que a sucessão está limitada aos parentes de até sexto grau.

Como Portugal, o direito italiano também apresenta a ideia de variabilidade da legítima. De acordo com o art. 536 do Código Civil italiano, são considerados herdeiros necessários o cônjuge, os filhos e os ascendentes, de sorte que:c

Ao filho único é reservada a metade do patrimônio do falecido; em havendo dois filhos ou mais, a reserva é de dois terços do patrimônio (art. 537). Em favor dos ascendentes, a reserva é de um terço dos bens do morto, como regra (art. 538). A respeito do cônjuge, a reserva volta a ser a metade dos bens do de cujus, salvo se houver concurso ou concorrência com os filhos, hipótese em que terá direito a um terço ou um quarto dos bens, a depender da qualificação dos filhos com os quais concorre (arts. 540 e 542 do Código Civil italiano). Como última regra a ser destacada, o art. 544 da norma codificada italiana estabelece que, quando alguém morre sem ter filhos, mas ascendentes e o cônjuge, a este último é reservada a metade do patrimônio e um quarto para os ascendentes (TARTUCE, 2020, p. 127).

Dentre os países da América Latina, percebe-se que também há outros fundamentos para se sustentar a legítima, como se extrai do peru, cuja razão é a ordem econômica, além da propriedade e da família. Neste país, também há a ideia de herdeiros necessários (denominados de forçados), que, segundo o art. 724 do Código Civil peruano, são os filhos e demais descendentes, os pais e demais ascendentes e o cônjuge.  No que tange ao percentual, o art. 725 do Código Civil peruano aduz que, quanto aos descendentes e o cônjuge, haverá a proteção de 2/3 do patrimônio do falecido. Em relação aos ascendentes, ao art. 726 traz a proteção da metade do patrimônio do de cujus. E, quando não houver descendentes, ascendentes ou cônjuge, haverá a livre disposição de seus bens por testamento, consoante art. 727 do Código Civil.

Por sua vez, os países de Direito Anglo-saxão reconhecem o direito à liberdade de testar de forma absoluta, decorrentes da formação do sistema common law, tornam o testador verdadeiro sujeito de direito na manifestação de vontade como nos EUA. O México, que tem grande influência do direito estadunidense, adota a liberdade testamentária garantindo contraprestação de auxílios se necessários, conforme artigo 1374 do Código Civil Mexicano. Há a liberdade de testar limitando o testador apenas ao pagamento de pensão alimentícia ao cônjuge, a certos parentes em linha reta, ao companheiro se este não estiver apto ao trabalho. Honduras segue o mesmo raciocínio no artigo 1147 de seu Código Civil. No mesmo sentido acontecem nos sistemas dos Códigos Civis da Guatemala, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica e Panamá.

E no Brasil? Orlando Gomes (2001, p. 2) aponta, por exemplo, o fundamento mais forte é o de que a herança não é mais do que a extensão da propriedade privada além dos limites da vida humana, pois se a apropriação individual de bens de qualquer espécie é legalmente protegida, e até estimulada, não se justifica a expropriação com a morte do proprietário.

Em sua tese de titularidade defendida na Universidade de São Paulo, Giselda Hironaka (2009, p. 394) defendeu que o fundamento da transmissão causa mortis estaria além de uma expectativa de continuidade patrimonial, quer dizer, na simples manutenção dos bens na família, "como forma de acumulação de capital que, por sua vez, estimularia a poupança, o trabalho e a economia, porém, mais que isso, o grande fundamento da transmissão sucessória habitaria o fator de proteção, coesão e de perpetuidade da família".

Assim, a ideia de sucessão seria a necessidade de proteção, coesão e perpetuidade da família.  Para Tartuce (2019, p. 25), o Direito Sucessório está baseado no direito de propriedade e na sua função social (art. 5.º, XXII e XXIII, da CF/1988), tendo esteio a sucessão mortis causa na valorização constante da dignidade humana, seja do ponto de vista individual ou coletivo, conforme os arts. 1.º, inciso III, e 3.º, inciso I, da Constituição Federal de 1988.

Como se viu, o fundamento da legítima varia bastante entre os países. Em Portugal, o fundamento principal foi o direito de propriedade, tendo relação indireta com o direito de família, apresentando-se a legítima variável, baseada na função social da propriedade e sua proteção à família. 

Por sua vez, na Itália, o principal fundamento apresentado foi a solidariedade familiar, havendo, da mesma forma, um sistema de legítima variável, fato que também foi observado no Peru, que tem legítima variável e, além da propriedade e da proteção à família, também tem fundamento em razões econômicas.

No Brasil, pode-se dizer que a proteção da legítima encontra fundamento variado nas diversas posições supracitadas, sendo que esta deve ser revista, quer em um montante menor, como, por exemplo, 25% do patrimônio do falecido, quer em um montante variável, abrindo-se uma maior possibilidade à efetivação do planejamento sucessório,  já que a legítima deve assegurar o mínimo existencial da pessoa humana,  não devendo incentivar o ócio exagerado dos herdeiros.

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- FERNÁNDEZ-HIERRO, María; FERNÁNDEZ-HIERRO, Marta. Panorama legislativo actual de la libertad de testar. Boletim JADO. Bilbão. Ano VIII, 19. Maio 2010, p.17-80.

GOMES, Orlando. Sucessões. Atualização de Humberto Theodoro Júnior. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Morrer e suceder: passado e presente da transmissão sucessória concorrente. Tese (Concurso Público de Professor Titular) - Departamento de Direito Civil, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010 - Edital FD 44/09.

TARTUCE, Flávio; HIRONAKA, Giseda Maria Fernandes Novaes. Planejamento sucessório: conceito, mecanismos e limitações. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | Belo Horizonte, v. 21, p. 87-109, jul./set. 2019, p. 88.

______. Fundamentos do direito das sucessões em outros sistemas e no Brasil. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | Belo Horizonte, v. 25, p. 117-140, jul./set. 2020.

Gustavo Silva Xavier

Gustavo Silva Xavier

Mestre em Direito, Professor Universitário, Procurador Municipal, autor de livros e artigos científicos, advogado e consultor jurídico.

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