O preço público "natimorto" do município do Rio de Janeiro sobre o transporte via aplicativos
Numa análise do conteúdo normativo, é possível observar que a regulamentação proposta pelo novo decreto é mais reduzida que as das normas anteriores.
quinta-feira, 8 de abril de 2021
Atualizado às 11:37
Na última terça-feira (16), o Município do Rio de Janeiro publicou o Decreto 48.612/21 numa nova tentativa questionável de regulamentar o transporte individual privado remunerado de passageiros por meio de aplicativos ou plataformas de comunicação em rede.
Essa não é a primeira tentativa do município de regulamentar a matéria. Anteriormente, a prefeitura editara os Decretos 44.399/18 e 46.417/19, sem sucesso. Ambos encontram-se com efeitos suspensos por força de decisão proferida na representação de inconstitucionalidade 0055524-16.2019.8.19.0000, do Tribunal de Justiça do Estado. Esta motivação é, inclusive, citada na nova norma para justificar a sua edição: considerando a suspensão vigente das normas retroativas, seria necessário regulamentar a matéria.
Nestes termos, a nova tentativa de regulamentação não infringe as limitações impostas pelo STF na ADPF 449 e no Recurso Extraordinário 1.054.110 - SP, que firmaram os princípios da vedação à proibição ou limitação das atividades, além da necessidade de observância da lei Federal 13.640/18 e da Constituição Federal nas regulamentações municipais. Buscando reforçar sua legalidade, o decreto elenca como seu fundamento regular o art. 11-A e 11-B da referida lei Federal, organizando o exercício da atividade no município.
Numa análise do conteúdo normativo, é possível observar que a regulamentação proposta pelo novo decreto é mais reduzida que as das normas anteriores (16 artigos contra 21 e 27). E isso se reflete nos temas tratados: são apenas quatro capítulos, tratando dos motoristas, das plataformas, do Comitê para Estudos e Regulamentação (CERVA) e das disposições gerais. Por exemplo, nas exigências para os veículos e condutores, ficou de fora a exigência do curso de formação para os motoristas, antes encartada no art. 10, III, do Decreto 44.399/18. Um ato de simplificação que visa diminuir os riscos de questionamento acerca da legalidade de seu conteúdo.
Entretanto, há uma matéria presente em ambos os decretos que continua pautada: a cobrança de preços públicos sobre as empresas de aplicativos. No novo decreto, há previsão de pagamento por parte das empresas de 1,5% do valor cobrado dos passageiros nas viagens realizadas, "como contrapartida pelo direito de uso intensivo do sistema viário urbano".
O anúncio das medidas por decreto atropelou o legislativo municipal e trouxe preocupação ao mercado. Sem espaço para o debate da matéria, os vereadores se tornaram espectadores surpresos pelas mudanças promovidas pela prefeitura. Já as empresas do setor argumentam que um cadastro municipal teria efeitos deletérios sobre motoristas residentes na região metropolitana do Rio de Janeiro. Também argumentam que há formas alternativas e também mais eficientes para o poder público ter acesso às informações pessoais de seus parceiros. Por fim, consideram ilegal a cobrança de preço público sobre as atividades do setor.
E eles estão certos. O Município do Rio, ao instituir a cobrança do referido preço público, não observa a jurisprudência que vem se sedimentando sobre o tema, inclusive com posicionamento de Cortes Superiores. O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RESP 1.789.233 - DF, ao negar admissão ao Recurso Especial, manteve a decisão do TJDFT que proibia a cobrança do preço público dos aplicativos pelo Distrito Federal, instituídas pela lei Distrital 5.691/16 e pela Portaria SEMOB-DF 56/2017.
O caso do Distrito Federal também foi alvo de Recurso Extraordinário no Supremo Tribunal Federal (RE 1.271.620-DF), não surtindo o efeito desejado. A Primeira Turma da Corte, em meados de 2020, negou provimento ao agravo interno no recurso constitucional, mantendo assim a decisão de proibição da cobrança do preço público.
Em que pese a ausência de debate material dos aspectos jurídicos atinentes ao caso no STJ e STF, uma vez que as decisões foram mantidas por aspectos processuais, estes não caminham só nesse sentido. Na apreciação do Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade 0051842-92.2018.8.26.0000, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo suspendeu o trecho da lei (art. 7º da lei Municipal 15.539/17) do Município de Campinas - SP que exigia o pagamento do preço público de 1% sobre o valor total das viagens pelos aplicativos. Há de se recordar ainda os casos do próprio Rio de Janeiro e Distrito Federal, que levaram a matéria às Cortes Superiores.
A ilegalidade de tal cobrança se fundamenta em diversos aspectos jurídicos que poderiam ser frutos de um artigo próprio. Dentre os principais, estão a impossibilidade de cobrança de preço público sobre bens de uso comum do povo, impossíveis de individualização; aspectos materiais do direito tributário; e até mesmo a violação do princípio da livre concorrência, uma vez que o decreto cria barreiras de entrada na atividade, medida que ataca diretamente os preceitos fundamentados pelo STF no Tema 967 da sistemática da repercussão geral.
Uma vez questionado na justiça, o município carioca terá a árdua tarefa de buscar alguma diferença entre a nova regulamentação e as citadas acima. Independente da fundamentação que a prefeitura venha a utilizar, o fato é que o decreto já nasce frágil, sem embasamento legal firme e com reprovação popular. Ao fim, sabemos que a iniciativa municipal tem intuito meramente arrecadatório, impactando de forma direta no encarecimento de um serviço essencial à coletividade, em plena crise econômica e social causada pela pandemia. Numa aposta, a tendência é que, a partir de medida judicial iniciada por alguma das empresas de aplicativos, o decreto será suspenso e posteriormente declarado ilegal.