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Aproveitando a oportunidade da recém-aprovação da nova lei de licitações e contratos da administração pública

Os serviços sociais autônomos (sistema "S") e sua prerrogativa jurídica para adotar e seguir normas licitatórias e contratuais próprias.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Atualizado às 15:02

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A licitação pública, conforme inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, é o instituto jurídico de que se vale a administração pública para realizar a contratação de compras, obras e serviços. Como se verá mais a frente, as entidades do Sistema "S" possuem prerrogativa autônoma para editar seus específicos regulamentos acerca da mesma temática.

Tal instituto, portanto, é viabilizado por meio de procedimento formal, que se desenvolve pela prática de atos vinculantes, sucessivos e cronológicos, e que também deve assegurar aos concorrentes igualdade de oportunidades, estabelecendo para isso as condições e as cláusulas necessárias à seleção do melhor fornecedor, bem como ao cumprimento a contento do objeto demandado.

A União Federal, na forma do artigo 22, inciso XXVII, da Constituição Federal de 1988, detém competência legislativa privativa para editar

[...] normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, §1º, III; [...]

Veja-se que referidas normas licitatórias e contratuais são dirigidas estritamente às entidades e órgãos da administração pública (direta e indireta), inclusas aí as fundações públicas, autarquias, sociedade de economia mista e empresas públicas, o que não se sucede com as entidades componentes do chamado Sistema "S", que integram exclusivamente o grupo "serviços sociais autônomos", o qual não é alcançado pela organização formal das entidades e órgãos públicos elencados no artigo 37, inciso XIX, da Constituição Federal de 1988, bem como por aquela estampada no artigo 4º, incisos I e II, do emblemático decreto-lei 200/67.

Essas normas gerais, direcionadas tão somente [repise-se] aos órgãos e entidades da administração pública, se encontram materializadas, hoje, nas leis 8.666/93, 10.520/02, 12.462/11 (artigos 1º ao 47-A), 13.303/16 e 14.133/21. Vale destacar que as leis 8.666/93, 10.520/02 e 12.462/11 (artigos 1º ao 47-A) permanecerão em vigor por dois anos, na forma do artigo 193, inciso II, da recém-sancionada lei 14.133/21, a nova lei de Licitações e Contratos da administração pública.

Todas as leis citadas acima são fundadas nos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade, eficiência, isonomia, igualdade, probidade administrativa, vinculação ao edital, julgamento objetivo e demais princípios correlatos, contudo, não são, repito, direcionadas e aplicáveis às entidades do Sistema "S", que detêm microssistema jurídico particularizado, por meio de delegação recebida da própria União Federal via leis específicas de criação de cada uma dessas entidades.

As entidades do Sistema "S" são instituições, via de regra, ligadas ao sistema sindical superior, e que são incumbidas da missão de realizar a formação e qualificação profissional de trabalhadores dos respectivos setores econômicos alcançados, bem como a promoção social dos referidos trabalhadores e de seus familiares.

Outras entidades, mais modernas, tais como: Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e Agência de Promoção de Exportações do Brasil (Apex-Brasil), também pertencem ao Sistema "S", são voltadas à promoção das políticas públicas de desenvolvimento industrial, de exportações e de atração de investimentos estrangeiros, mas foram criadas pelo Poder Executivo Federal, na forma de suas respectivas leis primárias, e, assim como as entidades clássicas do Sistema "S", não integram a estrutura formal da administração pública.

Para tanto, se valem do recebimento e utilização de recursos de natureza parafiscal, instituídos por lei, estando sujeitos ao controle externo/finalístico/de resultados, que é realizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), no caso das entidades de âmbito nacional, porém, não se sujeitam aos regramentos licitatórios e contratuais específicos dirigidos à administração pública, consoante aqui se defende. Seguem, destarte, regramento jurídico híbrido, sui generis, particular.

Vale mais uma vez repisar: não integram a administração pública direta e indireta, conforme artigo 37, inciso XIX, da Constituição Federal de 1988, c/c artigo 4º do Decreto-lei 200/67. São entidades de cooperação com o Poder Público, de interesse coletivo e social, com personalidade jurídica de direito privado e menos burocráticas em relação à administração pública. São criações "genuinamente brasileiras", conforme vetusta lição do saudoso professor Hely Lopes Meirelles.

Não obstante, em cada norma específica de criação há um pacote pontual de regras de direito público, que deve ser observado por cada entidade, na medida em que operam recursos parafiscais, daí o dever de bem executá-los e prestar contas à sociedade. Entretanto, predominantemente seguem as diretrizes do direito privado, o que se traduz, normalmente, em segurança jurídica, em um Compliance especializado e tão efetivo quanto ao aplicável no campo do Poder Público. Há sempre segurança em seus atos de governança corporativa, pois seguir o direito, seja qual for o ramo, é sempre seguro.

Uma dessas normas públicas envolve a regra da licitação e dos consequentes contratos. Noutras palavras, essas entidades, em suas contratações de bens e serviços, devem se servir dessa dinâmica procedimental, admitida também a contratação direta por meio dos institutos da dispensa e inexigibilidade, mas sempre observando seus regramentos próprios.

Com base nessa compreensão, tais entidades devem observar seus microssistemas legais de licitações e contratos. Vejamos que a Constituição Federal e as leis licitatórias e contratuais da administração pública não impõem que as entidades do Sistema "S" sigam a mesma sorte da administração pública; cada uma, não custa repetir, há de seguir seu próprio sistema interno-legal. E impor o contrário, ainda que por razões filosóficas, parece não observar com rigor a ciência jurídica decorrente da estrita e fidedigna análise do conjunto normativo de regência.

E isso é plenamente compatível com a segurança jurídica e com a necessidade de que as atividades realizadas por tais entidades sejam predominantemente menos burocráticas em comparação às atividades do Poder Público. Essa, aliás, é a razão de ser dessas entidades, ou seja: serem menos "amarradas" do que a burocracia estatal, de forma que possam executar suas missões institucionais com maior velocidade e eficiência, e levar à concretude o desenvolvimento nacional, regional, bem como os valores da livre iniciativa e do trabalho humano.

Para que dúvidas não pairem sobre a inaplicabilidade das leis gerais de licitação e contratos da administração pública às entidades do Sistema "S", pinço alguns dispositivos legais especiais, todos dirigidos singularmente a algum serviço social autônomo, a saber:

1) Para a Apex-Brasil (lei 10.668/03 e Decreto 4.584/03):

Lei:

Art. 21. A Apex-Brasil fará publicar no Diário Oficial da União, no prazo de sessenta dias a partir da sua criação, o manual de licitações que disciplinará os procedimentos que deverá adotar.

Decreto:

Art. 4º.  O Conselho Deliberativo, órgão superior de direção da APEX-Brasil, é responsável pela definição das seguintes matérias, além daquelas constantes do estatuto social:  

(...)

VIII - analisar e deliberar sobre a aprovação do manual de licitações apresentado pela Diretoria-Executiva, e suas posteriores alterações, observado o disposto no art. 21 da Medida Provisória 106, de 2003

2) Para a ABDI (lei 11.080/04 e Decreto 5.352/05):

Lei:

Art. 20. A ABDI fará publicar no Diário Oficial da União, no prazo de 60 (sessenta) dias a partir da sua criação, o manual de licitações e contratos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações.

Decreto:

Art. 4º. O Conselho Deliberativo, órgão superior de direção da ABDI, é responsável pelas seguintes matérias, além daquelas estabelecidas no estatuto social:

(...)

VIII - deliberar sobre a proposta de manual de licitações e de contratos elaborado pela Diretoria-Executiva, e suas posteriores alterações;

Nota-se, portanto, que as legalidades especiais dirigidas às entidades referidas (Apex-Brasil e ABDI) não apenas indicam que cada uma terá um manual/regulamento próprio de licitações e contratos, como também indicam que seus órgãos internos (Diretoria e Conselho) são os que detêm competências privativas para propor e aprovar tais normativas internas, ou seja, resta afastada qualquer competência privativa da União, por meio do Congresso Nacional e da Presidência da República, para atuar no processo legislativo de feitura de normas licitatórias e contratuais dirigidas a essas especiais entidades. Pelo contrário, a União delegou a essas entidades a prerrogativa para a feitura de suas próprias normas licitatórias e contratuais.

E esse quadro jurídico, vale dizer, permeia-se por todas as demais entidades componentes do Sistema "S", pois cada uma possui uma legislação própria, que acaba por determinar a existência de normativas licitatória e contratual especializadas, sem prejuízo, no campo operacional e das boas práticas, de que essas entidades observem bons referenciais de gestão da administração pública, especialmente nos casos em que possa constatar-se contradição aos princípios gerais de licitação e contratos administrativos, conforme se pode ver na histórica e referencial Decisão 907/97 do TCU.

É preciso, portanto, analisar cada cenário de acordo com o pacote normativo de regência. Não se pode dizer que entidades do Sistema "S" e órgãos/entidades da administração pública subsumam-se ao mesmo grupo de regras jurídicas; cada qual possui natureza jurídica particular, logo o princípio da isonomia demanda tratamento condigno e condizente às particularidades de cada grupo de entidades/órgãos, para tanto observada a máxima "tratar os iguais como iguais, na medida de suas igualdades, e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades".

Por todo o exposto, conclui-se que as entidades do Sistema "S", a exemplo da Apex-Brasil, ABDI, SEBRAE2, SESCOOP3, SEST4, SENAT5, SESI6, SESC7 e SENAI8, possuem a prerrogativa de instituírem e operarem seus regulamentos próprios de licitações e contratos, sem que tenham de se sujeitar, como destinatários formais, aos rigores das leis gerais de licitações e contratos da administração pública.

___________

1. Assim se pode verificar, por exemplo, nas doutrinas de José dos Santos Carvalho Filho, Hely Lopes Meirelles e Diógenes Gasparini. Também não se pode olvidar o quanto contido na ementa do acórdão exarado no julgamento do Recurso Extraordinário 789.874, Supremo Tribunal Federal (STF).

2. Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (lei 8.029/90).

3. Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Medida Provisória 2.168-40/01).

4. Serviço Social do Transporte (lei 8.706/93).

5. Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (lei 8.706/93).

6. Serviço Social da Indústria (decreto-lei 9.403/46).

7. Serviço Social do Comércio (decreto-lei 9.853/46).

8. Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (decreto-lei 4.048/42).

Alessandro Ajouz

Alessandro Ajouz

Advogado privado. Atuou como advogado da Apex-Brasil e SESCOOP-Nacional.

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