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Reflexões sobre o regime de transição da nova lei de Licitações

O presente artigo busca analisar algumas novidades da nova lei de Licitações (lei 14.133/21), especialmente o seu período de transição, em que haverá a convivência, durante o prazo de dois anos, de diversos diplomas legais.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Atualizado às 12:37

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Depois de mais de vinte e sete anos de existência, é certo que a lei 8.666/93 não irá deixar saudades. Para se ter ideia, o texto da lei 8.666/93 já foi objeto de cento e quinze novas redações, duas revogações autônomas e cento e onze novas inclusões, sem prejuízo dos constantes litígios (MOREIRA, GARCIA, 2018).

Conquanto após o advento da lei 8.666/93 tenham surgido diversas legislações dispondo sobre a contratação pública, como a lei Geral das Concessões (lei 8.975/95), a lei do Pregão (lei 10.520/02), a lei das Parcerias Público-Privadas (lei 11.079/04), a lei do Regime Diferenciado de Contratações (lei 12.462/11) e a lei das Estatais (lei 13.303/16), a lei 14.133/21 pretende uniformizar a legislação, consolidando, em um só diploma, as leis 8.666/93, 10.520/02 e 12.462/11.

Além da agregação de normas e consolidação de experiências já consagradas tanto na legislação anterior quanto na jurisprudência dos Tribunais de Contas, o novo Marco Regulatório também trouxe diversas novidades, que serão abordadas em artigos futuros. Aqui, nos limitaremos a mencionar alguns pontos interessantes:

i) matriz de riscos (art. 6º, XXVII et al): cláusula contratual que define riscos e responsabilidades entre as partes e caracteriza o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Assim, há a predefinição dos eventos que podem ser previstos, quantificados e alocados sob a responsabilidade dos contratantes, permitindo-se maior previsibilidade na execução contratual e na resolução de eventuais controvérsias jurídicas;

ii) contratação integrada e semi-integrada (arts. 6º, XXXII e XXXIII et al): embora aquela estivesse prevista no RDC, a nova lei prevê a possibilidade de adoção tanto da contratação integrada (além da responsabilidade pela execução da obra, serviços, fornecimento de bens e todas as demais etapas necessárias para a entrega final do objeto, os projetos básicos e executivo também ficariam à cargo da contratada) e semi-integrada (caso em que apenas o projeto executivo ficará à cargo da contratada, sem prejuízo da responsabilidade pela execução da obra, serviços, fornecimento de bens e todas as demais etapas necessárias para a entrega final do objeto). Como ponto de destaque, pode-se perceber que, como o projeto foi elaborado pelo próprio licitante, eventuais alterações nos projetos serão mais raras, na medida em que assumiu os riscos dele decorrentes (GARCIA, 2018);

iii) diálogo competitivo (art. 6º, XLII et al): inspirado no Direito Europeu, trata-se de uma modalidade de licitação para a contratação de obras, serviços e compras de grande vulto pela Administração, casos em que se realiza um diálogo com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos e com o intuito de desenvolver alternativas capazes de atender às necessidades da entidade contratante. Como ensinam Flávio Garcia e Egon Bocjmann Moreira (2018, p. 26), "a lógica procedimental é, basicamente, a seguinte: (i) uma primeira etapa, aberta, de qualificação dos potenciais licitantes que pretendam apresentar soluções; (ii) uma segunda fase dinâmica e dialógica, na qual abre-se espaço para que os licitantes ofereçam soluções para o desenvolvimento do objeto; (iii) uma terceira fase, após encontrada a solução mais satisfatória, de julgamento das propostas. Assim, as etapas de qualificação (primeira fase) e da seleção das propostas (terceira fase) são rígidas como ocorre em qualquer procedimento licitatório. O diálogo com os operadores econômicos e, por conseguinte, a flexibilidade para a definição do objeto se configura apenas na segunda fase";

iv) definição de parâmetros objetivos para suspensão da execução dos contratos (art. 147): de maneira similar ao que já previa o art. 20 da lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (após alterações da lei 13.655/18), o gestor público que decidir por suspender uma obra pública deverá avaliar as consequências da decisão e a relação do custo/benefício da respectiva suspensão, conforme parâmetros estabelecidos no art. 147;

v) inversão das fases de habilitação e julgamento das propostas (art. 17): procedimento consagrado desde a lei do Pregão, a medida torna o processo licitatório mais ágil e eficiente, na medida em que a Administração Pública analisará a documentação de habilitação apenas do licitante provisoriamente classificado em primeiro lugar no certame;

vi) fornecimento e prestação de serviço associado (art. 6º, XXXIV et al): trata-se de um regime de execução em que o contratado, além de fornecer o objeto, se responsabilizará pela sua operação, manutenção ou ambas as soluções, medida que estimulará a eficiência na execução contratual, já que o próprio fornecedor será o responsável pela operacionalização do objeto;

vii) plano anual de contratações (art. 12, VII): cada ente federativo deverá elaborar seu plano anual de contratações, algo que está de acordo com o princípio do planejamento;

viii) agente de contratação (art. 8º): cria-se a figura do servidor efetivo que será responsável por tomar decisões, acompanhar o trâmite, dar impulso ao procedimento, dentre outros, medida salutar, já que dá concreção à regra do concurso público (art. 37, II, CRFB/88) e estimula a independência funcional;

ix) princípio do formalismo moderado (art. 12, III et al): princípio amplamente reconhecido na jurisprudência do TCU, de sorte que o desatendimento de exigências meramente formais e que não comprometam a aferição da qualificação ou do conteúdo das propostas não importará no afastamento do licitante (inabilitação/desclassificação) nem na invalidação do procedimento licitatório;

x) orçamento sigiloso (art. 24): também já previsto no RDC, estimula a apresentação de preços pelos licitantes dentro dos padrões de mercado, porquanto não induz a apresentação de preços dentro dos limites do orçamento cotado pela Administração Pública;

xi) extinção das modalidades do convite e da tomada de preços, limitando-se os procedimentos licitatórios ao pregão, à concorrência, ao concurso, ao leilão e ao diálogo competitivo (art. 28);

xii) ampliação do prazo dos contratos de serviços e fornecimento contínuo (art. 106): além da possibilidade de a Administração celebrar contratos com prazo de até cinco anos nas hipóteses de serviços e fornecimento contínuo (art. 106), estes poderão ser prorrogados sucessivamente pelo prazo de até dez anos, desde que previsto no edital e as condições permaneçam vantajosas para a Administração (art. 107);

xiii) possibilidade de contrato com vigência indeterminada (art. 109): nos casos em que a Administração seja usuária em regime de monopólio (ex: serviços de água, luz, etc), pode-se estabelecer contratos com prazo indeterminado, desde que existem créditos orçamentários vinculados à contratação;

xiv) limitação da multa a trinta por cento do valor contratual (art. 156, § 3º): trata-se de inovação à jurisprudência do TCU, que tem limitado o percentual a dez por centro (Cf. Acórdão 2274/20).

Além das breves novidades acima tratadas, há ainda vários pontos que foram acrescidos, que serão abordados em artigos futuros. Todavia, diante da limitação de espaço deste artigo, traremos algumas reflexões sobre a aplicação imediata da nova legislação.

O art. 194 da lei 14.133/21 prevê que a nova lei entrará em vigor na data da sua publicação. Não haverá, pois, o denominado período de vacatio legis. Contudo, haverá uma espécie de "período de transição", caso em que a nova lei de Licitações conviverá por dois anos com as leis 8.666/93, 10.520/02 e 12.462/11, exceto quanto às disposições penais da lei 8.666/93, que foram revogadas de imediato. Nesse interim, a Administração Pública terá a prerrogativa tanto de aplicar o novo Marco Regulatório quanto de continuar aplicando a legislação pretérita, devendo ser indicada no edital de licitação a opção escolhida e vedada a aplicação combinada das citadas leis (art. 191).

Haverá, assim, três opções: i) aplicar o novo regime de forma imediata; ii) aplicar o regime anterior; iii) alternar os regimes, ora com a legislação nova, ora com a pretérita. A ideia da lei foi permitir com que haja uma espécie de preparação da Administração Pública para a adoção da nova legislação, solução parecida com a adotada no art. 91 da lei das Estatais (lei 13.303/16).

Nos Municípios de até vinte mil habitantes, há um prazo adicional, já que o art. 176 concede um prazo de até seis anos para que se cumpram os requisitos dos artigos 7º e 8º, que estão relacionados aos agentes responsáveis pela condução das licitações, à segregação das funções entre os agentes públicos, às regras sobre divulgação em sitio eletrônico das contratações e à obrigatoriedade de licitações eletrônicas, já que as licitações presenciais serão exceção e deverão ser devidamente fundamentadas. Como se percebe, o novo Marco Regulatório dá grande importância à estruturação e à especialização dos agentes responsáveis pelas contratações, já que se exige que o agente de contratação seja servidor efetivo e que os demais agentes sejam preferencialmente efetivos e tenham atribuições ou formação compatível com a atividade exercida.

E no tocante às contratações diretas? O Projeto de lei (PL 4253/20) previa que, até o decurso do prazo de dois anos, a Administração poderia optar por licitar de acordo com a nova lei ou com a revogada. O PL não abria a possibilidade de período de transição nas contratações diretas, o que significava dizer que as normas referentes à contratação direta teriam aplicação imediata à Administração Pública, sem a possibilidade de se adaptar às novas disposições.

Todavia, não foi essa a redação sancionada. O art. 191 da lei 14.133/21 dispõe que: "Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta lei com as citadas no referido inciso".

Como se percebe, o período de transição será aplicável tanto às contratações diretas quanto às licitações realizadas, devendo, contudo, ser expressamente mencionada a opção realizada no edital de licitação ou no instrumento de contratação direta para possibilitar ciência aos potenciais licitantes/contratantes quanto às regras do jogo.

Outros pontos também merecem destaque. A nova lei não incide em contratos assinados antes da sua entrada em vigor, já que se trata de ato jurídico perfeito. Essa é a redação do art. 190, que assim preceitua: "O contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada".

Assim, por exemplo, um contrato assinado em março de 2021 não será afetado pela nova lei. Isso significa que quando a Administração Pública fizer um aditivo ou prorrogar este contrato - celebrado antes do advento da nova legislação - terá de observar os limites e as condições previstas na lei 8.666/93. O raciocínio é aplicável aos contratos que forem celebrados nesse período de dois anos, caso a Administração opte por licitar de acordo com a antiga lei, nos termos do art. 191 da lei 14.133/21.

Por fim, a última questão que se infere é dos procedimentos que tiveram seu curso iniciado antes do advento da lei 14.133/21, mas cujos editais serão publicados após a sua entrada em vigor. Nesse caso, como fica a questão?

Situação muito similar ocorreu no período de transição da lei das Estatais (lei 13.303/16), caso em que o Tribunal de Contas da União, no Acórdão 2279/19, definiu que o marco temporal deve ser a publicação do edital, verbis: "As empresas públicas e sociedades de economia mista devem aplicar a lei 13.303/16 (lei das Estatais) às licitações com editais pendentes de publicação, mesmo que a fase interna do certame tenha sido iniciada em data anterior ao limite estabelecido no art. 91 da mencionada lei". O fundamento é claro: o legislador não impôs um tempo indeterminado para utilização da legislação anterior, na medida em que o prazo de dois anos foi suficiente para a adaptação de todos os procedimentos. E mais: é a data da publicação do edital que dá ciência a eventuais interessados.

Desse modo, somente os procedimentos licitatórios com editais publicados podem prosseguir ao final do prazo de dois anos regidos pela lei anterior.

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GARCIA, Flávio Amaral; MOREIRA, Egon Bockmann. O projeto da nova lei de licitações brasileiras e alguns de seus desafios. Revista de Contratações Públicas, 21, setembro, 2019.

GARCIA, Flávio Amaral. Licitações e Contratos Administrativos. 5. Ed. São Paulo: Malheiros, 2018.

Gustavo Silva Xavier

Gustavo Silva Xavier

Mestre em Direito, Professor Universitário, Procurador Municipal, autor de livros e artigos científicos, advogado e consultor jurídico.

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