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Da desconsideração inversa da personalidade jurídica no Direito de Família

O uso da teoria da desconsideração inversa para impedir fraude ao direito de cônjuges e alimentandos.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Atualizado às 15:17

Vamos tratar nas presentes linhas do instituto da desconsideração inversa da personalidade jurídica e de sua aplicação no direito das famílias.

É sabido que, principalmente em lides envolvendo partilha e alimentos, certos cônjuges têm o costume de ocultar patrimônio seja para impedir sua divisão, seja para minorar o valor alimentício porventura por ele devido.

Para tais situações, dentre outras possibilidades, doutrina e jurisprudência convergem para a utilização da denominada desconsideração inversa da personalidade jurídica, conforme passamos ora a digredir.

Pois bem. Não está conforme a ordem jurídica que consiga eventual devedor de alimentos ou cônjuge em partilha beneficiar-se da utilização

de pessoa jurídica como escudo ilegal de atos antijurídicos. Ou seja, quando maneja pessoa jurídica dentro da qual procura incluir bens e valores que não quer ver revelados.

Para reverter tal estratégia é que pode e deve ser aplicada a teoria jurídica citada (disregard of legal entity), para assim, suspender os efeitos da separação patrimonial.

É o que prevê, aliás, o CÓDIGO CIVIL:

Art.50- Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

São nesses momentos, que o julgador precisa continuar aplicando, como vem fazendo de acordo com larga doutrina e jurisprudência, a episódica desconsideração da personalidade jurídica ou física, com a intenção de evitar fraude e esvaziamento da execução de alimentos ou a partilha do ex-casal.

Assim, consiste a "disregard of legal entity" na modalidade inversa na possibilidade de se atingir o patrimônio individual de um membro da pessoa jurídica, para se garantir o cumprimento de determinada obrigação, quando se verifique a ocorrência de fraude ou abuso de direito.

No mesmo sentido, vejamos a doutrina de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

"Ora, a partir do momento em que resta evidenciado o abuso do direito associativo, a fraude imposta a terceiros através do uso do véu protetivo da pessoa jurídica, o desvio de finalidade almejada pela empresa ou mesmo a (tão comum) promiscuidade entre as esferas patrimoniais do sócio e da empresa, configura-se o uso indevido (irregular) do direito de associar, autorizando-se a desconsideração do princípio da separação, permitindo que o credor busque diretamente no patrimônio dos sócios a satisfação da obrigação que não pode ser atendida pelo patrimônio da empresa (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSSENVALD, Nelson, Direito Civil- Teoria Geral- 8ªed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2010, Pág. 379).

Anota Guilherme Calmon Nogueira Gama, o grande número de emendas sofridas pelo artigo 50 do Código Civil durante a tramitação do projeto até sua redação atual sob a influência da teoria objetiva de Fábio Konder Comparato, que considera, como razões de incidência da desconsideração, o desvio de finalidade societária e a confusão patrimonial. (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira de. Direito Civil, parte geral, 2006, p. 79).

De outra parte, impende salientar que o recurso à desconsideração inversa não reclama ação autônoma para fins de constrição do patrimônio. Veja-se:

APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS DE TERCEIROS. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. DÍVIDA DE RESPONSABILIDADE DA PESSOA FÍSICA. PENHORA DE BENS DA PESSOA JURÍDICA DE QUAL O ALIMENTANTE É SÓCIO. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DISPENSA DE AÇÃO AUTÔNOMA. MANEJO NOS PRÓPRIOS AUTOS DA AÇÃO DE EXECUÇÃO. CONFUSÃO PATRIMONIAL EVIDENTE. "Na desconsideração inversa da personalidade jurídica de empresa comercial, afasta-se o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, responsabilizando-se a sociedade por obrigação pessoal do sócio. Tal somente é admitido, entretanto, quando comprovado suficientemente ter havido desvio de bens, com o devedor transferindo seus bens à empresa da qual detém controle absoluto, continuando, todavia, deles a usufruir integralmente, conquanto não integrem eles o seu patrimônio particular, porquanto integrados ao patrimônio da pessoa jurídica controlada(...)" (ai n.2000.018889-1, de São José, rel. Des. Trindade dos Santos, DJ de 25.1.2), recurso provido. (TJSC- AC 2007.013867-8; Xanxerê; Câmara Especial Regional de Chapecó; Rel. Des. Guilherme Nunes Born; Julg.12/8/11; DJSC 16/12/11; pág.428.

Em reforço, pode-se inclusive trazer à tona a distinção entre débito e responsabilidade advinda do direito alemão e incorporada ao nosso direito desde há muito (shuld e haftung).

Com efeito, conforme ensinam Marinoni e Mitidiero (Código de Processo Civil Comentado, Editora RT, comentários ao art.592) ao comentarem os institutos do schuld e do haftung:

Os bens de terceiros, por vezes, sujeitam-se à execução por dívida alheia. Há aí a responsabilidade (haftung) sem débito (schuld). Quando a responsabilidade patrimonial recai sobre aquele a quem se imputa o débito, há responsabilidade primária; do contrário, quando se imputa a responsabilidade a quem não tem o débito, há responsabilidade secundária.

No mesmo diapasão, a lição de Bianca Oliveira de Farias e Milton Delgado Soares (Direito Processual Civil, V.01, Lumen Iuris, Coordenação de Milton Delgado Soares), ao definirem dívida e responsabilidade:

Dívida (schuld) é o dever jurídico de realizar a prestação objeto da obrigação, ou seja, está ligada ao direito material (relação entre credor e devedor), enquanto que a Responsabilidade (haftung) é a possibilidade de sujeição do patrimônio do devedor para satisfação do crédito, ou seja, está ligada ao direito processual (relação entre Estado e responsável).

Destaque que é possível a existência de dívida sem responsabilidade (Ex.: dívida de jogo) e de responsabilidade sem a existência de dívida contraída pela pessoa que terá seu patrimônio invadido pelo Estado-Juiz para a satisfação do crédito de outrem (ex.: fiador).

Não discrepa a ensinança de Arruda Alvim e Araken de Assis (Comentários ao CPC, Ed.RT):

Firmou-se o princípio do art.591 a partir da progressiva dissociação entre dívida(schuld), que é pessoal, e responsabilidade (haftung), que é patrimonial, desenvolvida há cerca de dois séculos na Alemanha.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça também é nesse sentido:

Processo Civil. Execução de Título Judicial. Responsabilidade Patrimonial. Art.592. Ofensa à coisa Julgada. Inexistência. Vínculo societário. Obrigação e responsabilidade (schuld e haftung). Disregard doctrine. Invocação exemplificativa. Recurso desacolhido: I- O princípio da responsabilidade patrimonial, no processo de execução, origina-se da distinção entre débito(shuld) e responsabilidade (haftung), admitindo a sujeição dos bens de terceiro à excussão judicial, nos limites da previsão legal. II- A responsabilidade pelo pagamento do débito pode recair sobre devedores não incluídos no título judicial exequendo e não participantes da relação processual de conhecimento, considerando os critérios previstos no art.592 CPC, sem que haja, com isso, ofensa à coisa julgada(...) STJ. REsp 225051/DF 4ªT. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j.7.11.2000, DJ 18.12.2000).

Em arremate, portanto, é preciso que os operadores do direito estejam atentos para manobras elusivas de devedores de alimentos e de cônjuges que queiram sonegar patrimônio por meio do uso de pessoas jurídicas para, cessando tal prática, utilizar-se da teoria inversa da desconsideração da personalidade jurídica.    

Clícia Tavares dos Santos

Clícia Tavares dos Santos

Advogada. Sócia fundadora do escritório Cecília Tavares Advocacia. Mestranda em Justiça e Segurança no Programa. Pós-graduada Stricto Sensu da Universidade Federal Fluminense. Pós-graduada em Direito das Famílias e das Sucessões pela PUC-Rio. Bacharel em Direito pela UERJ. Pós Graduada em Direito Processual Civil Constitucional pela UERJ. Especialista em Direito de Família e Sucessões - Associação dos Advogados de São Paulo - AASP e OAB Nacional. Sócia Apoiadora do Instituto Brasileiro de Direito de Família- IBDFAM. Palestrante, Professora e Coordenadora dos Cursos de Extensão em Planejamento Sucessório; Planejamento Fiscal- Sucessório e Offshores da UERJ.

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