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O processo simplificado para aplicação de punição disciplinar no exército e a ampla defesa

Em razão de mandamento constitucional, todo aquele que litigar, administrativa ou judicialmente, poderá fazer uso do contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, cabendo salientar que a referida previsão constitucional é um direito fundamental.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Atualizado às 13:19

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

INTRODUÇÃO

O presente artigo abordará o processo administrativo para a aplicação das punições disciplinares nas Forças Armadas, em especial a forma de como deve ser aplicado nas Organizações Militares e sua regulamentação.

O tema foi escolhido em razão da carência de conhecimento, por parte considerável daqueles que estão submetidos aos seus regramentos e da necessidade de informar sobre a existência de recursos, que poderão ser encaminhados às diversas autoridades militares.

Pretende-se, portanto, oferecer aos leitores o conhecimento mínimo, mas suficiente para o efetivo exercício dos direitos fundamentais do contraditório e da ampla defesa.

O PROCESSO SIMPLIFICADO PARA APLICAÇÃO DE PUNIÇÃO DISCIPLINAR NO EXÉRCITO E A AMPLA DEFESA.

Todo servidor público se submete a um conjunto de normas as quais tem por finalidade apurar e sancionar qualquer tipo de condutas praticadas por aqueles que atentarem contra o regular andamento do serviço público.

Sendo assim, para que se apure e sancione aqueles que cometeram alguma transgressão, há que se observar um processo descrito nas legislações e regulamentos que regem tal procedimento.

Em razão de mandamento constitucional, todo aquele que litigar, administrativa ou judicialmente, poderá fazer uso do contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, cabendo salientar que a referida previsão constitucional é um direito fundamental.

Vejamo-la:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

No âmbito das Forças Armadas não poderia ser diferente e o instrumento normativo que trata da apuração das infrações disciplinares é o Regulamento Disciplinar das respectivas forças, ou seja, temos o Regulamento Disciplinar do Exército, Marinha e Aeronáutica.

Numa análise superficial já e possível perceber que eles têm muitos pontos em comum assim nos ateremos especificamente ao Regulamento Disciplinar do Exército e faremos uma análise sobre a forma de como ele é aplicado na maioria das Organizações Militares do Exército.

De maneira geral, o procedimento adotado pelo Exército quando da apuração e aplicação das sanções disciplinares aos seus integrantes, principalmente nos casos de aplicação dessas punições aos cabos e soldados é a seguinte:

  •  A partir do momento que se tem conhecimento do cometimento uma transgressão por parte desses militares é elaborada uma parte do militar que tomou conhecimento da falta para o Comandante de Esquadrão em que o faltoso e vinculado.
  •  Assim, é ofertado a esse suposto transgressor, um Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar (FATD), momento após o qual ele terá três dias úteis para apresentar suas razões de defesa por escrito.
  • Geralmente após esse período, e já com as razões de defesa colocadas no formulário, o transgressor é chamado a justificar sua falta verbalmente ao Comandante de Esquadrão, o qual analisará se os argumentos apresentados se prestam a justificar a conduta, objeto da apuração.
  • Após analisar os argumentos, o Comandante de Esquadrão, caso seja competente para aplicar a punição que julgar pertinente, publica sua decisão em Boletim Interno, sendo a referida punição aplicada de imediato ao suposto transgressor.
  • No caso de entender que a punição a ser aplicada está fora de sua esfera de competência, o Comandante do Esquadrão encaminha as razões de defesa ao Comandante da Unidade Militar, para que a punição devida seja aplicada.

Numa análise tépida sobre esse procedimento, pode parecer que tudo está de acordo com a legalidade e respeitando princípios administrativos e constitucionais, mas não está.

Vejamos o que diz o Regulamento Disciplinar do Exército no Art. 35:

Art.35.O julgamento e a aplicação da punição disciplinar devem ser feitos com justiça, serenidade e imparcialidade, para que o punido fique consciente e convicto de que ela se inspira no cumprimento exclusivo do dever, na preservação da disciplina e que tem em vista o benefício educativo do punido e da coletividade.

§ 1º Nenhuma punição disciplinar será imposta sem que ao transgressor sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, inclusive o direito de ser ouvido pela autoridade competente para aplicá-la, e sem estarem os fatos devidamente apurados.

§ 2º Para fins de ampla defesa e contraditório, são direitosdo militar:

I - ter conhecimento e acompanhar todos os atos de apuração, julgamento, aplicação e cumprimento da punição disciplinar, de acordo com os procedimentos adequados para cada situação;

II - ser ouvido;

III - produzir provas;

IV - obter cópias de documentos necessários à defesa;

V - ter oportunidade, no momento adequado, de contrapor-se às acusações que lhe são imputadas;

VI - utilizar-se dos recursos cabíveis, segundo a legislação;

VII - adotar outras medidas necessárias ao esclarecimento dos fatos; e

VIII - ser informado de decisão que fundamente, de forma objetiva e direta, o eventual não-acolhimento de alegações formuladas ou de provas apresentadas.

Observemos ainda o que expõe o mesmo Regulamento nos Arts. 52 ao 57:

Art. 52.O militar que se julgue, ou julgue subordinado seu, prejudicado, ofendido ou injustiçado por superior hierárquico tem o direito de recorrer na esfera disciplinar.

Parágrafo único. São cabíveis:

I - pedido de reconsideração de ato; e

II - recurso disciplinar.

Art. 53. Cabe pedido de reconsideração de ato à autoridade que houver proferido a primeira decisão, não podendo ser renovado.

§ 1º Da decisão do Comandante do Exército só é admitido o pedido de reconsideração de ato a esta mesma autoridade.

§ 2º O militar punido tem o prazo de cinco dias úteis, contados a partir do dia imediato ao que tomar conhecimento, oficialmente, da publicação da decisão da autoridade em boletim interno, para requerer a reconsideração de ato.

§ 3º O requerimento com pedido de reconsideração de ato de que trata este artigo deverá ser decidido no prazo máximo de dez dias úteis, iniciado a partir do dia imediato ao do seu protocolo na OM de destino.

§ 4º O despacho exarado no requerimento de pedido de reconsideração de ato será publicado em boletim interno.

Art. 54. É facultado ao militar recorrer do indeferimento de pedido de reconsideração de ato e das decisões sobre os recursos disciplinares sucessivamente interpostos.

§ 1º O recurso disciplinar será dirigido, por intermédio de requerimento, à autoridade imediatamente superior à que tiver proferido a decisão e, sucessivamente, em escala ascendente, às demais autoridades, até o Comandante do Exército, observado o canal de comando da OM a que pertence o recorrente.

§ 2º O recurso disciplinar de que trata este artigo poderá ser apresentado no prazo de cinco dias úteis, a contar do dia imediato ao que tomar conhecimento oficialmente da decisão recorrida.

§ 3º O recurso disciplinar deverá:

I - ser feito individualmente;

II - tratar de caso específico;

III - cingir-se aos fatos que o motivaram; e

IV - fundamentar-se em argumentos, provas ou documentos comprobatórios e elucidativos.

§ 4º Nenhuma autoridade poderá deixar de encaminhar recurso disciplinar sob argumento de:

I - não atendimento a formalidades previstas em instruções baixadas pelo Comandante do Exército; e

II - inobservância dos incisos II, III e IV do § 3º.

§ 5º O recurso disciplinar será encaminhado por intermédio da autoridade a que estiver imediatamente subordinado o requerente, no prazo de três dias úteis a contar do dia seguinte ao do seu protocolo na OM, observando-se o canal de comando e o prazo acima mencionado até o destinatário final.

§ 6º A autoridade à qual for dirigido o recurso disciplinar deve solucioná-lo no prazo máximo de dez dias úteis a contar do dia seguinte ao do seu recebimento no protocolo, procedendo ou mandando proceder às averiguações necessárias para decidir a questão.

§ 7º A decisão do recurso disciplinar será publicada em boletim interno.

Art. 55. Se o recurso disciplinar for julgado inteiramente procedente, a punição disciplinar será anulada e tudo quanto a ela se referir será cancelado.

Parágrafo único. Se apenas em parte, a punição aplicada poderá ser atenuada, cancelada em caráter excepcional ou relevada.

Art. 56. O militar que requerer reconsideração de ato, se necessário para preservação da hierarquia e disciplina, poderá ser afastado da subordinação direta da autoridade contra quem formulou o recurso disciplinar, até que seja ele julgado.

§ 1º O militar de que trata o caput permanecerá na guarnição onde serve, salvo a existência de fato que nela contra-indique sua permanência.

§ 2º O afastamento será efetivado pela autoridade imediatamente superior à recorrida, mediante solicitação desta ou do militar recorrente.

Art. 57. O recurso disciplinar que contrarie o prescrito neste Capítulo será considerado prejudicado pela autoridade a quem foi destinado, cabendo a esta mandar arquivá-lo e publicar sua decisão, fundamentada, em boletim.

Parágrafo único. A tramitação de recursos disciplinares deve ter tratamento de urgência em todos os escalões.

Conforme é possível inferir dos dispositivos acima, há uma preocupação, por parte do legislador, em tornar efetivo o exercício da ampla defesa e do contraditório e uma preocupação em evitar o cometimento de injustiças por ocasião da apuração dos fatos, do julgamento do infrator e da aplicação da respectiva sanção, na medida em que não só aquele que se achar prejudicado, mas também seus superiores, poderão fazer uso do direito de recorrer.

O fato de os recursos interpostos poderem ser encaminhados até o Comandante do Exército pressupõe que, a depender da autoridade que aplicar a sanção inicial, haverá várias instâncias que esgotar-se-á somente com a apreciação do Comandante do Exército.

Importante atentar para o seguinte dispositivo:

Art. 53. Cabe pedido de reconsideração de ato à autoridade que houver proferido a primeira decisão, não podendo ser renovado.

§ 1º Da decisão do Comandante do Exército só é admitido o pedido de reconsideração de ato a esta mesma autoridade.

§ 2º O militar punido tem o prazo de cinco dias úteis, contados a partir do dia imediato ao que tomar conhecimento, oficialmente, da publicação da decisão da autoridade em boletim interno, para requerer a reconsideração de ato.

Ora, se o punido tem prazo de cinco dias, contados do momento em que tomar conhecimento da publicação da decisão, para recorrer, a única conclusão possível a que se chega é que a punição só poderá ser cumprida após esgotado o prazo recursal ou após o exaurimento do prazo para a interposição do recurso, sem que o interessado tenha manifestado interesse de recorrer.

Punir o infrator após a publicação em Boletim Interno é antecipação de punição. É violar direito constitucional da ampla defesa e do contraditório, na medida em que o direito a recurso é manifestação da ampla defesa. É macular o devido processo legal e a presunção de inocência.

Há quem diga que, em razão da função institucional das Forças Armadas, há que se privilegiar a imediaticidade na aplicação das sanções, sob pena de haver quebra da disciplina pela sensação de impunidade que a demora na aplicação da reprimenda poderia causar na tropa.

Outro argumento da administração é que a simples ciência do prazo para que o suposto infrator se defenda, já seria o suficiente para alijar a ilegalidade na aplicação da sanção, o que, evidentemente, é um argumento que não merece prosperar.

Não se pode entender como razoável que a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal, a recorribilidade das decisões, a culpabilidade, a presunção de inocência possam ser afastados em nome da premência na aplicação de uma sanção. 

No mais a mais nas Forças Armadas ainda existem sanções que são restritivas de liberdade, motivo pelo qual, o processo disciplinar que redundar na aplicação de uma sanção de tamanha gravidade, não pode prescindir do efetivo exercício dos direitos fundamentais do contraditório e da ampla defesa, como os meios e recursos a ela inerentes.  

Há quem diga também que, de acordo com o Art. 64, da lei 9784/99, que pode ser aplicada de forma subsidiária aos processos administrativos no âmbito da Administração Pública Federal, os recursos, em regra, não terão efeito suspensivo:

Art. 61. Salvo disposição legal em contrário, o recurso não tem efeito suspensivo.

Parágrafo único. Havendo justo receio de prejuízo de difícil ou incerta reparação decorrente da execução, a autoridade recorrida ou a imediatamente superior poderá, de ofício ou a pedido, dar efeito suspensivo ao recurso.

Todavia, como estabelece o parágrafo único do mesmo artigo, no caso de justo receio de prejuízo de difícil ou incerta reparação a autoridade recorrida poderá dar efeito suspensivo ao recurso apresentado.

Evidentemente que, muito embora o dispositivo traga o termo "poderá" fato é que essa autoridade "deverá" dar efeito suspensivo sob pena de praticar injustiça caso o recurso apresentado seja provido.

Ou seja, no caso de uma sanção de prisão ou detenção, sendo conhecido e provido o recurso no sentido de se reconhecer a inocência do recorrente, o que restará a ser feito após ele cumprir, por exemplo, 15 dias de prisão?

Assim, não se pode permitir que, com um regulamento que privilegia a correta e justa aplicação das sanções disciplinares, a Instituição que deve segui-lo fielmente, não acate os mandamentos ali estabelecidos, permitindo a disseminação de injustiça e ilegalidade por não observar o correto procedimento a ser adotado para apuração de faltas e aplicação das respectivas sanções disciplinares.

As Forças Armadas são instituições permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e disciplina, destinando-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem, cabendo lembrar que a disciplina é, de acordo com o Art. 8º, do Regulamento Disciplinar do Exército, a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes do organismo militar, sendo assim, não se pode conceber um verdadeiro "casa de ferreiro, espeto de pau", ou seja, a observância irrestrita da lei e dos regulamentos deve ser o objetivo constante e inafastável das instituições que se propõem a garantir a legalidade no território nacional. 

Cátia Mendonça dos Santos

VIP Cátia Mendonça dos Santos

Graduada pelo Centro Universitário de Cascavel/PR - UNIVEL. Advogada inscrita na Seccional do Distrito Federal. Especialista em Direito Militar. Membro da Comissão de Direito Militar Seccional DF.

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