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Um estudo histórico da globalização para a compreensão das implicações socioeconômicas da covid-19

O coronavírus entra aqui como um male indesejado, o que não é o suficiente para excluir sua contemporaneidade e sua íntima ligação com o caráter insustentável da sociedade globalizada em seus aspectos ambiental, social e econômico.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Atualizado às 15:16

Fazendo uma breve contextualização, sabe-se hoje que a origem da globalização remonta ao período das Grandes Navegações nos séculos XV e XVI. A mudança do eixo do comércio mundial do Mar Mediterrâneo para o Oceano Atlântico e a evolução do comércio a nível internacional, marcaram o início do comércio global. Com o fim da União Soviética e da Guerra Fria, o mundo deixa de ter suas diretrizes definidas por uma ordem bipolar, representada por dois grandes polos econômicos, militares e políticos - os Estados Unidos da América e a União Soviética -, e passa a adquirir um caráter multipolar, essencial ao surgimento do capitalismo financeiro.

É no século XX então que o homem vivencia a Terceira Revolução Industrial, a Revolução Técnico-Científico-Informacional, que promove a evolução das tecnologias de transporte e comunicação, reduzindo a relação de tempo-distância nas trocas comerciais e na expansão do alcance das informações.

Apesar de permitir o acesso a tecnologias mais avançadas, esse processo de expansão econômica, política e cultural a nível mundial torna as economias dos Estados Nacionais mais vulneráveis, potencia a desigualdade na distribuição dos rendimentos econômicos e chega inclusive a aumentar a velocidade de destruição do ambiente, a medida em que os países emergentes pretendem obter mais recursos, a fim de tornarem-se mais competitivos.

O coronavírus entra aqui como um male indesejado, o que não é o suficiente para excluir sua contemporaneidade e sua íntima ligação com o caráter insustentável da sociedade globalizada em seus aspectos ambiental, social e econômico. É necessário, portanto, compreender como contemporâneo aquilo que inclui não somente os feitos dos quais as pessoas no futuro gostarão de se recordar, mas também os acontecimentos negativos que não deixam de compor a atualidade.

Nesse sentido, a concepção de contemporaneidade do vírus, abordada por Boaventura Santos em seu texto "O coronavírus, nosso contemporâneo", consiste no fato dele monopolizar a atenção de todos os canais de comunicação, usar dos hábitos naturalizados e da proximidade social das pessoas para se espalhar, subsistir no ar poluído que infesta as cidades, não conhecer fronteiras nacionais e nem limites étnicos.  Assim como o faz o modo de vida global.

A covid-19 é tão pouco democrática quanto a estruturação política que permite a disparidade na concentração de riquezas, fazendo com que as principais vítimas da doença sejam as populações pobres, que gozam de condições insuficientes de higiene, que possuem baixo acesso à educação e à saúde de qualidade, que sofrem com condições desumanas de habitação, que estão submetidas à precarização do trabalho e à discriminações históricas etnoraciais, de gênero, de orientação sexual, e etc.

As implicações políticas e sociais da pandemia e das mudanças pelas quais os Estados Nacionais deverão passar dentro da economia mundial no período imediatamente após essa primeira onda pandêmica são perfeitamente válidas de serem pensadas, principalmente por conta do espectro pessimista, econômico e socialmente, que acompanham o isolamento social.

As interações humanas com animais fizeram emergir o coronavírus, assim como a Gripe Espanhola de 1918, originária do contato com suínos, e a Peste Bubônica no século XIV, fruto de uma infestação de ratos. O que antes era propagado no mundo através de relações comerciais em terra e do comércio marítimo, hoje se espalha ainda mais rapidamente por uma complexa cadeia de produção mundial interconectada, cuja codependência entre nações implica em uma evidente redução de fronteiras nacionais.

O fechamento dos pequenos negócios, o aumento dos desempregos estrutural e cíclico e a retração do Produto Interno Bruto dos países serão as consequências visíveis e mais comentadas pelo mundo. Porém, o acirramento das desigualdades sociais por conta do fortalecimento dos grandes empresários e dos monopólios economicamente capazes de sobreviverem ao isolamento social serão as consequências mais avassaladoras a médio e longo prazo.

A essência imediatista, irresponsável ambientalmente e que ignora vidas humanas ao ser voltada apenas para o lucro, da sociedade da primeira metade do século XXI é lesiva aos próprios seres humanos que, ao relevar esses problemas estruturais, caminham direta e voluntariamente para sua própria derrocada enquanto sociedade.

Por esse motivo, é essencial pensar em políticas públicas efetivas para a concretização de medidas capazes de reduzir a drasticidade dos efeitos nocivos do período de isolamento social. Não somente, uma maior seguridade social também precisa ser almejada por intermédio ativo dos cofres públicos. O auxílio emergencial do Brasil, por exemplo, não é um "presente", é um direito coletivo (muitas vezes negado, inclusive). O Brasil, que sequer saiu da primeira onda pandêmica, e o mundo como um todo terão de repensar as políticas neoliberais de redução do papel do Estado como agente social, de revisão dos direitos trabalhistas e das medidas contra o protecionismo econômico.

O coronavírus coloca justamente em jogo o quão frágil o papel dos Estados é diante da economia globalizada. Uma economia fragilizada que revela, por conseguinte, uma situação social e política problemática por vezes amenizada no passado. É baseado nisso e no aumento da esfera de debate social através das redes sociais no período de isolamento que, em meio a uma crise sanitária gravíssima, há a ascensão de protestos antiracistas e antifascistas pelo mundo todo.

É nesse contexto que a sociedade atual existe em um presente tão contraditório quanto seu passado. Passado este herdeiro de lutas anticolonialistas, de expansão dos Estados Democráticos de Direito e do fortalecimento das minorias; e simultaneamente, herdeiro também de uma devastação ambiental crescente, da ascensão do nazismo e do fascismo, e de guerras mundiais e civis. O período histórico social atual é tão conturbado quando os eventos que se desenrolaram ao longo do século XX, no entanto não vem sendo avaliado com o mesmo grau de seriedade.

A resignação quanto a uma volta à "normalidade" deve ser abandonada para podermos responder a pergunta que ficará em meio a maior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial e em meio a tantas manifestações de cunho transgressor: o quanto estaremos dispostos a repensar nossos aparatos políticos e econômicos a fim de lidar com as consequências sociais dos tempos após o coronavírus?

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BEZERRA, Juliana. clique aqui (Acessado em 9/4/21, às 09:29).

SANTOS, Boaventura de Sousa. "O coronavírus, nosso contemporâneo", disponível em clique aqui (Acessado em 11/4/21, às 23:36).

BIERNATH, André. clique aqui (Acessado em 8/4/21, às 23:27).

HOLANDA, Sérgio Buarque de. "Raízes do Brasil" (1936). Companhia das letras, 26a edição.

Ana Carolina Guimarães Paixão

Ana Carolina Guimarães Paixão

Graduando em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

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