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Os Estados-membros e as apostas esportivas

A não recepção do monopólio da União sobre as loterias como um incremento do federalismo fiscal.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Atualizado às 15:20

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

As apostas esportivas constituem nicho mercadológico que tem avançado de forma agressiva no cenário internacional e nacional, já reunindo milhões de fiéis adeptos, que tornaram o ato de apostar um hábito cotidiano. Pela densidade populacional, o Brasil carrega grande potencial de se tornar um dos maiores mercados de apostas do mundo, sendo comum se observar torcedores de futebol efetuando apostas pela internet.

A par da evolução desse mercado, a União editou a lei 13.756, de 12 de dezembro de 2018, com a finalidade, dentre outras, de autorizar e regular a modalidade lotérica denominada "apostas de quota fixa", que se referem a eventos reais de temática esportiva. O texto legal estabeleceu que essa atividade, serviço público exclusivo da União, será autorizada ou concedida pelo Ministério da Economia e será explorada, exclusivamente, em ambiente concorrencial, com possibilidade de ser comercializada em quaisquer canais de distribuição comercial, físicos e em meios virtuais.

A aludida lei estabeleceu que a sua regulamentação se dará no prazo de 02 (dois) anos, prorrogável por igual período, de modo que a intenção do Ministério da Economia é regulamentar o mercado de aposta esportiva online até julho de 2021¹. As consequências da regulamentação implicam em um combo de mutualismo benéfico aos três grupos de interessados, o fisco, os operadores e os apostadores.

Na perspectiva do Fisco, estima-se a potencial arrecadação entre R$ 4 bilhões e R$ 10 bilhões somente com a regulamentação das apostas, sem contar a tributação sobre a atividade. A distribuição das receitas de apostas se dará conforme o estipulado no art. 30 da lei, sendo diferenciado consoante a utilização se dê por meio físico ou virtual, abrangendo como beneficiários a Seguridade Social, o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), as Escolas, as Entidades Desportivas e os operadores da atividade.

Um dos principais objetivos da regulamentação das apostas esportivas é a absorção do mercado ilegal para o mercado legal, conhecido como "taxa de canalização". Essa taxa representa o percentual de apostadores que apostam em operadores legalizados (licenciados) no país em oposição aos que apostam em operadores ilegais (não-licenciados).

Intenta-se atrair os apostadores brasileiros, que atualmente utilizam operadores não-licenciados, para o mercado legal e regulamentado. Nesse mercado, somente as pessoas jurídicas constituídas sob a lei brasileira, e que tenham sede e administração no Brasil estariam autorizadas a explorar a atividade, a fim de garantir segurança jurídica aos operadores, a exemplo da necessidade de manter reserva financeira própria para assegurar o pagamento de prêmios aos apostadores, minorando os riscos de eventual insolvência da pessoa jurídica².

Para a concretização desse objetivo, os demais entes federativos podem e devem contribuir, devendo ser franqueado aos mesmos parcelas da competência material sobre a temática, em nome de um federalismo de cooperação e da comunhão de esforços no cumprimento dos valores constitucionais. Certamente, não se pode excluir os Estados-membros, hoje autorizados a explorar o serviço público de loteria, pois eles têm a capacidade de conferir capilaridade fiscalizatória necessária, além dos incrementos arrecadatórios advindos dessa atividade.

Recentemente, no julgamento das ADPFs 492 e 493, o STF reconheceu a invalidade da do Decreto-lei 204/67, art. 1º, caput e 32, caput e § 1º, pondo fim ao privilégio³ da União para explorar as atividades de loterias. Nessa oportunidade, reconheceu-se que a legislação infraconstitucional federal não poderia impor a qualquer ente federativo restrição à exploração do serviço público de loteria, porque a Constituição Federal não reconhecia essa modalidade de serviço público como de exclusiva exploração da União. Uma legislação nesse sentido criaria um desequilíbrio em seu próprio benefício, o que é vedado pelo art. 19, inciso III, da Constituição, além da ausência de autorização constitucional expressa.

Do contrário, o texto constitucional estabeleceu, em matéria de repartição de competência, que "são reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição" (art. 25, §1º). Esse dispositivo reserva aos Estados os poderes residuais a eles não vedados no texto constitucional, preservando, em sua teleologia, a essência da forma federativa de Estado, que se traduz na descentralização do gerenciamento das atividades essencialmente públicas.

Considerando que a Constituição não atribuiu à União exclusividade de exploração do serviço de loteria e que não proibiu expressa ou implicitamente o funcionamento de loterias estaduais, não há óbice para reconhecer a competência material dos Estados-membros sobre essa atividade. Nem mesmo a previsão de competência privativa da União para legislar sobre "sistemas de consórcios e sorteios", o que incluiria a loteria (art. 22, XX, CF), implicaria na exclusividade da competência material para explorar esse serviço, assim como ocorre no caso de serviço público de água e esgoto, cuja competência legislativa é privativa da União, mas os demais entes estão autorizados a explorá-lo.

Assim, a corte concluiu ser irrazoável e anti-insonômico excluir os Estados-membros da arrecadação proveniente da exploração do serviço público de loteria - o que inclui as apostas esportivas, nos termos do art. 29 da lei 13.756/18 -, impedindo o acesso a recursos cuja destinação é, pelo texto constitucional, direcionada à manutenção da seguridade social, nos termos do art. 195, III, da CF/88.

De fato, é injustificada a exclusão dos Estados-membros desse processo de regulamentação e concessão, afastando os bônus arrecadatórios que advirão da exploração do serviço de apostas esportivas, contribuindo tão somente para o agravamento da situação financeira desses entes federados, em total contramão ao que impõe o federalismo fiscal.

A concretização de um Estado federativo necessariamente implica a autonomia de cada um de seus membros autônomos do ponto de vista fiscal, sob pena do instituto reduzir-se à ficção. A Constituição de 1988 já adota uma série de mecanismo para tentar equilibrar a divisão de recursos entres os entes federados, a exemplo da repartição de receitas tributárias, medida que deve servir de inspiração também quando a matéria é de repartição de competências.

Com efeito, a fim de se alcançar a condição de autonomia federativa entoada no texto constitucional, é imprescindível reconhecer a capacidade arrecadatória dos Estados-membros, notadamente quando se trata de atividades que lhes são materialmente pertinentes. Sendo, então, o serviço público de loteria e, consequentemente, a sua modalidade de apostas esportivas, uma competência igualmente dos Estados-membros, é contrário à ideia de autonomia vedar que eles exerçam a sua capacidade arrecadatória.

Além disso, afastar os Estados-membros da regulamentação e exploração das apostas esportivas andaria na contramão da perspectiva do federalismo de cooperação, marcado pela colaboração recíproca e atuação paralela ou comum entre os poderes central e regionais. Ambos ganham com uma atuação regulatória e fiscalizatória concatenada e coordenada.

Por sua vez, na perspectiva dos operadores, a regulamentação significa a inserção no mercado de forma licenciada, com todas as proteções e seguranças jurídicas inerentes ao seu regime jurídico, além de conferir maior credibilidade ao seu produto, justamente por estar inserido em um mercado regulado e fiscalizado pelo poder público.

Ademais, na perspectiva dos apostadores, a regulamentação significa segurança jurídica e proteção contra possíveis e eventuais abusos, assim como contribui para o incentivo à promoção de uma política de prevenção à patologia de jogadores vulneráveis. Viu-se que a intenção da regulamentação é garantir uma reserva financeira própria para se garantir a capacidade de pagamento de prêmios, como prevenção a possível insolvência, o que é extremamente positivo para os apostadores.

Dessa forma, entende-se que a regulamentação da modalidade lotérica de apostas esportivas vai ao encontro dos interesses dos grupos envolvidos, notadamente se considerada a extensão da parcela de competência material sobre a temática aos Estados-membros, que, ao tempo que se beneficiariam com o incremento arrecadatório, auxiliariam o ente central a organizar e fiscalizar o serviço público em questão.

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1. Disponível aqui.

2. Minuta do Decreto regulamentador. Disponível aqui.

3. A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. Monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, empreendida por agentes econômicos privados. A exclusividade da prestação dos serviços públicos é expressão de uma situação de privilégio. Monopólio e privilégio são distintos entre si; não se os deve confundir no âmbito da linguagem jurídica, qual ocorre no vocabulário vulgar. Por ser o serviço de loteria um serviço público, o que foi reconhecido pelo STF no julgamentos das ADPFs 492 e 493, a terminologia adequada empregável é privilégio.

Saulo Gonçalves Santos

Saulo Gonçalves Santos

advogado tributarista, especialista e mestre em Direito Tributário.

Ricardo Facundo Ferreira Filho

Ricardo Facundo Ferreira Filho

Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pós-graduado em Direito Constitucional. Advogado da União.

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