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A apreensão de mercadorias para exigência de antidumping em importação já iniciada

Evidente que a retenção de mercadorias pela autoridade fiscal para compelir o importador a pagar os encargos de antidumping é uma cobrança coercitiva indireta, incompatível com o princípio constitucional do devido processo legal.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Atualizado às 17:48

Sob o pretexto de mecanismo de defesa comercial, os direitos antidumping são instituídos pelo Poder Executivo Federal após procedimento administrativo prévio de investigação, quando provocado ou de ofício. Em síntese, o objetivo é desestimular operações de importação de produtos que poderão afetar a indústria nacional. No dia a dia, é comum os casos em que a importação é iniciada anteriormente a publicação da resolução que institui o gravame, vez que a carga pode demorar meses para chegar no Brasil. No entanto, a incidência de antidumping quando já iniciada a importação é uma medida inconstitucional, por permitir a retroatividade da resolução para atingir fatos jurídicos anteriores a sua vigência, o que, consequentemente, torna ilegal a apreensão de mercadorias para exigência do encargo.  

No Brasil, essa exação não-tributária é regulamentada pela lei 9.019, de 30 de março de 1995. O artigo 7ª dispõe que o cumprimento das obrigações resultantes da aplicação de direitos antidumping é condição necessária para introdução no comércio do País. Ou seja: o adimplemento do gravame é requisito indispensável para importador realizar o desembaraço aduaneiro da mercadoria.

Por sua vez, o §2º do mesmo artigo determina que os direitos antidumping são devidos na data do registro da declaração de importação - isto é, quando o produto já estiver territorialmente introduzido no país, vez que a declaração de importação só poderá ser realizada quando o produto chegar no porto de destino. 

Portanto, em que pese a operação de importação ser iniciada anteriormente à publicação da resolução que institui o direito antidumping, a lei infraconstitucional estabelece que são irrelevantes, para fins de aplicação do gravame, o momento em que teve início a negociação com o fornecedor estrangeiro, a data do embarque da mercadoria no exterior, ou até a data da emissão da licença de importação. 

Nesse cenário, o importador que efetuar compras de mercadorias de fornecedor estrangeiro, estabelecendo um preço de compra, calculando a margem de lucro do produto na venda interna e mesmo quando a operação for registrada no Siscomex por meio da licença de importação, poderá ser surpreendido, no curso do transporte para o Brasil, com a exigência de direito antidumping. Dessa forma, uma resolução publicada a qualquer momento antes da chegada do produto ao seu destino é capaz de onerar os produtos excessiva e inesperadamente, chegando inclusive a inviabilizar toda operação de importação.

Pela evidente retroatividade da resolução que institui o direito antidumping, que ignora toda operação de importação realizada anteriormente, o Supremo Tribunal Federal atribuiu ao tema status de Repercussão Geral (Tema 352), em Recurso Extraordinário de Relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, quando do julgamento do RE 632.250/SC, o qual permanece pendente de julgamento desde 2010.

No voto que atribuiu ao caso relevância, o Ministro Joaquim Barbosa, preocupado com a mitigação do princípio constitucional da irretroatividade das leis, brilhantemente, aduz em sua manifestação o seguinte:

"A imposição de direitos antidumping revela-se importante instrumento de proteção do mercado nacional, cuja compatibilidade constitucional não pode ser reduzida à mera interpretação de legislação infraconstitucional. Em especial, o exame do marco temporal para aplicação da regra de irretroatividade, para os direitos antidumping, demanda tratamento uniforme".

Salutar lembrar que toda norma infraconstitucional precisa guardar relação de validade perante a Constituição Federal - e não o inverso. Caso contrário, ocorreria a fragilização de princípios constitucionais. Dessa forma, é no mínimo contestável a norma infraconstitucional que prescreve que os direitos antidumping são devidos na data do registro da declaração de importação - após as etapas de pedido da mercadoria, protocolo de licença, extrato de licenciamento e chegada da mercadoria no território nacional.

O artigo 570 do Regulamento Aduaneiro (Decreto 6.759/09) estabelece que a autoridade aduaneira pode condicionar a liberação da mercadoria ao adimplemento do direito antidumping.

Evidente que a retenção de mercadorias pela autoridade fiscal para compelir o importador a pagar os encargos de antidumping é uma cobrança coercitiva indireta, incompatível com o princípio constitucional do devido processo legal, vez que a administração fazendária tem os meios próprios de cobrança. No tema aqui tratado, tem-se o agravante que a constitucionalidade da cobrança está sendo discutida em sede de Repercussão Geral no STF.

Diante disso, em que pese a quitação do direito antidumping ser condição necessária a nacionalização das mercadorias (artigo 7º da lei 9.019/95) e tomando como relevante os objetivos econômicos e regulatórios da Resolução que o instituiu, a prerrogativa da retenção das mercadorias, quando não ocorrido o adimplemento do encargo, é uma medida flagrantemente inconstitucional, principalmente nos casos em que a operação de importação foi iniciada anteriormente a publicação da resolução que instituiu o direito antidumping.

Condicionar a liberação das mercadorias em matéria conhecida em Repercussão Geral pendente de julgamento, revela a gravidade do possível ato da autoridade aduaneira, pois submeteria os contribuintes a um regime autoritário antes visto apenas na ditadura de 1937, o conhecido "Estado Novo", de aspiração fascista, vez que se estaria diante do retorno da exigência de solve et repete, isto é: o contribuinte é obrigado a pagar determinada exação, mesmo que se demonstre indevido, para depois requerer a restituição do encargo, pois não há qualquer meio capaz de suspender as consequências do débito inadimplido.

No caso, paradoxalmente, seria renascer o Decreto-Lei nº 5, de 1937, que restringia a atividade econômica dos contribuintes em débito com a Fazenda Pública, sendo vedado transigir nos órgãos do estado. A dura prescrição normativa vigente à época determinava que os contribuintes em débitos com a Fazenda Nacional não poderiam despachar mercadorias nas alfandegas do país, não poderiam adquirir estampilhas dos impostos e nem conciliar nas repartições públicas.

O mestre Aliomar Baleeiro, em julgamento quando ministro da Suprema Corte (REsp 63026/SP)1, analisando a ilicitude de constranger as atividades dos contribuintes em razão dos débitos com a Fazenda Pública, brilhantemente explicou:

"Por outras palavras, a ditadura de 1937, nos albores de sua inauguração, instituiu no Brasil o regime da regra solve et repete, provavelmente por imitação do Direito italiano, que, àquele tempo, foi fonte de inspiração do novo 'Estado Autoritário': o contribuinte deverá pagar e depois acionar a União para anulação de débito e repetição do tributo indevidamente pago. "

Lamentavelmente, é exatamente assim que importador, nesses casos, será compelido a agir, pois ficará na incerteza de: (i) adimplir os encargos de antidumping e posteriormente provocar o poder judiciário para a restituição do débito indevidamente pago; ou (ii) não adimplir os encargos de antidumping e ter sua atividade econômica paralisada vez que não receberá as mercadorias do negócio jurídico.

Felizmente, mesmo diante da inexistência de procedimento administrativo capaz de suspender a exigência dos direitos antidumping, no Estado Democrático de Direito, o Judiciário, no seu poder constitutivo - e nesse caso tão somente ele - poderá suspender a exigência da exação até que seja julgado em definitivo a matéria sob a sistemática da Repercussão Geral.

Frise-se não se tratar, no tema, de encargo ou tributo que entende ser devido, mas sim de uma possível apreensão de mercadorias de uma exação que está com constitucionalidade pendente de julgamento perante o Supremo Tribunal Federal. E, nesse caso, somente essa corte tem a competência de decidir sobre constitucionalidade da cobrança do direito antidumping quando já iniciada a operação de importação.  

Cabe ao importador, nesses casos, recorrer ao Poder Judiciário, a fim que seja permitido realizar o desembaraço aduaneiro das mercadorias sem a exigência do direito antidumping até que seja julgado em definitivo o Tema 352 pelo STF, em privilégio a segurança jurídica e sem prejuízo aos cofres do executivo federal, vez que a exação pode ser inscrita em dívida ativa posteriormente, como determina o artigo 7º, §6º da lei 9.019/95.

Permitir que o importador suporte um encargo que está sob a constitucionalidade discutida perante a Suprema Corte, e caso assim não haja suas mercadorias ficarão apreendidas pela autoridade alfandegária, inviabilizando, consequentemente, sua atividade econômica, é consentir o retorno do regime do Estado Novo, com a aplicação da regra solve et repete, em uma grave lesão à segurança jurídica do sistema constitucional.

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1 STF - RE: 63026 SP, Relator: Min. AMARAL SANTOS, Data de Julgamento: 1/1/70, TRIBUNAL PLENO, Data de Publicação: DJ 28-11-69.

Sérgio Bezerra

Sérgio Bezerra

Advogado tributarista no escritório Telino & Barros Advogados Associados

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