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O problema dos indícios no tipo penal da lavagem de dinheiro

No dia a dia da colheita e produção de elementos informativos e de provas, nota-se a complexidade da comprovação e análise dos indícios do cometimento do crime de lavagem de dinheiro, que, por sua vez, deverá conter indícios da infração antecedente.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Atualizado em 29 de fevereiro de 2024 09:14

O crime de lavagem de dinheiro, previsto no art. 1º da lei 9.613/98 (Lei de Lavagem), traz consigo uma peculiar abertura em sua descrição típica que pode gerar insegurança jurídica e, pior, facilitar a adoção de medidas cautelares graves - como a prisão preventiva - precipitadas e não suficientemente fundamentadas: a cláusula referente aos indícios suficientes da existência da infração penal antecedente.

Pode-se considerar que os indícios da infração penal antecedente integram o delito de lavagem de dinheiro - ou seja, são elementos normativos indispensáveis do tipo penal de lavagem - e, assim, compõem a sua materialidade delitiva, entendida esta como a existência da lavagem, ou a ocorrência induvidosa de um fato que configura, em tese, uma conduta de lavagem de dinheiro.

A própria lei comprova que os indícios da infração antecedente fazem parte da lavagem em razão da exigência expressa de que tais indícios integrem a denúncia por lavagem de dinheiro (art. 2º, § 1º, da Lei de Lavagem), e pela descrição típica da lavagem exigir que o objeto material deste delito - bens, direitos e valores - sejam "provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal" (art. 1º, caput, da Lei de Lavagem).1

Observe-se que o crime antecedente, para efeitos de tipicidade do delito de lavagem, é o fato típico e antijurídico, não se indagando, na investigação ou no processo da lavagem, acerca da culpabilidade ou punibilidade do agente do crime antecedente.2 Assim, o autor do crime antecedente pode, ou não, ser o mesmo autor da lavagem (autolavagem), a depender da realização de atos autônomos, com dolo específico de ocultar ou dissimular visando à reciclagem do objeto da lavagem.

Ao se excluir a culpabilidade (reprovação do autor do fato, explicada pela teoria normativa da culpabilidade) e a punibilidade (que é consequência do delito) do crime antecedente, o tipo de lavagem afasta perquirições sobre a autoria precedente, que pouco interessa para a configuração típica da lavagem. Importa, como visto, a materialidade do crime antecedente.

Impende observar que tal abertura típica decorre da inescapável necessidade de o legislador utilizar elementos normativos na estruturação do texto da conduta que objetiva criminalizar. Tais elementos dependem de complementação interpretativa e, por isso, não delimitam taxativamente o alcance do crime sobre as condutas dos indivíduos. Dessa abertura típica são gerados efeitos tanto na fase de investigação quanto na fase do processo, notadamente na formulação e apresentação da acusação, na análise da justa causa para a ação penal, nos pedidos e decisões de medidas cautelares, na atividade probatória e nas decisões judiciais condenatórias.3

Destaca-se, aqui, que a materialidade da lavagem de dinheiro (certeza de que o fato existiu) é indispensável para a decretação de qualquer medida cautelar, compondo, assim, o fumus commissi delicti juntamente com os indícios de autoria. Do mesmo modo, a materialidade do crime é a base empírica para o recebimento da denúncia, cumulada aos indícios de autoria, só assim sendo minimamente justificável que alguém se torne réu.4 Para Frederico Marques, "Existe prova da existência do crime, quando demonstrada está a prática de fato típico na integralidade de seus elementos".5

Note-se que os referidos "indícios" não são elementos meramente objetivo-descritivos, de fácil e imediata percepção, mas sim elementos normativos que carregam carga jurídica e extrajurídica que tornam os deveres de fundamentação e de colheita de provas mais sofisticados e profundos.

A questão ganha mais complexidade - para as preocupações quanto à configuração da materialidade da lavagem para decretação de medidas cautelares graves e para a justa causa para a ação penal - na medida em que a relação entre a infração-origem e a lavagem, sua conexão, própria dos crimes derivados ou de referência, como é caso da lavagem,6 é também verificada mediante elementos de informação indiciários.

A linguagem posta na lei, ao mesmo tempo que dispara a possibilidade de coerção penal estatal, impõe limites a ela. É, assim, de rigor uma interpretação que resulte na menor elasticidade possível do tipo penal.

Eis o cerne do problema: não há determinação precisa do que seriam os "indícios suficientes" da infração antecedente integrante da tipicidade do delito de lavagem.

Em um primeiro olhar, não se pode deixar de mencionar que os indícios são designados como meios de prova pelo Código de Processo Penal, além de serem encontrados em previsões esparsas no mesmo Código.7

Há entendimento doutrinário de que os indícios da infração antecedente presentes no tipo de lavagem seriam aqueles referidos no art. 239 do CPP como provas indiretas, que permitem a inferência de fato a partir de fato comprovado por meio de raciocínio indutivo-dedutivo, somados à "seriedade" ou "força" de tais indícios.8

Por outro lado, há doutrina segundo a qual os indícios integrantes do tipo da lavagem não se referem ao meio de prova indireta do art. 239 do CPP. No caso da lavagem, a lei pretenderia indicar uma "prova mais tênue", "semiplena", ou "prova levior" que serve para avaliação da justa causa para a ação penal.9 Nessa linha de raciocínio, conotaria a "probabilidade" da infração antecedente, em uma prova de "eficácia persuasiva atenuada", ou "semiplena".10

A adjetivação dos indícios como "suficientes" agrava o cenário e deixa aberta ao julgador a consideração sobre a força dos indícios da infração antecedente e, assim, o tipo penal da lavagem pode dar ensejo a ações penais com ampla discricionariedade do órgão judicial para o recebimento da denúncia, bem como para decretação de cautelares.

Deste modo, o tipo penal de lavagem, por se referir à existência indiciária de outra infração penal, exige um esforço maior para o preenchimento e fundamentação do requisito da justa causa e do fumus commissi delicti.

A doutrina, na análise da legislação processual penal, não resolve a indeterminabilidade causada pela expressão plurívoca "indícios".11 Pode haver diferenças significativas, atentatórias à segurança jurídica e à igualdade, quanto ao molde atribuído aos indícios suficientes por distintos órgãos judiciais, ou também pelo mesmo órgão judicial a diferentes réus.

Ao analisar a amplitude semântica da dita prova indiciária, além das correntes doutrinárias acima expostas, constatam-se diversas espécies do que se pode entender por indícios. Há antigas e extensas discussões e classificações dos indícios nos diversos sistemas jurídicos e na doutrina nacional e estrangeira,12 que não serão aqui aprofundadas, como a que os separa quanto à força ou profundidade.

Segundo essa classificação, que, no mínimo, tem a utilidade de descortinar as diferentes percepções sobre a capacidade dos indícios de revelar os fatos, podem ser leves, graves ou gravíssimos (fracos ou veementes/robustos). Ademais, quanto à ligação ou distância do fato, os indícios podem ser próximos/imediatos ou remotos/mediatos. Quanto ao tempo, podem ser anteriores, concomitantes ou posteriores ao fato.13 Aqui, observe-se, não se pretende o retorno a um sistema de provas tarifárias, mas apenas apontar os problemas e as dificuldades - que resvalam sobre o investigado ou acusado - do livre convencimento motivado do juiz criminal diante de um tipo penal potencialmente aberto.

Tal é a fluidez e imprecisão dos indícios (e, consequentemente, a abertura interpretativa disponível ao órgão judicial) que há classificação que os visualiza como "indícios em potencial", quando levam em conta a capacidade do acusado para delinquir, sua eventual motivação e as circunstâncias relativas à oportunidade do autor para o cometimento do delito; e como "indícios no ato", ao se ponderar sobre atos preparatórios, vestígios ou rastros concomitantes ou posteriores ao fato criminoso.

Diante da imensidão de interpretações possíveis, há as posições extremadas de quem considera os indícios como uma prova "por excelência"; ou, de outro lado, como uma "falácia".14

Nesse contexto, a legalidade estrita e a presunção de inocência constitucionais exigem, para a condenação por lavagem de dinheiro, que o seu objeto provenha de infração penal cabalmente provada, que indubitavelmente tenha ocorrido, e não somente calcada nos indícios inicialmente apresentados no momento da deflagração da ação penal.15

Em sede de medida cautelar - que pressupõe como primeiro requisito o já mencionado fumus commissi delicti, no qual se encontra a materialidade e os indícios de autoria, e como segundo requisito o periculum libertatis16 - a materialidade da lavagem conterá os indícios da infração penal antecedente, ou seja, a moldura típica da lavagem agregou mais indícios a um juízo que já não exige certeza, desprovido de cognição exauriente.

Em outras palavras, a fumaça do cometimento do delito é duplamente indiciária: quanto à autoria e, o que é mais grave, quanto à materialidade (algo que deve ser inequívoco faticamente, mas ao mesmo tempo pode ser meramente indiciário).

Ao contrário do juízo de mérito em que há fase instrutória, no juízo cautelar não há oportunidade para a apresentação prévia de contraindícios pela defesa, ou de qualquer elemento de informação que afaste a alegada materialidade, dada a ausência do contraditório. Sabe-se que, uma vez implementada a medida cautelar, como uma prisão preventiva, o status dignitatis e libertatis da pessoa são indelevelmente atingidos.

Observe-se que, aqui, a preocupação não é com a discussão se a lavagem seria um crime permanente ou instantâneo com efeitos permanentes, mas com a prova e a fundamentação de sua materialidade, qualificada pelos indícios da infração da qual deriva ou está conectada.17

No dia a dia da colheita e produção de elementos informativos e de provas, nota-se a complexidade da comprovação e análise dos indícios do cometimento do crime de lavagem de dinheiro, que, por sua vez, deverá conter indícios da infração antecedente. Esse cenário faz com que sejam necessárias reavaliações, pela mesma ou por superior instância judicial, de medidas cautelares graves como a prisão, até porque devem ser provisórias, excepcionais e proporcionais.

Constata-se, ademais, que na aplicação da lei penal não pode haver espaço para uma elasticidade exacerbada de modo a se poder arbitrariamente colocar ou retirar fatos no âmbito do tipo penal, o que não só é indesejável sob o ponto de vista da segurança jurídica e da impessoalidade, como é vedado segundo o feixe constitucional de direitos e garantias individuais e da separação das funções legislativa e jurisdicional.

A necessidade de o legislador entregar um texto incriminador à sociedade, seja por influxos de compromissos internacionais para a criminalização, ou mesmo pelo populismo penal cada vez mais intervencionista, acarreta maior responsabilidade para os órgãos investigatórios, persecutórios e judiciais, que deverão ter prudência na avaliação e fundamentação, desde a instauração de um inquérito policial até a conclusão por uma condenação.

A legalidade estrita deve ser a máxima orientadora da aplicação dos tipos penais, devendo estar presentes cada um dos elementos típicos. E, como visto, o tipo penal de lavagem de dinheiro traz como elemento os indícios suficientes da infração antecedente, cuja comprovação fática acarreta complexidade não somente para a condenação, como para a decretação de cautelares e para o recebimento da denúncia.

Essa peculiar construção normativa deve ser cuidadosamente examinada no caso concreto, para que a aplicação do tipo penal de lavagem não o transforme em um tipo aberto permeável às deficiências probatórias e às vontades circunstanciais do aplicador.

_________

1 Blanco Cordero (2015, p. 372-3; 798-802), um dos maiores tratadistas da matéria, explica que é amplamente majoritária a corrente doutrinária, inclusive entre autores alemães, que sustenta que o fato prévio (infração penal) tem a natureza jurídica de elemento normativo do tipo de lavagem; minoritariamente, há opinião de que a infração prévia seria condição objetiva de punibilidade. Essa discussão, observe-se, repercute sobre o dolo do autor da lavagem, que deve abarcar o conhecimento da infração anterior (elemento intelectual do dolo).

2 PITOMBO, 2003, p. 119. BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 100.

3 Note-se a dificuldade apontada sobre questão da proveniência, ou procedência, de infração penal dos bens objeto de lavagem: "El recurso a nociones referidas a la procedência de los bienes no está exento de problemas. El empleo de términos excesivamente indeterminados puede conducir a situaciones difíciles de resolver en la práctica. Precisamente eso es lo que ocorre con el recurso a la procedencia, cuya amplia indeterminación origina serias dudas desde un punto de vista exegético. La ausencia de criterios rectores de interpretación de conceptos tan indeterminados implica que deba ser la jurisprudencia quien les dote de significado. Esta indeterminación ha llevado a algunos autores a cuestionar la constitucionalidad de la normativa penal relativa ao blanqueo de capitales em Suiza, por infracción del principio de seguridad jurídica, y en Alemania por infracción del mandato de determinación" (BLANCO CORDERO, 2015, p. 436-7).

4 A 5ª turma do Superior Tribunal de Justiça já sintetizou a ideia de justa causa para o crime antecedente e para a lavagem com a expressão "justa causa duplicada":

"A denúncia de crimes de branqueamento de capitais, para ser apta, deve conter, ao menos formalmente, justa causa duplicada, que exige elementos informativos suficientes para alcançar lastro probatório mínimo da materialidade e indícios de autoria da lavagem de dinheiro, bem como indícios de materialidade do crime antecedente, nos termos do art. 2º, § 1º, da Lei 9.613/98" (STJ, RHC 106.107/BA, 5ª Turma, rel. min. Ribeiro Dantas, DJe 1/7/19).

5 MARQUES, 1997, p. 60.

6 MENDES, 2016, p. 1.

7 CPP: Art. 126 ("indícios veementes" do sequestro de bens); Art. 134 ("indícios suficientes da autoria" para a hipoteca legal); Art. 239 (Capítulo X - Dos Indícios, Título VII - Da Prova); Art. 290, § 1º, "b" (execução da prisão em perseguição do réu); Art. 312 ("indício suficiente da autoria" para a prisão preventiva); Art. 413 ("indícios suficientes de autoria" para a pronúncia, além dos arts. 413, § 1º; 414 e 417).

8 BARROS, 2017, p. 151-2.

9 BADARÓ; BOTTINI, 2019, p. 334-5.

10 STF, HC nº 93.368/PR, 1ª turma, rel. min. Luiz Fux, DJe 25/8/11. No caso em tela, o ministro relator adotou expressões doutrinárias (v. ementa e p. 16 do voto).

11 PRADO, 2019, p. 458.

12 V. PIERANGELI. Da prova indiciária, 2006; e MOURA. As provas por indícios no Processo Penal, 2009.

13 PIERANGELI, 2006, p. 207-8.

14 PIERANGELI, 2006, p. 208.

15 PITOMBO, 2003, p. 132.

16 A lei brasileira exige, sempre, para toda e qualquer medida cautelar "fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada" (art. 312, § 2º, e art. 315, § 1º, do CPP, na redação da Lei nº 13.964/19).

17 Observe-se que a lavagem nas modalidades ocultar e dissimular não pode ser a priori e abstratamente considerada um delito permanente, pois este é "aquele cujo momento consumativo se protrai no tempo (cárcere privado, sequestro, redução a condição análoga à de escravo). Não é de confundir-se o crime permanente com o crime instantâneo de efeitos permanentes (homicídio, furto, bigamia), pois se, no primeiro, a permanência depende de continuidade da ação ou omissão, já o mesmo não acontece no último" (HUNGRIA, vol. I, tomo II, p. 44). Para Figueiredo Dias, o crime será "duradouro (também chamado, embora com menor correcção, permanente) quando a consumação se prolongue no tempo, por vontade do autor. Assim, se um estado antijurídico típico tiver uma certa duração e se protrair no tempo enquanto tal for vontade do agente, que tem a faculdade de pôr termo a esse estado de coisas, o crime será duradouro" (FIGUEIREDO DIAS, p. 314).

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BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. São Paulo: RT, 2019.

BARROS, Marco Antonio de. Lavagem de Capitais: crimes, investigação, procedimento penal e medidas preventivas. Curitiba: Juruá, 2017.

BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales. Pamplona: Thomson Reuters Aranzadi, 2015, 4ª ed.

FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Penal: parte geral. São Paulo: RT, 2007.

HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. IV. Campinas: Bookseller, 1997.

MENDES, Paulo de Sousa. O crime não compensa! Da criminalização da lavagem de dinheiro à perda alargada. Texto escrito para a conferência realizada em 13.09.16 no Segundo Curso sobre Direito Penal e Processual Penal Transnacional (CEDPAL e Departamento de Direito Penal Estrangeiro da Universidade de Göttingen).

MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. As provas por indícios no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

PIERANGELI, José Henrique. Da prova indiciária. In Escritos Jurídico-penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 200-27.

PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

Octavio Augusto da Silva Orzari

Octavio Augusto da Silva Orzari

Mestre e doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ex-delegado da Polícia Federal. Professor voluntário da Universidade de Brasília. Sócio do escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados Associados.

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