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Direito Penal do inimigo e a lei de segurança nacional

Como a teoria do Direito Penal do Inimigo explica os recentes abusos da Lei de Segurança Nacional no Brasil.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Atualizado em 20 de abril de 2021 12:33

Introdução

O Direito Penal e seus princípios são uma barreira ao poder punitivo (ius puniendi) estatal. Nesse sentido, é concebível observar a diferença entre um sistema democrático de direito e um sistema autoritário a partir da análise da aplicação do Direito Penal em determinada sociedade. No caso de um Estado Democrático de Direito, tal qual a República Federativa do Brasil, o direito penal e todas suas garantias - enquanto obstáculo ao poder punitivo estatal - devem, imprescindivelmente, ser observados sempre.

Porém, em virtude de variados acontecimentos recentes, o que se assiste em território nacional é justamente o contrário: a desconsideração, por parte do Judiciário e de autoridades policiais, de diversos direitos cidadãos. Dessa maneira, verifica-se o menosprezo do garantismo penal enquanto alicerce do Direito, em razão da intensificação da propagação de ideais sobre justiça que mais se assemelham a filosofia do Direito Penal do Inimigo.

A partir dessa consideração, o objetivo do presente trabalho é analisar recentes banalizações de garantias cidadãs pelo Judiciário e, por fim, compreender como esse quadro culmina em excessos na aplicação da Lei de Segurança Nacional.

Direito penal do inimigo em casos recentes do Brasil

A exemplo da negligência judicial a determinados direitos processuais, observa-se a Operação Lava Jato. Nesse caso, a maneira que a sociedade definiu todo e qualquer político culpado ou apenas acusado de corrupção como inimigos da nação culminou na banalização do instrumento da prisão preventiva no país. Isso porque a definição de inimigo desequilibra o Direito Penal, já que este depende do sujeito em questão, como sustentado pelo professor alemão Günther Jakobs. Em se tratando de um cidadão considerado "inimigo", as garantias processuais penais se esvaziam, pois ele não é considerado apto a exercer o papel comunicativo da pena1, restando somente a "neutralização do inimigo" como alternativa. Desse modo, a Operação Lava Jato foi amplamente bem recebida na sociedade brasileira, independentemente dos excessos de sua parte processual. Assim, constata-se a perpetuação desse pensamento no Direito Penal brasileiro.

Os reflexos dessa forma de pensar o Direito são notados em outros casos de grande notoriedade, como a prisão preventiva do Marcelo Crivella2 em 2020 e o caso do André do Rap3, que tomou local no STF. Ambos são de profunda importância, pois evidenciam a escalada em direção ao direito penal do inimigo, já que tratam justamente de sujeitos considerados como tais.

 Apesar dos casos tratarem de prisões justificadas em dispositivos diferentes, teses questionáveis foram aproveitadas para amparar a prisão. No caso do Marcelo Crivella, houve prisão preventiva com elemento probatório de necessidade e do risco do agente responder em liberdade insuficiente. Em paralelo, no caso do André do Rap, não houve a revisão da prisão preventiva dentro do prazo estabelecido pelo art. 316 CPP que prevê em seu parágrafo único a ilegalidade da prisão, quando não observado tal prazo. São apenas duas de inúmeras ocorrências que revelam a negligência do Judiciário em relação às garantias penais existentes para proteger todos nós. 

Inclusive, comprova-se a presença da filosofia do direito penal do inimigo no voto da SL 13 95 do Ministro Alexandre de Moraes no caso do André do Rap: "um dos maiores desafios institucionais do Brasil na atualidade é evoluir nas formas de combate à criminalidade organizada, na repressão a impunidade, na punição do crime violento e na punição da corrupção". Nessa declamação, há evidente identificação do inimigo, elucidando de que maneira o Direito Penal brasileiro possui o agente como ponto de partida. 

Em vista de todo esse cenário, o efeito do enfraquecimento das barreiras do poder punitivo estatal, culmina em excessos na aplicação da Lei de Segurança Nacional - o foco do presente trabalho.

Lei de Segurança Nacional

Redigida durante o regime militar, a Lei de Segurança Nacional (lei 7.170/83) define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social. Nesse sentido, tutela a integridade territorial, a soberania nacional, o regime democrático e representativo, a Federação, o Estado de Direito e os chefes dos Poderes da União.

Com o intuito de conceder um tratamento especial aos crimes nela tipificados, a LSN determina a competência de julgamento dos casos para a Justiça Militar, obedecendo às regras do CPP Militar. Ainda, define penas mais duras para fatos já tipificados pelo Código Penal, como homicídio - na hipótese de a vítima ser um chefe de poder da União.

Entretanto, a lei 7.170/83 não é uma grande inovação. Não é a primeira legislação que toca no conceito de segurança nacional. O momento em que a expressão emergiu foi na Era Vargas, na Constituição de 1934. E, desde então, todas as Constituições tocam no conceito de Segurança Nacional.

Especificamente durante a Ditadura Militar, em 1967, foi outorgado o Decreto-Lei 314, posteriormente alterado pelo Decreto-Lei 510, que definia crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social. Nesse momento, durante a Linha Dura da Ditadura Militar, a legislação era utilizada exclusivamente para perseguir opositores do regime, buscando dar um toque democrático às prisões políticas.

Desse modo, a maneira como tal legislação era usada, pode ser vista como a materialização do direito penal do inimigo. Isso porque as garantias penais eram nulas, inexistindo qualquer barreira ao punitivismo estatal.

Após o processo de redemocratização, a nova Lei de Segurança Nacional, aprovada no governo de Figueiredo em 1983, veio poucas vezes à tona. Entretanto, ultimamente, a LSN esteve em evidência em casos que fora aplicada em excesso. Assim, o declínio dos obstáculos do poder punitivo estatal, anteriormente salientado, é perceptível em casos progressivamente incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.

Excessos da Aplicação da Lei de Segurança Nacional

Verifica-se que a história do direito penal do inimigo sempre surgiu a partir de algum tipo de pauta relevante para o Estado. Nos casos recentes citados, podemos verificar que o usufruto dessa "ideologia" advém de duas correntes populares, as quais são de elevado valor para a população, que são (1) o combate à corrupção no poder público e (2) o combate ao crime organizado e a guerra às drogas. Entretanto, o que se verifica no uso da LSN no Brasil atualmente é ainda pior, pois não se trata de um inimigo da sociedade como um todo, mas sim um inimigo daqueles que ocupam cargos no poder público, o que evidencia o uso autoritário da legislação, como no regime militar.

No contexto da teoria do direito penal do inimigo, é importante ressaltar que a LSN representa uma grande oportunidade para agentes públicos praticarem atos autoritários em virtude da vagueza de certos dispositivos, os quais podem ser aproveitados para enquadrar e constranger tais inimigos dos agentes públicos. Nesse contexto, o PSB, em ação ingressada no STF4,a qual visava revisão de certos artigos da LSN, alude que:

""Há normas incriminadoras vagas e abertas, na contramão do que exige o princípio constitucional da legalidade penal. Mesmo quando não aplicados, esses preceitos criam um ambiente de medo, com potencial de asfixiar os debates e as contestações ao poder na esfera pública, representando, assim, verdadeira ameaça ao exercício das liberdades democráticas."

Assim, é flagrante a capacidade de abuso da referida lei por parte de agentes públicos. Por essa razão, diversos partidos já entraram com ações no STF questionando dispositivos da referida legislação5.

Para exemplificar tais fatos, observa-se o caso do youtuber Felipe Neto, enquadrado no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional após se manifestar em seu twitter chamando o presidente Jair Bolsonaro de genocida em virtude de sua atuação no combate à pandemia de covid-19. Tal caso possui especial toque autoritário pois tratou-se de clara tentativa de intimidação por parte do filho do presidente Jair Bolsonaro, Carlos Bolsonaro, o qual protocolou uma petição comunicando crime na polícia civil. Nesse sentido, é clara a ilegalidade de inquérito conduzido por este órgão em virtude do artigo 31 da própria lei a qual Felipe Neto estava sendo enquadrado, que diz, sem espaço para maior interpretação:

"Art. 31 - Para apuração de fato que configure crime previsto nesta lei, instaurar-se-á inquérito policial, pela Polícia Federal: (...)"    

Ainda, a própria Constituição Federal, em seu artigo 144, § 1º, I, e IV, tece palavras a respeito da temática, a fim de não possibilitar qualquer tipo de dúvida:

"§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:    

I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;"

Ainda, o inquérito sequer poderia ter sido instaurado pela Polícia Civil, sendo exigido a requisição do Ministério Público, autoridade militar responsável pela segurança interna ou do Ministro da Justiça conforme previsto no Artigo 31 da LSN:

Art. 31 - Para apuração de fato que configure crime previsto nesta Lei, instaurar-se-á inquérito policial, pela Polícia Federal:

I - de ofício;

II - mediante requisição do Ministério Público;

III - mediante requisição de autoridade militar responsável pela segurança interna;

IV - mediante requisição do Ministro da Justiça.

Por fim, o fato de Carlos Bolsonaro ter entrado com a ação junto a delegado que já possui histórico de instauração de inquéritos frágeis juridicamente6 7 contra o influenciador, evidencia o entendimento de Felipe Neto como inimigo de certos agentes do Estado. Em caso prévio, o policial já havia indicado o Youtuber por corrupção de menores, inclusive intimando-o a depor. 

Verifica-se portanto, em virtude da flagrante ilegalidade do inquérito bem como o histórico de identificação do influenciador como inimigo, que este teve como principal razão de existência a mera intimidação do artista conhecido por ser ferrenho opositor ao presente governo.

Outro exemplo do uso autoritário da LSN é a execução de prisões de manifestantes contrários às ações do Governo atual8 pelo motivo, justificado pela LSN, de que estes estenderam faixas acusando o Presidente Jair Bolsonaro de genocida e nazista.

O caso representa mais uma ruptura do Estado com as garantias do direito penal. O esquecimento do chamado garantismo penal no Brasil chegou a tal ponto que o Estado se ampara na Lei da Segurança Nacional para criar uma espécie de máquina de censura aos seus opositores. Não à toa, o Brasil cai, pelo segundo ano seguido, em rankings internacionais de liberdade de imprensa, chegando à pior colocação na história.9 O que se conclui é que foi alcançado essa extremidade porque ao longo do tempo fora ignorado, progressivamente, o caráter garantista que a nossa codificação penal prevê e inclusive necessita para manutenção do nosso Estado Democrático de Direito.

Conclusão

Por fim, conclui-se que o desleixo ao se trabalhar com os princípios penais geraram graves consequências ao Estado Democrático. Nesse sentido, é preciso observar que o direito penal do inimigo é responsável não só por esvaziar as prerrogativas de uso de artifícios de defesa, mas também por influenciar a aplicação de leis, a exemplo da Lei de Segurança Nacional, a qual, em virtude de dispositivos vagos, é usada como meio de repressão e censura, suprimindo a liberdade de expressão de inimigos dos agentes detentores do poder.

Por esse motivo, é preciso nos colocarmos contrários às prisões e processos que atropelam o devido processo legal. É imprescindível a defesa dos princípios penais independentemente do sujeito, pois somente com esse trabalho sendo feito de maneira séria poderemos proteger a nossa Democracia. 

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1 Jakobs, Günther, and Joaquín Cuello Contreras. Derecho penal, parte general: Fundamentos y teoría de la imputación. M. Pons, 1997, pag. 8.

2 Decisão expedida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, disponível clicando aqui. Acesso em: 18/3/21

3 Suspensão de Liminar 1395, que veio por suspender decisão monocrática do Min. Marco Aurélio no HC 191.836.

4 Disponível em: clicando aqui. Acesso em 6/4/21.

6 Disponível clicando aqui. Acesso em 6/4/21.

7 Disponível clicando aqui. Acesso em 6/4/21.

8 Disponível clicando aqui. Acesso em: 18/3/21

9 Clique aqui. Acesso em: 20/3/21

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Jakobs, Günther, and Joaquín Cuello Contreras. Derecho penal, parte general: Fundamentos y teoría de la imputación. M. Pons, 1997, pag. 8.

"Presidente da OAB pede audiência com delegado do caso do Felipe Neto". Redação Migalhas, 18 de mar. de 2021. Disponível clicando aqui

"Delegado intima Felipe Neto a depor por chamar Bolsonaro de genocida". Jornal Valor, 15 de mar. de 2021. Disponível clicando aqui

"Manifestantes são presos por chamarem Bolsonaro de genocida e nazista". Valor Investe, 18 de mar. de 2021. Disponível clicando aqui

Eduardo Marques Fernandes

Eduardo Marques Fernandes

Graduando em Direito pela Fundação Getúlio Vargas - Direito Rio.

Gabriel Prevot Couto

Gabriel Prevot Couto

Graduando em Direito pela Fundação Getúlio Vargas - Direito Rio.

Lucas Lacerda de Souza Maximo

Lucas Lacerda de Souza Maximo

Graduando em Direito pela Fundação Getúlio Vargas - Direito Rio.

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