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Lavajatismo e a degeneração do direito: Ou, a criação de um não direito dentro do direito

A ideia deste artigo é demonstrar, em síntese, que grande vítima de um Derecho Degenerado é a autonomia do Direito, à luz da recente obra de Georges Abboud e da problemática da polarização política;

terça-feira, 20 de abril de 2021

Atualizado às 11:22

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

"Se ao menos houvesse gente ruim por aí, insidiosamente fazendo o mal e fosse necessário apenas separá-las do resto de nós e destruí-las. Mas a linha que divide o bem do mal passa pelo meio do coração de cada ser humano. E quem está disposto a destruir um pedaço de seu próprio coração?"

Há muito escuta-se falar, de maneira pejorativa, na chamada República de Curitiba. Ora, sabe-se que foi ainda cunhado o termo Moro touch, em alusão ao termo Midas touch, que refere-se ao personagem da mitologia grega, na qual tudo que tocava, virava ouro. Nosso Midas, em tudo que tocava, virava o juiz (in)competente.

Brincadeiras, piadas e críticas à parte, Georges Abboud lançou recentemente o livro, fruto de sua tese de livre-docência, Direito Constitucional Pós-Moderno. O livro tem como inspiração, conforme afirma o próprio autor, a obra do grande jurista Bernd Rüthers, Derecho Degenerado, que explica, em síntese, como surgiu um não Direito dentro do Direito, sob a ótica do Estado do Nacional-Socialismo - Nazismo.

Ambas as obras deveriam ser de utilidade pública. Neste sentido, citando Steven Pinker, ao parafrasear Noam Chomsky, o Direito Nazista deve ser visto como um problema, e não mistério. Em outras palavras, podemos (ou devemos) buscar entender de que forma, e porquê, o direito deteriorou-se a tal ponto. Ou seja, conforme leciona Abboud (p.93), "ao enumerarmos as razões de sua formação, podemos produzir uma epistemologia que denuncie a degeneração e contribua para imunização da democracia constitucional".

Neste sentido, chega-se a conclusão de que a grande vítima do chamado Derecho Degenerado fora a autonomia do Direito. O Direito fora tomado pela política. Carl Schmitt e seu decisionismo triunfaram. O Direito passa então a pertencer ao soberano, que possui a palavra final para decidir na exceção. Cria-se um não Direito, dentro e a partir do Direito vigente. Isto, claro, a partir da criação de normas abertas, abstratas, não sujeitas ao controle e ao accountability, e ainda, através do ataque aos valores liberais, bem como, através do ataque à legalidade. Kelsen não era amicus. Muito pelo contrário.

Assim, tem-se que para "degenerar uma ordem jurídica positiva é necessário conferir ao direito um fundamento último, fora dos limites da normatividade, abstrata" (ABBOUD, p.110). Ora, com isso, não estamos querendo dizer, em nenhum momento, que movimentos como o da operação lava-jato tinha como objetivo destruir o Estado Constitucional de Direito ou algo neste sentido. Por isso, é fundamental entendermos como o Direito, em sua autonomia, pode se degenerar. Afinal, é clássica a lição popular de que "de boas intenções, o inferno está cheio".

Nitszche nos ensina, em seu aforismo 146, no clássico Além do bem e do mal, que "aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para o abismo, o abismo olha de volta para você". É o paradoxo do abismo.

Neste sentido, que tem-se que: "a inserção desses novos fundamentos não ocorre para se transplantar uma visão política totalitária. Diversas vezes, esses conceitos são trazidos no afã de proteger o direito da contaminação política, é o que se dá, por exemplo, com a utilização do eficientismo e do combate à corrupção como fundamentos que têm produzido um não direito penal, dentro do direito penal vigente, mediante desrespeito a prazo de prisões, cumprimento da pena antes do trânsito em julgado, transformações de indícios em provas, espetacularização de busca e apreensões, e criminalização do exercício do direito de defesa ou ainda um sentimento de repúdio às decisões judiciais concessivas de habeas corpus" (ABBOUD, 2021, p.111).

A lição é singular: a degeneração marcha também por meio de nobres ideais, com fim de produzir o bem. É o que disse Nietzsche, e também a sabedoria popular. A lição que fica é que não se pode, em nome de nobres ideais, solapar o Direito. Afinal, os direitos e garantias processuais servem justamente para isso: para nos lembrar que, no Direito, os fins NÃO justificam os meios, e sim os legitimam. Esta é a conquista civilizatória mais importante do Direito, e o que nos diferencia da barbárie.

Operar desta forma favorece o crescimento da lógica binária amigo x inimigo, instigando a polarização radicalizada, sendo este o início do (possível) fim. Neste sentido, pode-se extrair de certo imaginário popular que "todos aqueles que criticam a lava-jato são a favor da corrupção", ou ainda que "o problema da impunidade no Brasil são os juízes garantistas". Essa é a lógica que vem, infelizmente, há muito, operando em nossa comunidade.

Quando a polarização radicaliza, extrapola, temos um problema. Acabam os debates pessoais e começam as ofensas pessoais. Desta forma, tem-se que cientistas políticos, há muito, reconhecem que profundas clivagens sociais são um dos perigos sempre latentes para a democracia.

Na década de 1950, Seymour Martin Lipset observou ser inerente a todos os sistemas democráticos a ameaça constante entre os conflitos de grupo que, embora sejam inicialmente a força vital da democracia, possam futuramente se solidificar a ponto de ameaçarem desintegrar a sociedade. Por isso, é fundamental existir uma instituição com caráter contramajoritária. As vezes, é justamente o contramajoritarismo que salva uma democracia.

Na década de 1970, Robert Dahl advertiu que a democracia está em perigo quando se torna polarizada em vários grupos altamente antagônicos ou hiperpolarizados. Sartori, por sua vez, estava preocupado com a inviabilidade dos sistemas partidários caracterizados pela polarização que foge do centro e se concentra nos extremos. Em uma democracia, sempre haverão extremos. O problema, como bem visualizou Sartori, é quando a maioria concentra-se nos extremos, e não no centro.

Conforme leciona Sérgio Abranches, a polarização política não é sempre ruim para a democracia. Há situações de polarização que equilibram a democracia, especialmente, tendo em vista o caráter pluralista das democracias contemporâneas. O problema surge, contudo, quando a polarização gera impasse e paralisia, ou quando se radicaliza, foge do centro e é dominada por dois polos extremistas. Em outras palavras, o problema não está na polarização, e sim na hiperpolarização, passando a ter carga negativa e tendendo à ruptura democrática.

A polarização disfuncional é aquele que desloca a maioria do centro, promovendo dois polos extremos, radicalizados, intolerantes. A polarização extremada gera fuga forçada do centro para os extremos. A polarização democrática, saudável, incentiva o deslocamento dos polos rumo ao centro, abrandando suas preferências mais radicais.

Neste sentido, conforme vimos, a princípio, a polarização não seria algo pernicioso. Ora, em uma democracia contemporânea liberal, dotada de pluralismo político, a polarização decorre, naturalmente, da diversidade imanente a este regime, de forma que, em um primeiro momento, a polarização, além de não ser pernicioso, é algo natural e até saudável em uma democracia consolidada.

Nas lições de Ingo Sarlet, o pluralismo político guarda intrínseca relação com a liberdade de expressão e com o princípio democrático, ainda que com este não se confunda, vez que o pluralismo é aspecto essencial, mas não exclusivo, da democracia no Estado Democrático de Direito contemporâneo.

Assim, o pluralismo político, permite e assegura, de forma respeitosa e regulada, a livre convivência e interação entre convicções, ideais e projetos de vida individuais e compartilhados por grupos mais ou menos representativos de segmentos da sociedade.

Em outras palavras, não existe pluralismo político sem respeito mútuo. Pluralismo político, assim, é incompatível com o pensamento de inimigo político de Carl Schmitt, que infelizmente vem prevalecendo em nossa sociedade. Hoje, sabe-se que houve um aumento das chamadas políticas de confrontação, como o hooliganismo político, caracterizadas pela linguagem de ódio e conflito (ABRANCHES, 2020).

O perigo, como bem aponta Jonathan Haidt (2012), não está em ser conservador ou progressista. Em uma democracia, é fundamental que existam ambos. O perigo, como vimos, é quando a mente naufraga, como bem explica Mark Lilla (2018).

Voltando para nosso problema, a lava-jato dividiu o povo brasileiro, transformando-os em "contra" ou a "favor" da corrupção. Ora, ninguém em sã consciência é a favor da corrupção. Assim, o que sempre esteve em jogo foi qual o preço estar-se-ia a pagar pelo combate à corrupção. Neste sentido, conforme bem leciona Abboud (p.117), "a demonização do produto legislado pela política é uma faceta da polarização degenerativa reiteradamente utilizada para justificar, por exemplo, a superação de qualquer entrave legal ou constitucional em relação ao combate à corrupção".

A derrocada democrática ocorre através da introdução da nova ideologia pela ideia de exceção. Na exceção, tudo pode, desde que se consiga atingir o fim almejado. Assim, tem-se que do "ponto de vista político, o estado de exceção caracteriza-se pela preponderância descontrolada do Poder Executivo, que se declara capaz de editar decretos com força de lei nos quais a legalidade constitucional é suspensa" (ABBOUD, p. 123).

O trabalho de Abboud acaba por nos lecionar (e lembrar) que tudo isso só se opera através da perca de autonomia do Direito. Acaba o Estado constitucional democrático, e inicia-se a exceção. Esta se opera não através da legalidade, mas da discricionariedade, tão combatida pelos que advogam uma ideia de teoria da decisão. Por isso, ataques à Corte Suprema, como instituição em si, e não através do "constrangimento epistêmico", muito bem trabalhado por Streck (2017), devem ser veementemente combatidos.

Por fim, assim como fez Nietzsche, Abboud e tantos outros nos alertam sobre o abismo que existe dentro de cada um de nós, bem como, dentro de cada instituição. Este abismo só pode ser vencido através do respeito ao Direito, à legalidade, ao pluralismo político e às instituições democráticas, como também, com aquela que é a mais silenciosa e poderosa virtude: a humildade, tão pouco presente naqueles que incorporam para si a figura do herói.

 _________

ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Pós-Moderno. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021).

ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

HAIDT, Jonathan. The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion (English Edition). Vintage, 2012.

LILLA, Mark. A mente naufragada: Sobre o espírito reacionário. Tradução Clóvis Marques. 1ª. ed. São Paulo: Record, 2018.

NIETZSCHE, Friedrich. Além Do Bem E Do Mal. São Paulo: Editora Martin Claret, 2017, Aforismo 146, p. 85.

STRECK, Lenio Luiz. Dicionário De Hermenêutica. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2017.

José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

Advogado. Juiz Leigo do TJCE. Pós-Graduando em Direito Constitucional (ABDConst). Mestrando em Ciência Política (UFCG). Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Interpretação e Decisão Judicial (NUPID).

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