Uma pandemia de fake news
Um estudo acerca da divulgação de notícias falsas no Brasil, seu impacto no combate à pandemia e no ordenamento jurídico pátrio.
quinta-feira, 22 de abril de 2021
Atualizado às 13:21
A pandemia do coronavírus impactou a nossa sociedade de forma profunda e completamente imprevisível, motivo pelo qual estudiosos da própria Organização Mundial de Saúde (OMS) têm sustentado que seus reflexos ainda serão sentidos nas próximas décadas¹. Inclusive, impende asseverar que tais sequelas não se resumem ao âmbito de saúde. Por esse motivo, demandam um esforço mútuo da ciência, da política e, até mesmo, da justiça. Afinal, conforme a doença foi se instalando, houve uma outra infestação que a acompanhou: as fake news.
Nossas "velhas" conhecidas nessa era digital, as fake news podem ser definidas como "histórias falsas que parecem ser notícias, espalhadas na internet ou através do uso de outras mídias, geralmente criadas para influenciar visões políticas ou como brincadeiras"². Em outras palavras, são nada mais do que um artifício para ludibriar o leitor a crer naquilo que o locutor deseja, seja uma situação inexistente, meramente tirada de contexto ou deliberadamente exagerada.
Geralmente muito veiculadas em época de eleições, as fake news tendem a direcionar a opinião popular num determinado viés, através da disseminação rápida promovida pelas redes sociais, com o intuito de inflamar os sentimentos da população para benefício de alguém ou algum grupo. Na pandemia, porém, vimos uma nova 'cepa' de notícias falsas, relacionadas à área da saúde, às vacinas, e aos medicamentos que faziam parte (ou não) do tratamento da doença; em suma, diversas narrativas com a intenção de moldar a visão popular acerca da pandemia.
Mas a questão que fica é: como o ordenamento jurídico brasileiro trata destas notícias falsas e daqueles que as criam e propagam?
Para solucionar essa indagação, é vital pontuar, em um primeiro momento, que as Fake News detêm capacidade de influenciar nos mais diversos aspectos da vida social. Afinal, não apenas podem prejudicar a honra de alguém perante seu meio social de convivência, como também podem influenciar em escolhas ou resultados. Podem influir, ainda, na opinião pública acerca da adoção de determinada conduta, como tem ocorrido quanto à negligência por parte de determinados cidadãos na escolha por não tomar as vacinas de imunização do Sars-CoV-2 e até mesmo fazer campanha contra o uso destas vacinas, geralmente tendo por base premissas falhas ou falaciosas e sem qualquer embasamento científico.
Tamanha sua complexidade que é possível vislumbrar que os mais diversos ramos do direito já buscaram meios de coibir a propagação de notícias falsas, como veremos a seguir. De fato, parece-nos vital um diálogo interdisciplinar, porquanto a veiculação digital e seu compartilhamento dar-se-ão de forma extremamente veloz, dificultando a restauração do status quo ante, o que torna imprescindível que haja uma maior quantidade de técnicas de prevenção e repressão por parte do sistema jurídico.
Em matéria penal, a temática ainda possui pouca influência, não havendo ainda qualquer cominação de sanção àquele que ultrapassa os limites da veracidade na internet. No entanto, é de consignar que já houve algumas tentativas de criminalização de tais condutas.
A título de exemplo, vários anos antes do advento das redes sociais, a lei da Imprensa (lei 5.250/67), não recepcionada pela atual Carta Magna, já previa como delito a conduta de "publicar ou divulgar notícias falsas ou fatos verdadeiros truncados ou deturpados"³ que provocassem perturbação da ordem social ou alarme social, desconfiança no sistema bancário, prejuízo aos créditos dos entes federativos ou que pudessem vir a afetar os preços das commodities e títulos imobiliários nos mercados financeiros. Em que pese a suposta "perturbação da ordem social" ser fruto da interpretação do regime composto na Ditadura Empresarial-Militar, a iniciativa acima é tida como pioneira legislativa na punição de veiculação de informações falsas, ainda que motivada por devaneios antidemocráticos e autoritários.
Em adição a isso, impende asseverar a existência de um Projeto de lei4, de iniciativa do Senador Ciro Nogueira (PP/PI) que pretende acrescer a previsão desta conduta ao Código Penal, criando o artigo 287-A, com a seguinte redação:
"Art. 287-A - Divulgar notícia que sabe ser falsa e que possa distorcer, alterar ou corromper a verdade sobre informações relacionadas à saúde, à segurança pública, à economia nacional, ao processo eleitoral ou que afetem interesse público relevante. Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave. § 1º Se o agente pratica a conduta prevista no caput valendo-se da internet ou de outro meio que facilite a divulgação da notícia falsa: Pena - reclusão, de um a três anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave. § 2º A pena aumenta-se de um a dois terços, se o agente divulga a notícia falsa visando a obtenção de vantagem para si ou para outrem."
Por sua vez, em âmbito eleitoral, é possível mencionar o capítulo IV da Resolução 23.610 do Tribunal Superior Eleitoral, que cuida das Propagandas Eleitorais na Internet e que, inclusive, traz toda uma seção sobre remoção de conteúdo da internet. Esta Resolução firma, no parágrafo primeiro de seu art. 27, que "a livre manifestação do pensamento do eleitor identificado ou identificável na internet somente é passível de limitação quando ofender a honra ou a imagem de candidatos, partidos ou coligações, ou divulgar fatos sabidamente inverídicos".
No mais, há de ser citado o principal precursor da coibição das Fake News no Brasil: o advento do Marco Civil da Internet (lei 12.965/14). Afinal, no momento que antecede seu surgimento, o entendimento decorrente da ausência de normatividade era pela impossibilidade de determinação da responsabilização dos provedores nos casos de inércia na retirada dos conteúdos de terceiros que divulgassem notícias inverídicas, ainda que houvesse ordem judicial assim determinando.
Entretanto, a partir da entrada em vigor desta norma, restou previsto que, embora a notificação privada, em regra, não crie o dever de remoção do conteúdo, haverá o dever e a consequente responsabilização no caso de descumprimento quando houver decisão judicial que determine tal remoção - e ainda que essa seja apenas decisão liminar. Veja-se o art. 19 do Marco Civil, nesse sentido:
"Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário."
Portanto, restou consignado que há responsabilidade subjetiva por omissão do provedor de aplicações de internet que não retira o conteúdo apontado como infrator após a devida notificação judicial.
Desta forma, uma vez disseminada uma notícia falsa, o interessado poderá ingressar com uma ação perante o judiciário pedindo sua remoção ou notificar o provedor por conta própria. Caso opte pela primeira opção e o juízo profira decisão em seu favor, o provedor terá de cumprir com essa decisão no prazo cominado e, se não o fizer, sujeitar-se-á a responsabilização por omissão, em nítida garantia ao interessado lesado pela falsa notícia veiculada.
Não podemos dissociar da análise do fenômeno das fake news o fato de que, atualmente, vivemos numa era da tecnologia, na qual a informação e as notícias desempenham um papel fundamental e constante na vida de todos. As pessoas são expostas a novas informações a todo momento, seja através de livros, filmes, jornais, redes sociais, ou até mesmo de aplicativos de mensagens, construindo suas próprias ideologias e opiniões com base nas informações as quais são expostas.
Nesse momento, ocorre também uma grande desconfiança dos cidadãos em relação às grandes redes de notícias, por conta da produção de "conteúdo em favor de causas político-financeiras, envolvendo interesses estritamente individuais, ao invés de se ater ao conteúdo informativo"5 o que cria um terreno extremamente fértil para a criação e propagação de fake news. Situação esta que é amplamente utilizada para manipulação da opinião popular, geralmente em assuntos sobre os quais a população possui pouco conhecimento técnico sobre e, assim, tenderá a crer na notícia lhe apresentada como uma situação revoltante.
Seguindo este raciocínio, cabe trazer o conceito abordado pela socióloga britânica Lindsey McGoey, que em seu trabalho desenvolve a tese da ignorância estratégica, que pode ser definida como o uso da ignorância coletiva como instrumento de manipulação. A autora leciona que: "(.) a ignorância coletiva - crível por conta de sua magnitude absoluta - tem sido um álibi útil, ajudando a desviar a prestação de contas para aqueles que previram o problema (...)"6.
Ou seja, a estratégia em questão se baseia na utilização da ignorância coletiva da população para inflamar as opiniões populares, em prol de algum objetivo político. No contexto da atual pandemia, temos diversos exemplos que vêm à cabeça, dentre eles, citamos: a propagação da falácia de que termômetros infravermelhos causam doenças cerebrais; de que o uso de máscaras poderia causar asfixia por retenção de gás carbônico; de que a vacina contra a covid-19 altera o DNA humano. Sejam estas notícias mais críveis ou mais fantasiosas, inegavelmente criam uma predisposição negativa nos cidadãos a cumprirem medidas sanitárias essenciais ao combate à pandemia.
Também foram muitas as notícias falsas acerca de tratamentos, remédios, vitaminas e alimentos que permitiriam ao corpo evitar ou combater o vírus, baseadas em depoimentos de supostos médicos; além, claro, de notícias contra a eficácia do distanciamento social. Inclusive, como forma de provar ser inegável o infeliz potencial influenciador das fakes news, é possível citar que a divulgação nas redes sociais de que a cloroquina, medicamento utilizado para tratamento de malária, lúpus, amebíase hepática e artrite reumatoide, prevenia o vírus da covid-19 resultou, em diversas ocasiões, na ausência do estoque desses remédios7 - sendo que, meses após, restou comprovada sua ineficácia8.
Ademais, é possível reparar um foco-alvo das fake news: qualquer pessoa e/ou instituição que lhes seja capaz de descredibilizar. Neste diapasão, são frequentes os ataques direcionados à ordem político-institucional, às Organizações Mundiais e à ciência como campo do conhecimento. Os criadores de notícias falsas possuem verdadeira ojeriza pelo debate e por diferenciação de ideias, razão pela qual fazem de seu modus operandi os ataques ao saber e aos nossos valores democráticos, alvos que são difundidos sob o manto de serem "frutos do globalismo" ou até mesmo "establishment". Combatê-los é, portanto, um kit de sobrevivência para o desenvolvimento salutar dos ideais democráticos.
Existe grande dificuldade em desenvolver métodos eficientes para combater as notícias falsas e a consequente desinformação e ignorância do público. Algumas grandes empresas do setor de comunicação, como o facebook e o google, criaram equipes de checagem de fatos para tentar evitar a divulgação, em seus próprios sites. Porém, estas medidas se revelam como insuficientes, uma vez que a influência de divulgação de fatos irreais segue sendo profunda na sociedade.
Dessa forma, percebe-se que o combate à propagação das Fake News deve, em um mundo ideal, surgir de um alinhamento entre diversos setores da sociedade. Nota-se que a ocorrência de tentativas jurídicas de contribuir na luta contra a desinformação não produz os resultados esperados justamente por não vir acompanhada de uma efetiva participação de todos os segmentos sociais. Essas iniciativas, tímidas, porém presentes, visam combater a errônea impressão que muitos cidadãos têm - a de que as fake news não causam um dano tão grave que mereça um esforço dedicado ao seu combate.
Nessa seara, entende-se que o combate à propagação de notícias falsas e veiculação de desinformação precisa ser transformado em política de Estado, consolidada a partir de um alinhamento entre as instituições e a sociedade, para que seja possível a implementação de medidas, e sua subsequente fiscalização por meio da coletividade. Assim, poderíamos chegar a uma sociedade na qual todos são, sim, livres para formar suas próprias opiniões, mas somente com base em fatos verídicos, sem cair em manipulações e distorções da verdade.
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1. PRESSE, France. Com 1 milhão de casos de covid-19 em 8 dias, OMS alerta que pandemia continua acelerando no mundo e que efeitos serão sentidos 'por décadas'. G1. Disponível aqui.. Acesso em 19/04/21.
2. Disponível aqui. Acesso em 15/04/21. Tradução livre.
3. Art. 16 da lei 5.250/67. Disponível aqui. Acesso em 15/04/21.
4. Projeto de lei do Senado 473, de 2017, cujo status encontra-se disponível aqui. Acesso em 12/04/2021.
5. CORREA, Iasmim Queiroz. Fake news: análise acerca da necessidade de responsabilização criminal pela conduta de divulgação de notícias falsas. Disponível aqui. Acesso em 05/04/21.
6. MCGOEY, Linsey. The Logic of Strategic Ignorance. The British Journal of Sociology, Volume 62, 3ª publicação. Disponível aqui. Acesso em 06/04/2021. Pg. 571. (Tradução livre)
7. MELLO, Karina. Estoques de hidroxicloroquina no país estão zerados, diz Pazuello. Agência Brasil - Brasília. Disponível aqui. Acesso em 19/04/21.
8. Cloroquina contra covid-19 vai da 'eficácia não comprovada' à 'ineficácia comprovada'. O Globo. Disponível aqui. Acesso em 19/04/21.
CARVALHO, Gustavo Arthur Coelho Lobo. KANFFER, Gustavo Guilherme Bezerra. O Tratamento Jurídico das Notícias Falsas (fake news). Disponível aqui. Acesso em 09/04/21.