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A competência jurisdicional para julgamento das causas cíveis e de desvio de verbas dos serviços sociais autônomos

Na prática, a Constituição estabelece exaustivamente a competência jurisdicional dos magistrados da Justiça Federal.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Atualizado às 09:02

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A competência jurisdicional para julgamento das causas cíveis e de desvio de verbas dos serviços sociais autônomos decorre da interpretação e aplicação conjunta dos artigos 25, caput, §1°, 109, incisos I e IV, e 125, caput, da Constituição Federal. Ao mesmo tempo, principiologicamente, da garantia do juiz natural em que Constituição estabelece que não haverá juízo ou tribunal de exceção e que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, nos termos do art. 5°, incs. XXXVII e LIII.

Na prática, a Constituição estabelece exaustivamente a competência jurisdicional dos magistrados da Justiça Federal, impondo-se aos juízes federais a competência para processar e julgar as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada as causas judiciais de falência, as de acidentes de trabalho e a competência da Justiça Militar, da Justiça do Trabalho e da Justiça Eleitoral (art. 109, I e IV).

Portanto, a competência da Justiça Federal é constitucionalmente estabelecida de forma taxativa e não cabe a lei complementar ou ordinária e, tampouco, a medida provisória ou o aplicador do Direito sobre ela definir novas e criativas hipóteses de incidência¹. Assim, os serviços sociais autônomos não são entidades autárquicas e nem empresas públicas federais e sim pessoas jurídicas de direito privado que não fazem parte da Administração Pública direta ou indireta, com natureza jurídica própria e características singulares. Conceitua-se o serviço social autônomo como pessoa jurídica de direito privado sem finalidade lucrativa, destinado à promoção dos direitos sociais inscritos no artigo 6º da CF, criada por lei que preveja delimitação de sua atuação e de obtenção de recursos, com participação equitativa dos setores sociais em seus órgãos de direção, poder de autorregulamentação e autogestão de seus recursos, porém submetido para controle finalístico à fiscalização do Tribunal de Contas da União.

Nessa senda, a competência da Justiça Estadual é residual (artigos 25, caput, §1° e 125, caput, da CF) e abarca as causas judiciais de todos os serviços sociais autônomos, conforme entendimento Sumulado e ainda plenamente vigente do STF, isto é, dizer que "o Serviço Social da Indústria está sujeito à jurisdição da Justiça Estadual" (Súmula 516) é compatível e foi recepcionado pelo texto constitucional de 1988.

Apesar da Súmula 516 do STF ser de publicação de 12 de dezembro de 1969 e anterior a Constituição Federal de 1988, torna-se necessária a afirmação de que é extremamente atual e a sua ratificação leal e constante na jurisprudência do STF apenas reforça a sua solidez, permanência e estabilidade jurídica na determinação da competência da Justiça Estadual para julgar e processar as causas do Sistema S no hodierno ordenamento jurídico brasileiro, conforme pode se observar com tranquilidade em diversos precedentes, dentre outros, RE 1.097.286, rel. min. Gilmar Mendes, DJE de 3/10/18; ARE 966.048, AgR, rel. min. Edson Fachin, DJE de 18/10/16; ARE 850.933, min. Dias Toffoli, DJE de 30/8/16; RE  603.612/RS, rel. min. Roberto Barroso DJe de 11/12/15; ACO 2.640/ES, rel. min. Roberto Barroso, DJe de 20/08/15; ACO 2.082/SP, rel. min. Luiz Fux, DJe de 23/2/15; ACO 1.953 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJe de 19/02/14; RE 645.243/DF, rel. min. Luiz Fux, DJe de 8/6/12; ACO 1.588/SP, rel. min. Cármen Lúcia, DJe de 8/2/12; RE 589.840/RS-AgR, rel. min. Cármen Lúcia, DJe de 26/5/11; RE 366.168, rel. min. Sepúlveda Pertence, DJ de 14/5/04; ACO 1382, rel. min. Eros Grau, DJE 165, DJ de 1/9/09; RE 414.375/SC, rel. min. Gilmar Mendes, DJ de 01/12/06.

Registra-se, por outro lado, que a decisão monocrática e isolada na ACO 225O, rel. min. Celso de Mello, DJe 11/06/2014, reconhecendo a competência da Justiça Federal para processar e julgar causa referente a irregularidades na prestação de contas dos gestores do SENAC/ES, reminiscentes ao exercício do ano de 2000, adota a técnica da motivação per relationem ou aliunde, manifestando-se pela simples transcrição como único fundamento de decidir do parecer oferecido pela douta Procuradoria-Geral da República à época que, além de literalmente afirmar que contraria orientação jurisprudencial do STF e do STJ e que a Justiça Federal é a única competente para processar e julgar as ações envolvendo o Sistema S, conforme disposto expressamente no art. 109, I, da CF, diz equivocadamente que a Federação das Indústrias do Estado de Pernambuco (FIEPE) é entidade do Sistema S e que os serviços sociais autônomos estão sujeitos a normas que regem a Administração Pública no que tange à observância de processo licitatório e à responsabilização criminal e civil, o que viola frontalmente o Tema de Repercussão Geral 569².

Ressalta-se, assim, que na ADPF 396 proposta pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), com fundamento de que a orientação jurisprudencial que confere à justiça comum estadual a competência para o julgamento de ações penais envolvendo recursos percebidos por entidades integrantes do Sistema S desrespeitaria o princípio do juiz natural e a competência da Justiça Federal para julgar infrações penais praticadas contra bens e interesses da União, decidiu-se que não comporta conhecimento a arguição em razão do requisito da subsidiariedade e que a mesma não constitui meio idôneo para tutelar situações jurídicas individuais³.

Dessa maneira, afirmar que os serviços sociais autônomos de abrangência nacional devem prestar contas das contribuições tributárias recebidas e, igualmente, submeterem-se ao controle principiológico e finalístico do Tribunal de Contas da União (TCU) está correto e decorre de interpretação do parágrafo único do art. 70 da Constituição, do art. 5o, inc. V, da lei 8.443/92, do art. 183 do Decreto-lei 200/67 e do próprio Tema 569 do STF4, mas isso não altera a sua natureza jurídica de pessoa jurídica de direito privado em pessoa jurídica de direito público da União (União, autarquias e associações públicas de interesse federal) ou em empresa pública estatal federal como a Caixa Econômica Federal (CEF) ou a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) cuja maioria do capital votante pertence diretamente à União e cujo capital social é constituído de recursos provenientes exclusivamente do Estado.

Em outras palavras, a sujeição dos serviços sociais autônomos ao controle finalístico do TCU no que concerne a aplicação dos recursos tributários recebidos não tem juridicamente a capacidade de modificar a competência da Justiça Federal fundada no art. 109 da CF, isto é, não tem a força normativa de uma emenda à constituição. A competência da Justiça Federal, inspirada no direito anglo-saxão, rege-se exaustivamente na Constituição e exclusivamente pelo interesse processual da União Federal, das autarquias federais e das empresas públicas federais.

Portanto, o controle e a fiscalização meramente finalísticos do TCU sobre as contas dos serviços sociais autônomos não fazem incidir os incisos I e IV, do art. 109, do Texto Magno de 1988, isto é, a competência jurisdicional da Justiça Federal não é assentada e determinada pela abrangência da alçada das atividades fiscalizatórias do TCU, órgão de controle externo de auxílio do Congresso Nacional, mas sim, peremptoriamente, pelo texto constitucional. Isto significaria concluir que alterada a competência do TCU automaticamente se modificaria a competência da Justiça Federal, o que é um erro jurídico grosseiro. 

Nessa senda, a Súmula 208 do Superior Tribunal de Justiça (STJ)5 que tem referência legal no art. 109, inciso IV, da Constituição, não altera nem de longe esse panorama jurisidicional ao afirmar que compete "a Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal".

A uma, a Súmula descreve situação completamente distinta dos serviços sociais autônomos porque não se trata de contribuição tributária incorporada ao patrimônio de pessoa jurídica de direito privado, mas sim de enunciado sumular decorrente de hipótese específica de convênio de direito público de verbas da União Federal repassadas para outro ente federativo por meio de ação administrativa da Administração Direta (Ministério da Ação Social à época) destinada à construção de 40 unidades habitacionais e, segundo se infere da documentação dos autos, o gestor do Município teria desviado material de construção, não construindo as unidades habitacionais com recursos alocados exclusivamente do erário federal.

A duas, os demais precedentes que também deram procedência a publicação da Súmula foram os seguintes: (i) desvio de verbas federais destinadas a município em razão de convênio com a autarquia federal conhecida como Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) em que Prefeito havia utilizado irregularmente recursos públicos repassados unicamente pelo erário federal; (ii) caso de acusação de Prefeito haver se apropriado de repasses públicos da União Federal, para a construção de um alojamento de dois pavimentos para os Estudantes da Escola Agrícola Municipal, verba essa decorrente tão-somente de convênio administrativo com verbas públicas federais; (iii) Secretário Estadual de Cultura, Esporte e Turismo indiciado por ter malversado verbas federais provenientes de convênio público estabelecido entre a Secretaria e o Ministério da Cultura; (iv) suposta prática do crime previsto no art. 312 do Código Penal, tendo em vista irregularidades ocorridas na destinação de recursos orçamentários, provenientes de dotação federal, objetivando a instalação de rede de eletrificação rural6.

A três, em todos esses casos há límpido interesse direto, específico e individual da União Federal na realização do objeto do contrato administrativo porque as verbas são unicamente públicas federais e dos fatos certamente se originará a obrigação legal de devolução dos recursos aos cofres do Tesouro Nacional, isto é, a restituição aos cofres da União dos valores não utilizados e a cobrança pela União das multas legais pelos descumprimentos das cláusulas contratuais o que, indubitavelmente, arrasta para a esfera federal o desfecho das ações judiciais.

A quatro, o produto da arrecadação das contribuições tributárias dos serviços sociais autônomos perde o caráter de recurso público tributário ao ingressar nos caixas das entidades e se torna recurso privado próprio, pois os tributos incidentes sobre a folha de pagamentos total do empresário contribuinte não integram a título algum a receita do Estado e a passagem de recursos pela Receita Federal é meramente procedimental, como já decidiu algumas vezes, à unanimidade, o STF7.

Sendo assim, por exemplo, compete a Justiça Federal processar e julgar ações dos Conselhos de Fiscalização Profissional ante a sua natureza jurídica de autarquias corporativistas federais8, mas não compete processar e julgar as causas em que as sociedades de economia mista de âmbito federal sejam interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes e, muito menos, as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse das sociedades de economia mista, salvo quando a União intervém como assistente ou opoente de acordo com a própria imposição do texto constitucional. Essa interpretação é a consolidada no STF, aplicando-se sob a égide da atual Constituição de 1988, a saber:

Compete à Justiça estadual, em ambas as instâncias, processar e julgar as causas em que for parte o Banco do Brasil S.A (Súmula 508; HC 69.881, rel. min. Celso de Mello, 1ª T, DJ de 6/10/06; HC 70.808, rel. min. Carlos Velloso, 2ªT, DJ de 18/3/94).

As sociedades de economia mista só têm foro na Justiça Federal, quando a União intervém como assistente ou opoente (Súmula 517; RE 750.142 AgR, rel. min. Edson Fachin, 1ª T, DJE 43 de 8/3/16, ACO 2.438 AgR, rel. min. Luiz Fux, 1ª T, DJE 45 de 10/3/15)

É competente a Justiça comum para julgar as causas em que é parte sociedade de economia mista (Súmula 556; ACO 1.213 AgR, rel. min. Roberto Barroso, 1ª T, DJE 213 de 30/10/14)

No ponto, o mesmo raciocínio e a jurisprudência aplicável as sociedades de economia mista, empresa estatal de direito privado instituída por lei, cuja maioria das ações com direito a voto pertença diretamente à União e cujo capital social admite a participação do setor privado, é do mesmo modo o constitucionalmente adequado para os serviços sociais autônomos, ou seja, não existe, a priori ou por si só, interesse jurídico direto ou econômico da União apto a fixar a competência da Justiça Federal brasileira nas causas envolvendo pessoas jurídicas de direito privado ou pessoas físicas que desviem recursos pertencentes ao Sistema S, mesmo que nesses casos exista exigência constitucional de prestar contas ao TCU e a competência da CGU para a fiscalização das verbas públicas federais recebidas. O mesmo fato acontece diuturnamente com os sindicatos, as organizações sociais, as organizações da sociedade civil de interesse público, as organizações não governamentais (ONG's), as entidades de fomento, as entidades beneficentes de assistência social e as Universidades Comunitárias, que são do mesmo modo financiadas por tributos, mas isso não é motivo suficiente e per si para manipular ao bel-prazer do intérprete do Direito o conceito de interesse da União para alterar as regras constitucionais de demarcação originária de competência da Justiça Federal.                

Por sua vez, o art. 20, alínea "c", da lei 4.717/65, ao estabelecer que, para os fins da lei de Ação Popular, consideram-se entidades autárquicas as entidades de direito público ou privado a que a lei tiver atribuído competência para receber e aplicar contribuições parafiscais, do mesmo modo, não tem o condão de transformar os serviços sociais autônomos em entidades autárquicas ou em empresas públicas federais, pois, a competência da Justiça Federal é originária da Constituição, iniciando-se a interpretação pelo diploma normativo de hierarquia maior e, assim, interpretando a legislação infraconstitucional à luz do Texto Magno, isto é, do cume ou do ápice jurídico para a base da pirâmide normativa, e não o inverso.  

Portanto, de acordo com a interpretação atual e consolidada do STF e a interpretação dos artigos 25, caput, §1°, 109, incisos I e IV, e 125, caput, da CF, o juiz natural competente para processar e julgar as causas cíveis e de desvios de verbas do Sistema S é o da Justiça Comum dos Estados.

_________

1.  ADI 2.473 MC, rel. min. Néri da Silveira, DJ de 7/11/03.

2.  RE 789.874, rel. min. Teori Zavascki, DJE de 19/11/14.

3.  ADPF 396, rel. min. Edson Fachin, DJE de 18/2/20.

4 RE 789.874, rel. min. Teori Zavascki, DJE de 19/11/14, Tema 569.

5.  Súmula 208 do STJ, Terceira Seção, em 27/5/98 DJ 3/6/98. 

6.  CC 14.358-RS, 3ª S, 09.04.1997, DJ 19.05.1997; CC 15.426-RS, 3ª S, 27/3/96 - DJ 27.05.1996; CC 15.703-RO, 3ª S, 13/3/96 - DJ 22.04.1996 e CC 18.517-SP, 3ª S, 23/4/97, DJ 26.05.1997.

7.  ACO 1.953 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJE 34 19-2-2014; ACO 1382 rel. min. Eros Grau, DJE 165, divulgado em 1/9/09.

8. RE 595.332, rel. min. Marco Aurélio, DJE de 23-6-2017, Tema 258.

Edvaldo Nilo de Almeida

Edvaldo Nilo de Almeida

Pós-Doutorando em Direito Tributário pela UERJ. Pós-Doutorando em "Derechos Humanos: de los derechos sociales a los derechos difusos" pela Universidade de Salamanca. Pós-Doutorado em Democracia do Ius Gentium Conimbrigae associado à Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Público pela PUC/SP. Procurador do Distrito Federal. Vencedor do Prêmio Luis Eduardo Magalhães com a tese sobre CPI. Sócio do escritório Nilo & Almeida Advogados Associados.

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