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Desafios para a responsabilidade civil médica na 2ª era da covid-19

Vários litígios possuem como objeto supostos erros médicos. Ocorre que prestadores de serviços de saúde merecem uma liberdade considerável para as suas deliberações de boa fé, sendo apropriado que em situações excepcionais os formuladores de políticas públicas articulem "padrões de atendimento de crise" para desastres em massa, como a covid-19.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Atualizado em 30 de abril de 2021 09:37

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em abril de 2020 o IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil) enviou a alguns parlamentares uma proposição de mitigação da responsabilidade civil de médicos e profissionais de saúde, no sentido de que não fossem responsabilizados por eventos adversos relacionados ao covid-19, exceto em casos de grave negligência. Por qual razão redigimos a proposta? Pelo fato da covid-19 ser uma pandemia que sobrecarregou o sistema público de saúde brasileiro. Vários litígios possuem como objeto supostos erros médicos, a maior parte em razão do óbito de entes queridos. Ocorre que prestadores de serviços de saúde merecem uma liberdade considerável para as suas deliberações de boa fé, sendo apropriado que em situações excepcionais os formuladores de políticas públicas articulem "padrões de atendimento de crise" para desastres em massa, como a covid-19.

Todos sabemos que a regra geral do art. 944 do CC se aplica aos profissionais da saúde. Como consectário do princípio da reparação integral, a indenização é delimitada pela extensão do dano e não pelo grau da culpa. A obrigação de indenizar se contenta com a relação causal entre a conduta comissiva ou omissiva culposa do médico e o dano patrimonial ou extrapatrimonial ao paciente, independentemente da intensidade da reprovabilidade do comportamento antijurídico.

Portanto, nunca se perseguiu uma proposta de imunidade absoluta - que nenhum estatuto ou lei prevê - e que seria inapropriada, pois mesmo em circunstâncias extremas a responsabilidade civil médica se assenta no dever de tutela do melhor interesse do paciente. Em outras palavras, a responsabilidade médica nunca deve desaparecer, pois sem isso, a confiança da sociedade na profissão seria perdida. E em tempos de crise, a confiança é algo que nenhum de nós pode se dar ao luxo de racionar. Contudo, profissionais de saúde necessitam de um escudo de responsabilidade civil para que não se preocupem com pretensões judiciais enquanto lutam para salvar vidas.

Outro aspecto importante: não se tratava de proposta não incidência de responsabilidade civil por força maior (art. 393, parágrafo único do Código Civil), pois o fato inevitável da pandemia não acarreta uma impossibilidade absoluta, mesmo que temporária, de prestação de atendimento médico. Todavia, a objetiva alteração das circunstâncias impõe a adequação da análise judicial de padrões de conduta profissionais a um panorama de calamidade. Portanto, a responsabilidade pessoal do médico se mantém subjetiva (arts. 951, CC c/c 14, § 4º, CDC), porém a avaliação casuística do "cuidado razoavelmente exigível" será contextualizada ao quadro de exceção.

Em 5 de maio de 2020 publicamos um artigo no Migalhas intitulado, "Por uma isenção de responsabilidade dos profissionais de saúde por simples negligência em tempos de pandemia". (Clique aqui)  Naquela publicação seminal, tivemos a oportunidade de fundamentar a lógica normativa da proposta legislativa no princípio da reciprocidade. Quando a sociedade pede que alguns de seus membros corram grandes riscos pessoais ao servir os interesses do público, é razoável esperar que a sociedade assuma algumas responsabilidades por eles em troca dos riscos assumidos. O próprio Código de Ética Médica (RES. CFM 2.217/18) faz o balanceamento entre a tutela da integridade psicofísica do facultativo e o interesse público ao inclui dentre os direitos dos médicos, o de "V - Suspender suas atividades...quando a instituição pública ou privada para a qual trabalhe não oferecer condições adequadas para o exercício profissional, ressalvadas as situações de urgência e emergência...".

Consistente com essas obrigações recíprocas, é apropriado que a sociedade reduza os riscos de responsabilidade impostos àqueles que em uma emergência de saúde pública estão sujeitos a riscos substanciais não apenas a si mesmos, mas também a suas famílias. Portanto, no caso de profissionais de saúde que trabalham na linha de frente durante uma pandemia o que é esperado? que a eles se disponibilize em caráter preventivo, os recursos necessários para se proteger, como também recursos necessários para que sejam cuidados (assim como suas famílias) caso adoeçam como resultado de seu serviço ou se vierem a falecer no cumprimento do dever.

Tanto isto é verdade, que recentemente entrou em vigor a lei 14.128/21, fixando indenização aos Profissionais de Saúde por danos no período da covid, a ser paga pela União, pela via administrativa, de maneira imediata, no valor de R$ 50.000,00, em caso de incapacitação permanente ou a sua família, em caso de morte, com o acréscimo de outras verbas em prol dos dependentes. Não entraremos na discussão quanto aos méritos e deméritos da indenização extrajudicial (sugerimos aqui a leitura do texto de Monica Cecílio Rodrigues e Romualdo Baptista dos Santos: Primeiras impressões sobre a lei 14.128/21: Indenização aos profissionais de saúde por danos na pandemia da covid-19, Clique aqui), apenas importa perceber que já existem mecanismos de contrapartida aos grandes sacrifícios praticados pelos profissionais da saúde.

O que se postula é que o paciente que se sente ofendido por uma omissão de cuidados em um ambiente sem crise, não terá necessariamente uma reclamação válida em um ambiente de crise. Evidentemente, limitações de responsabilidade não constituem imunidades absolutas. Os prestadores de cuidados de saúde serão responsabilizados ??quando seus atos, omissões e decisões forem deliberados, desrespeitosos, negligentemente grosseiros, discriminatórios ou intencionalmente violem normas éticas.

Um bom ponto de partida para afastar insegurança jurídica no cenário brasileiro, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal, que conferiu interpretação conforme a Constituição ao art. 2º da MP 966/20, excluindo de sua interpretação, sentidos que poderiam ser violadores dos deveres de proteção à vida e à saúde das pessoas. O Relator, Ministro Luís Roberto Barroso estabeleceu que, na caracterização de "erro grosseiro" leva-se em consideração a observância "de critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas, bem como dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção". Quer dizer, a pandemia não desobriga o médico de atuar conforme consensos formulados por experts, baseados em evidências. Em sentido análogo, cite-se a lei 13.979/20, determinando que as medidas de combate à pandemia devem ser determinadas com base em evidências científicas.

Como observar no caso concreto se houve o "cuidado razoavelmente exigido"?¹ Embora o TCLE seja comumente concretizado por meio de um documento escrito, pelo qual o paciente manifesta o acordo com a intervenção, na turbulência da pandemia, é provável que não haja possibilidade de se intensificar o esclarecimento para a expressão do consentimento. Evidentemente o consentimento será dispensado nos casos em que há grave urgência, bem como em casos de inconsciência e também nas hipóteses em que a não intervenção do médico importe risco para a saúde pública, como no caso da pandemia1.

Se por um lado, a excepcionalidade da situação permite a não obtenção do consentimento em alguma medida, não a admite por completo e, muito menos, afasta a necessidade de que as informações das práticas realizadas com o paciente sejam registradas. Então, o correto preenchimento do prontuário é a segurança para o profissional, que conhece o caso do paciente e as medidas tomadas até ali por meio de seus registros. Na relação médico-paciente, os dados de saúde são dados sensíveis, fundamentais para a comprovação de prognósticos, diagnósticos, informações sobre comorbidades, exames laboratoriais e outros, que servem para resguardo dos direitos da personalidade do paciente e, também, para a segurança dos profissionais de saúde, na medida em que documentam o histórico de sua intervenção. Acresça-se a isto o aspecto dinâmico do consentimento informado. No atendimento contínuo, as alterações no quadro do paciente podem transformar o tipo de informação a ser repassada, o destinatário da informação, bem como as decisões a serem tomadas2.

Entretanto, um fator que fundamentalmente direcionará a responsabilidade médica é o tempo. No cenário pandêmico compreender as latitudes e longitudes da responsabilidade médica requer um diálogo técnico com o estado da arte da covid-19. Os fatos jurídicos que poderão repercutir no direito de danos dependerão basicamente da seguinte pergunta: De qual era da covid estamos tratando?

A 1ª era da covid teve como marco inicial a data de 30/1/20, momento em que a OMS declarou a covid como uma emergência de saúde de importância internacional. A partir de então houve a disseminação da doença e das ondas, variando conforme as políticas públicas adotadas em cada País (medidas restritivas/fechamento de fronteiras/ uso de máscaras e higienização/ distanciamento social). Os desdobramentos são amplamente conhecidos.

Lado outro, a 2ª era, na qual vivemos, concerne ao impacto das variantes e da vacinação. Infelizmente, o Brasil é hoje o epicentro mundial da covid-19. No dia da publicação deste texto (28.4), já alcançamos 395.000 óbitos. Hoje respondemos por 30% dos casos diários de morte em todo mundo. Até agora apenas 5% dos brasileiros receberam a segunda dose de uma vacina anticovídica.

Em comum a 1ª e 2ª eras, temos o chamado "Risco Brasil". Além da dimensão sanitária da pandemia, a dimensão socioeconômica é cruel em nosso país, por razões estruturais amplamente conhecidas - desigualdade extrema, dificuldade para transporte e distribuição de insumos/equipamentos, limitado número de Profissionais de Saúde com treinamento especifico e leitos de terapia intensiva. Tudo isso se soma ao gerenciamento caótico da crise por parte dos poderes constituídos e práticas de superfaturamento e corrupção na aquisição de equipamentos e insumos. O reflexo da irresponsabilidade alcançou o extremo ao final de 2020, por uma conjunção entre o atraso na aquisição de vacinas por "negacionismo", persistência injustificável na utilização de medicamentos de eficácia globalmente rejeitada pela comunidade científica - como é o caso da hidroxicloroquina - somado ao inconcebível episódio de mortes decorrentes por falta de suprimento de oxigênio nos hospitais de Manaus.

Nesse panorama desolador, quais foram os grandes desafios da responsabilidade civil para os profissionais de saúde na 1ª era? Diante da novidade da covid, em circunstâncias sem precedentes, profissionais atuavam às cegas em ambientes perigosos, desprovidos de recursos. Médicos e enfermeiros testaram métodos de esterilização e materiais alternativos. Serviram-se de dispositivos médicos para uso não aprovado e, por vezes, trabalharam sem uso de equipamento de proteção individual adequado, em instalações não tradicionais ou em locais ou especialidades em que não eram necessariamente licenciados.

Em suma, algumas condutas que antes eram vedadas, ou que não eram recomendadas num cenário de normalidade, passaram a ser admitidas e contribuíram para flexibilizar as exigências em relação à atuação do médico. Aliás, a lei 13.989, de 15 de abril de 2020 pode ser citada como paradigmática em relação à flexibilização das exigências em relação à atuação do médico, pois autorizou o exercício da telemedicina durante o período da pandemia, relativizando a essencialidade do contato presencial com os pacientes. Esse é um exemplo da resposta do direito à necessidade de adaptar a atuação do médico aos novos tempos3.

Porém, a característica notória da 1ª Era da covid em termos de responsabilidade civil, foi o fato de que médicos trataram pacientes com drogas off label, ou mesmo através do uso compassivo de medicamentos experimentais não disponíveis comercialmente4. E aqui percebemos em tons vivos como os cenários mudam drasticamente: Em um primeiro momento o CFM se posicionou no parecer 4/20, concluindo que " durante o período da pandemia, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, em pacientes com covid". Contudo, o próprio parecer ressaltava que não havia nenhum trabalho que comprovasse o benefício do uso da droga para o tratamento da covid-19. Com o passar do tempo, em uma real aplicação da teoria da alteração das circunstâncias no contexto sanitário, decisões tomadas com base na legis artis ao início da pandemia não mais se justificavam alguns meses depois, tornando-se contraindicadas. Notabilizou-se a sentença emanada da 2ª Vara do Juizado Especial Cível de Santos, fixando indenização por danos morais contra paciente que pelas redes sociais ofendeu a honra de médico que se negou a lhe prescrever o kit covid. No lamentável episódio, não houve negativa de tratamento, mas recusa de prescrição de determinado medicamento que não conta com registro de eficácia e segurança para aquele tratamento específico (clique aqui) Portanto, em um giro de 180 graus, o avanço científico do final de 2020 indicava que se um médico prescrevesse cloroquina e azitromicina, poderia ser em tese responsabilizado pelo órgão de controle ético, que é o Conselho Federal de Medicina (CFM).

A 1ª Era da covid não se deu por encerrada. Tudo que já aconteceu, lamentavelmente ainda repercute diariamente no Brasil. Nada obstante, em paralelo a ela neste momento vivenciamos a rápida consolidação da 2ª era da covid.

2ª era da COVID: razões para a mitigação da Responsabilidade Civil

Os novos desafios impostos pelo surgimento de diferentes variantes do vírus SARS-CoV-2 são inegáveis. Os impactos diretos e indiretos dessa nova realidade são responsáveis por um novo delineamento na condução da  pandemia. Se, em 2020, as dificuldades relacionavam-se à eficácia dos métodos diagnósticos e terapêuticos, bem como ao desenvolvimento de vacinas, em 2021 enfrentamos muitas dúvidas relativas ao comportamento das novas variantes. Nesse contexto, os parâmetros transmissibilidade, patogenicidade/virulência e antigenicidade tornaram-se de fundamental importância na definição desse novo padrão.

O processo de mutação do genoma viral (inserção/deleção/recombinação) verifica-se a partir das inúmeras replicações do vírus. Logo, quanto mais o vírus circula (índice elevado de transmissibilidade), maior a probabilidade de ocorrência de mutações, processo natural de evolução do vírus (seleção natural). Apesar de no início da pandemia os níveis de evolução genética terem sido modestos, agora configuram-se como relevantes sendo, inclusive, suficientes para caracterizar a denominada 2ª era da covid.

Em contexto mundial,  o surgimento das primeiras variantes foi observado, inicialmente, na Europa (Reino Unido - B1.1.7), e na África do Sul (B.1.351), ambas em meados de novembro/dezembro de 2020. No Brasil, a partir de fevereiro de 2021, foi que se identificou, no Amazonas, a primeira variante do SARS-CoV-2 (P1 ou B1.1.2.8,1). Essas três variantes, foram classificadas pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças como variantes de interesse e maior necessidade de precaução devido aos importantes desafios terapêuticos, preventivos e logísticos que impõem. (clique aqui)

Estudos recentes sugerem que essas variantes, comprovadamente mais transmissíveis apresentam, em comum, mutações no receptor viral (domínio S da proteína). Em decorrência dessa mutação, não somente a afinidade de ligação do vírus às células do hospedeiro estaria potencializada, como também, oportunizaria o escape imunológico - evasão do vírus à defesa do hospedeiro. Apesar dos estudos não terem evidenciado que a terapêutica usual com anti-inflamatórios e antivirais seja menos eficiente com as variantes emergentes, pode-se inferir que o tratamento com soro convalescente e anticorpos monoclonais talvez não seja tão eficaz diante da comprovada habilidade do escape imunológico. (Davies et al., Science 372, 149, 2021)

Além da repercussão sobre a transmissibilidade viral, a possibilidade de maior gravidade da doença (virulência das variantes), os novos desafios diante do diagnóstico (mutações de deleção podem gerar falhas dos testes diagnósticos existentes), bem como o temor quanto ao aumento das taxas de reinfecção e a questionável eficácia das vacinas (escape imune natural e induzido pela vacina), têm modificado, de forma significativa, o cenário da 2ª era da covid. Somam-se, a essas questões, a situação da sobrecarga do sistema de saúde que comprometem o acesso oportuno à assistência hospitalar repercutindo, de forma significativa, na qualidade da prestação dos serviços. (clique aqui)

Todos esses desafios inéditos, estão sendo impostos aos profissionais da saúde que, embora tivessem adquirido certa experiência com a 1ª era da covid, enfrentam, atualmente, realidade diversa. Diante das novas variantes, o quadro de incertezas se renova. 

Readequações são necessárias, não só no que se refere ao diagnóstico clínico da doença (abordagem sistêmica dos sinais e sintomas) como também nas relativas ao diagnóstico laboratorial (primers de PCR mais específicos e indicação de genotipagem do vírus) (clique aqui). Em função da nítida alteração dessas circunstâncias impõem-se, muitas vezes, certo distanciamento das recomendações e/ou protocolos já definidos para 1ª era covid. A possibilidade de erro diagnóstico, diante de tal complexidade e ineditismo, torna-se realidade. Assim, o padrão  de conduta exigido do profissional diligente deverá adequar-se a uma justificada releitura, uma vez que, em princípio, o erro de diagnóstico pode ser considerado escusável e não configurar conduta culposa do médico.

A nova condição imposta pela capacidade de evasão dos vírus mutados em relação à resposta imunológica do hospedeiro, seja ela natural (primo infecção), ou induzida pela vacina, impactam no aumento das reinfecções. Nesses casos, a evolução pode ser diferente da esperada, até mesmo no sentido de formas mais graves da doença, pois algumas propostas de tratamento tornam-se  limitadas reduzindo, ainda mais, as possibilidades de sucesso terapêutico. Isso é observado em relação à terapia com anticorpos monoclonais, por exemplo, visto que estudos comprovam o potencial das variantes em neutralizarem a resposta mediada por esses anticorpos. (clique aqui)

Outro ponto importante, nessa nova era é a possibilidade de inadequação das vacinas existentes em provocar efetiva prevenção da covid. Entretanto, esse potencial insucesso terapêutico não estaria vinculado à conduta do profissional, mas seriam decorrentes das limitações ora impostas (álea terapêutica).

Os padrões de transmissibilidade e patogenicidade, exibidos pelas novas variantes do SARS-CoV-2, justificam o significativo implemento do número de casos de covid nos diferentes países em que essas variantes foram identificadas. Justificam o aumento da disseminação da doença a maior probabilidade de contágio por contato e o fato dos indivíduos manterem-se contaminados por mais tempo (infecção prolongada) aliada à maior susceptibilidade das crianças ao vírus, impactando no aumento do índice de transmissão. Independente da causa, os reflexos do exponencial aumento do número de infectados reflete, direta ou indiretamente, na realidade dos hospitais.

A redução significativa do número de leitos e vagas em UTIs, a escassez de equipamentos adequados ao atendimento dos pacientes (reservas de oxigênio em níveis críticos, falta do kit para intubação, insuficiência de medicamentos necessários ao procedimento), bem como a  carência de profissionais qualificados para a complexidade dos atendimentos, culminam com o estabelecimento do quadro de colapso do sistema. Médicos atuam em jornadas exaustivas - física e mental - situações limítrofes de incerteza devido a inadequação dos protocolos, e, muitas vezes, sem condições necessárias para garantir sua própria segurança. Enfrentando esses desafios há mais de um ano e, agora, diante das novas demandas da 2ª era da covid, é, cada vez, mais frequente observar profissionais da linha de frente adoecendo. O enfrentamento dos riscos  da "Síndrome de Burnout",  transtorno relacionado ao estresse no trabalho, é a realidade atual desses profissionais que sentem-se emocionalmente "exauridos" e desinteressados.

A superlotação dos hospitais somada à insuficiência de profissionais e à exaustão dos que saem da linha de frente têm justificado a redução do número de profissionais disponíveis ao enfrentamento desse atual cenário de calamidade. Estratégias com a finalidade de tentar suprir essa demanda têm sido propostas. Nesse momento extraordinário, cada vez mais, médicos de outras especialidades (como socorristas) e médicos residentes, têm sido desviados de suas atribuições originárias com a finalidade de manter a prestação dos serviços de assistência à saúde. Especialmente no caso dos médicos residentes (aprendizes de uma especialidade sob orientação de um preceptor - profissional em formação), faz-se necessária a ponderação relativa à gradação da responsabilidade civil por suas condutas, especificamente nesse contexto de exceção. Apesar de ocuparem posição delicada em relação à efetiva e independente atuação médica, destaca-se que, em termos de deveres de cuidado, a inexperiência não o exime da responsabilidade perante o paciente, uma vez que é graduado e inscrito no Conselho Regional de Medicina (lei 6.932/81).

Ainda, em relação aos médicos residentes, é importante analisar o impacto futuro que o contexto da pandemia poderá acarretar na sua atuação profissional como especialista. O propósito da residência médica é possibilitar, por meio de treinamento, que o profissional adquira um nível de excelência e aprimoramento em determinada área específica da medicina. No contexto pandêmico, cirurgias eletivas encontram-se suspensas (blocos cirúrgicos são transformados em UTIs) e, ainda, ocorre o desvio de função desses profissionais na tentativa de suprir a demanda extraordinária que ora se impõe. Sem o treinamento necessário, pelo menos a curto e médio prazo, abre-se a possibilidade de intensificação de erros médicos no exercício da prática ordinária da especialidade. Qual seria a responsabilidade desse profissional no período pós-covid? Seria a lesão culposa sofrida por um paciente considerada como "dano colateral" advindo de uma impossibilidade objetiva de se deferir conteúdo material à residência no transcurso da pandemia?

O cenário da responsabilidade profissional do médico é particularmente delicado quando se considera a inexistência de protocolos terapêuticos, universalmente estabelecidos, para os infectados pela covid. Tratamentos com antivirais, soro de convalescente, bem como a utilização de certos recursos - ECMO (Membrana de Oxigenação Extra Corpórea), são acessíveis para poucos. No que se refere à utilização de drogas experimentais, as limitações relacionam-se, principalmente, à necessidade do diagnóstico precoce em uma doença que se apresenta de várias formas, o que representa mais um desafio. De qualquer modo, mesmo diante da realidade de restrição da terapêutica, cabe ao médico o dever de informar sobre todas as possibilidades de tratamento considerando-se as peculiaridades do caso. De modo diverso, o médico incorrerá em responsabilidade pela falta de informação ou pelas informações prestadas de forma incorreta.

Outro desafio, observado desde a 1ª era, porém em escala exponencial e, portanto, cada vez mais relevante, é a covid longa ou Síndrome pós-covid. Após a fase aguda, identificam-se diversos efeitos debilitantes durante semanas ou meses, entretanto, manifestando-se por meio de diferentes sinais e sintomas (fadiga, dores intensas, distúrbios de coagulação, arritmia cardíaca, depressão, ansiedade, dificuldade de raciocínio, perda de memória, etc.) e, inclusive, aumentando o risco de morte. A covid longa impactará nas decisões de tratamento, reabilitação e  interação com as condições crônicas de cada paciente. Em termos de responsabilidade civil, o médico se vê diante de um diagnóstico diferenciado, por vezes de causalidade incerta, em um sistema de ambulatórios e profissionais já sobrecarregados. (clique aqui)

Paradoxalmente, a única certeza da qual dispomos hoje é a de que cada processo de responsabilidade médica se sujeitará a um desfecho diverso, dependendo da disposição do magistrado de transcender da intersubjetividade das partes para considerações mais amplas quanto ao impacto da pandemia no exercício da atividade do profissional da saúde. Em tempos nos quais demandamos de nossos médicos posturas proativas, o receio de uma condenação por uma leve negligência é um sinal verde para a difusão da medicina defensiva, que em nada contribui para o combate da pandemia.

Assim, se inviável a modulação abstrata da responsabilidade civil dos médicos pela via legislativa, para além do contexto fático e probatório de cada demanda judicial, é imperativo subsidiar magistrados com critérios objetivos que lhes permitam diferenciar as circunstâncias que remetem a um julgamento de procedência ou improcedência da pretensão de reparação civil, com escopo no art. 951 do CC ou, em última instância, o recurso ao parágrafo único do art. 944 do mesmo diploma, que dispõe sobre a redução equitativa do valor da indenização se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano. Por tudo que justificamos neste texto sobre a "emergência" da covid e a alteração das circunstâncias no exercício da medicina, há espaço para uma valoração adequada da responsabilidade civil, a partir da técnica da ponderação, - ultrapassando-se a indiferença normativa perante a situação fática - de forma a impedir que profissionais da saúde sejam severamente atingidos em seu patrimônio, quando o dano decorre de uma falha de comportamento, considerando-se a técnica profissional exigível em um cenário de exceção.

Se a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa, parece-nos que as vicissitudes da 2ª era da covid apontam para camadas adicionais de responsabilidade médica, que se agregam às anteriores. A análise de "hoje" sobre um iminente "amanhã" dos desafios impostos aos profissionais da medicina, apenas reforça o sentido de urgência do "ontem" de nossa proposta quanto à modulação da responsabilidade civil médica.

___________

1 SOUZA, Iara Antunes de, NAVES, Bruno Torquato de Oliveira, Sá, Maria de Fátima Freire de. Responsabilidade civil dos profissionais de saúde diante da Covid-19. maio 2020. Disponível aqui.
2 SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento informado: panorama e desafios. In, ROSENVALD, Nelson; MILAGRES, Marcelo. Responsabilidade civil: novas tendências. Indaiatuba: Foco. 2017, p. 480.
3 WESENDONCK, Tula. A responsabilidade civil na esfera médica em razão da covid-19. maio 2020. Disponível aqui
4 José Roberto Goldim (11) explica que "A maior diferença entre o Uso Compassivo e o Uso Off Label é o volume de conhecimento associado aos riscos com o uso da droga. O Uso Off Label, por utilizar um produto já disponível comercialmente, tem um grande volume de dados sobre segurança e tolerabilidade em outros tipos de doenças. Por sua vez, o Uso Compassivo, por ser uma droga nova, ainda em fase de experimentação, não tem muitos estudos consolidados sobre a sua segurança e tolerabilidade. O Uso Compassivo e o Uso Off Label baseiam-se na presunção de que o paciente poderá vir a ter benefício associado. Desta forma, a relação risco-benefício é diferente entre ambos tipos de usos excepcionais terapêuticos". GOLDIN, José Roberto, COVID-19 e o Uso Compassivo ou Off Label de Medicamentos, Bioética complexa. Disponível aqui

 

Nelson Rosenvald

Nelson Rosenvald

Professor do corpo permanente do doutorado e mestrado do IDP/DF. Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Associado Fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD).

Graziella Trindade Clemente

Graziella Trindade Clemente

Pós-doutora em Direitos Humanos - Centro de Direitos Humanos - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutora em Biologia Celular e Mestre em Ciências Morfológicas - Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito da Medicina - Centro de Direito Biomédico - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora da Graduação e Pós-graduação - Centro Universitário Newton Paiva; Faculdade da Saúde e Ecologia Humana; Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (IEC). Membro do IBERC. Odontóloga e advogada.

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