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Contratos de eficiência ineficientes?

Embora bem-intencionadas, inovações da nova lei de licitações sugerem dinâmica de incentivos económicos que podem distorcer e fragilizar a concorrência, resultando em menos eficiência.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Atualizado às 07:50

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Publicada em 1º de abril deste ano, a nova lei de licitações e contratos administrativos (lei 14.133/21) tem sido objeto dos mais diversos questionamentos. Neste artigo, compartilharemos impressões acerca da figura do contrato de eficiência e do maior retorno econômico como critério de julgamento.

Em artigo anterior (clique aqui), embora dedicado ao diálogo competitivo e ao PMI, já havíamos expressado certa preocupação com a forma como a legislação proposta busca modular estímulos econômicos e fazer uso da força e autoridade estatal (ius imperium) para tentar (re)equilibrar a relação negocial entre particulares e Estado.

O pano de fundo a ser considerado é o da acelerada especialização técnica que criou um abismo entre as informações técnicas detidas pelo Estado, e aquelas detidas pelas empresas, organizadas como produto e oferecidas no mercado (assimetria de informação).

Assim, tornar-se cada vez mais explícito que, para acompanhar o desenvolvimento tecnológico e aceder, como cliente, a tais produtos, os procedimentos de contratação pública tiveram de adotar feições menos ortodoxas, flexibilizando princípios que historicamente costumam ser interpretados pela doutrina e tribunais de maneira rígida.

Estando talvez entre as principais inovações da nova lei, o contrato de eficiência é definido como aquele que tem por objetivo proporcionar economia ao Estado, na forma de redução de despesas correntes, sendo a empresa contratada remunerada com base em valor percentual da economia gerada (Artigo 6º, inciso LII).

O contrato de eficiência tem por objeto a economia em si mesma, ou seja, tratar-se-á sempre de um contrato de prestação de serviços, embora sua execução possa envolver a realização de obras ou fornecimento de bens, como meros meios para alcançar este fim. Não há contrato de eficiência para compra de canetas ou construção de edifícios por exemplo, mas pode-se falar em contrato de eficiência para reduzir despesas com energia, água, ou outros recursos semelhantes.

Para servir ao contrato de eficiência, a lei criou um novo critério de julgamento, que declara vencedora a proposta que oferece o maior retorno econômico (Artigo 33). Em suas definições, a legislação deixa expresso, ainda, que a única modalidade de licitação onde será possível adotar este critério é a concorrência (Artigo 6º, XXXVIII).

A via é, portanto, bastante restrita: a modalidade da licitação tem de ser a concorrência, o critério será o do maior retorno econômico, e o contrato tem de ser, exclusivamente, o de eficiência, cujos pormenores são disciplinados no Artigo 39 da lei.

Em síntese, o novo critério permite que a empresa licitante apresente dois valores: o preço cobrado para prestar o serviço (V1), e a - estimativa - de economia que o serviço pretende gerar (V2). As propostas serão julgadas observando-se qual oferece maior retorno econômico (V2 - V1). Após a contratação, a economia gerada - de fato - servirá como base de cálculo para a remuneração da empresa.

O objetivo perseguido pelo novo instituto é viabilizar a contratação pelo Estado de soluções inovadoras que geram eficiência, criando um estímulo econômico positivo a partir do mecanismo diferenciado de remuneração e, ao mesmo tempo, mitigando o risco de que remunerar um serviço que não gere entregas concretas.

As consequências e o custo a ser suportado pela criação de mecanismo tão não-ortodoxo, contudo, ainda há de ser observado num futuro próximo. A princípio, cabe jogar luz numa distinção que parece passar desapercebida: uma coisa é lisura da competição (ex ante), outra coisa é a relação Particular-Estado pactuada no instrumento contratual (ex post).

O novo critério permite a seguinte situação: empresa A, a partir de estimativas, propõe um retorno de 500 reais; empresa B, seguindo a mesma lógica, propõe retorno de 400 reais. Julgada a licitação, empresa A sagra-se vencedora (maior retorno estimado), e durante a prestação do serviço, contudo, alcança retorno (de fato) apenas de 300 reais (inferior àquele proposto pela segunda colocada).

A primeira questão que merece reflexão é: será que se a empresa B fosse contratada ela não entregaria um retorno de 400 reais? Que garantia ou segurança é possível deter sobre o nível de precisão das estimativas apresentadas pelas licitantes? O que impede o licitante de prometer muito para entregar pouco? O que garante que a empresa A foi "ousada" ao propor 500 reais e venceu, e a empresa B, por ser mais "realista", propôs um valor mais próximo da realidade e perdeu?

Como é possível observar, ao segmentar o valor da competição (tomado com base numa estimativa), do valor da execução (tomado com base no que é entregue de fato), cria-se um incentivo perverso a que as licitantes proponham estimativas exageradamente otimistas, penalizando aquelas que adotem comportamento honesto com estimativas realistas e resultando na já conhecida seleção adversa. Sugere-se que o novo critério, portanto, ao invés de assegurar uma concorrência efetiva, finda por pulverizá-la, resultando em contratações não-ótimas para o Estado.

Ainda uma segunda e última questão que enseja reflexão é a opção pelo uso da força, da penalização, para em tese mitigar o problema apresentado acima e para, em tese, equilibrar a relação contratual.

Nos casos em que a economia obtida de fato for inferior àquela estimada na licitação e pactuada em contrato, há duas possibilidades: se a diferença estiver dentro de um limiar aceitável, haverá apenas um desconto proporcional na remuneração; se a diferença ultrapassar este limiar, outras penalidades contratuais poderão ser impostas.

Ora, primeiro há de se observar que, embora o desconto proporcional funcione como um estimulo econômico negativo, como ele só ocorre após a contratação, a injustiça cometida contra os demais licitantes não é reparada. Utilizando novamente o exemplo dado mais acima, remunerar a empresa A com base num retorno de 300 reais (ao invés dos 500 prometidos) não repara a injustiça cometida com a empresa B, que poderia ter plenas condições de gerar um retorno de 400 reais, conforme estimado.

Além disso, ao adotar a lógica da punição por não entregar resultados, a redação dada pela legislação parece contrariar a confiança e flexibilidade que estão na origem do instituto, em seu propósito. Soluções de eficiência e redução de despesas estão intrinsicamente relacionadas a tecnologia, inovação, risco, variações e ausência de precisão, por isso mesmo os valores são estimados.

Abrir margem ao Estado para punir as empresas que não assegurem com exatidão as economias "prometidas" acaba por funcionar como um estímulo negativo, levando as licitantes a adotarem comportamentos exageradamente conservadores pelo receio da punição, e proporem estimativas de retorno baixas, resultando em contratos de eficiência inferiores ao nível ótimo, ou seja, ineficientes.

Para além de demonstrar a complexidade do tema através da reflexão, as considerações ora feitas buscam demonstrar como o tema das compras públicas não deve ser analisado sem uma prudente análise econômica. Embora ousada em suas inovações e aparentemente bem-intencionada, a nova lei brasileira de licitações e contratos administrativos sugere que a tarefa de modular adequadamente estímulos jurídicos e comportamentos econômicos ainda está distante de se tornar uma realidade.

Ivson C. Araújo

Ivson C. Araújo

Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (Brasil) e pela Universidad Autónoma de Bucaramanga (Colômbia); Pós-graduado em Direito Municipal; e Mestrando em Direito e Economia pela Universidade de Lisboa (Portugal). É advogado e atua na orientação e análise de temas de direito administrativo econômico e regulatório, com destaque para os setores de energia e de transportes terrestre e aéreo. Possui experiência em leilões e contratos de concessão, atuação perante agências reguladoras, defesa em processos administrativos e temas contenciosos envolvendo Direito Público.

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