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A proteção climática como direito fundamental transgeracional na visão do TCF alemão

A consequência é que as gerações mais jovens e futuras seriam muito mais impactadas que as atuais, evidenciando uma nítida desproporcionalidade nos esforços que deverão ser exigidos de cada grupo.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Atualizado às 14:35

No final do mês de abril de 2021, o Tribunal Constitucional Federal (TCF) alemão proferiu uma decisão que impactou, consideravelmente, a pauta ambiental no país, gerando repercussão internacional. O Primeiro Senado do Tribunal decidiu que as disposições da Lei Federal sobre Alterações Climáticas, publicada em 12 de dezembro de 2019 (Klimaschutzgesetz - KSG), que fixa objetivos climáticos nacionais, assim como os montantes anuais de emissões permitidos até 2030, são incompatíveis com os direitos fundamentais. Para muitos, essa decisão representa uma grande vitória na pauta ambiental, tema sempre objeto de muita influência na política alemã e europeia.

Na prática, o TCF obriga a Alemanha a fazer mais para proteger o clima, em relação ao que fora aprovado pelo Parlamento. A decisão se apoia em um argumento muito interessante, de que é possível derivar da Lei Fundamental (LF) um direito fundamental de proteção à liberdade de natureza transgeracional, que se expressa por meio de garantias intertemporais de liberdade (intertemporale Freiheitssicherung).

Como será demonstrado pela transcrição dos fundamentos sustentadores da decisão, a inconstitucionalidade de dispositivos da lei de proteção do clima deriva da falta de proporcionalidade de suas regulamentações, no instante em que o legislador se omitiu de distribuir proporcionalmente as metas de redução de emissões ao longo dos anos, fixando-se apenas no ano de 2030, como marco.

A questão é que se até 2030 pouco for feito em relação à meta final de 2050, fica claro que a partir de 2031, o corte das emissões e os encargos dela decorrentes aumentariam, significativamente. A consequência é que as gerações mais jovens e futuras seriam muito mais impactadas que as atuais, evidenciando uma nítida desproporcionalidade nos esforços que deverão ser exigidos de cada grupo. A falha da lei estaria, portanto, na omissão em regulamentar um plano escalonado, mais detalhado, de redução das omissões, de modo a mitigar o pesado ônus dela decorrente entre as diferentes gerações.

Lei de Proteção do Clima foi aprovada pelo Parlamento alemão e confirmada pelo Conselho Federal em dezembro de 2019, no curso de um pacote de medidas de iniciativa do governo Alemão para combater alterações climáticas. Dentre as várias medidas introduzidas pela lei, destaca-se a obrigação assumida pela Alemanha de, obrigatoriamente, reduzir as emissões de gases com efeito estufa em 55% até 2030, em comparação com os níveis de 1990, por meio de metas anuais definidas de forma setorial, prosseguindo o objetivo a longo prazo de neutralidade das emissões até 2050.1

Em que pese se tratar de meta ambiciosa, ela não contou com aplausos gerais no país. Muitos ambientalistas afirmaram que as medidas aprovadas pelo Parlamento não eram suficientes para que o país cumprisse, na íntegra, as obrigações assumidas em 2015 no Acordo de Paris,2 sobretudo pelo fato de o pacote centrar suas considerações na elevação do preço atribuído às emissões de CO2, como estratégia para desestimular a produção de efeitos prejudiciais ao meio ambiente, em detrimento de ações complementares, mais efetivas. Na visão dos críticos, o pacote climático, no modo como foi aprovado, não se mostra capaz de reduzir as emissões de CO2 da Alemanha em patamar suficiente para que o compromisso ambiental seja cumprido.3 Na Europa, em particular na Alemanha, o tema da proteção ambiental não costuma ficar livre de grandes polêmicas.

As reclamações constitucionais foram apresentadas por um grupo de nove pessoas, na sua maioria jovens (alguns, inclusive, residentes em outros países), apoiados por diversas associações ambientais.O requerimento de inconstitucionalidade baseava-se no fato de que a norma não avançaria longe, o suficiente, para reduzir as emissões de gases com efeito estufa e limitar as alterações climáticas. Consequentemente, ao se mostrar incapaz de frear os efeitos danosos das alterações climáticas, surgiria uma violação ao direito fundamental a um futuro em conformidade com o dever de intangibilidade da dignidade humana e ao direito fundamental ao chamado mínimo existencial ecológico (ökologisches Existenzminimum).

Na visão do TCF, não se pode verificar que o legislador, ao introduzir estas disposições, tenha violado o seu dever constitucional de proteger os autores das reclamações constitucionais dos riscos das alterações climáticas, ou que não tenha cumprido a obrigação decorrente do art. 20a da LF5 de tomar medidas climáticas. No entanto, as disposições contestadas violam as liberdades dos requerentes, alguns dos quais são ainda muito jovens.

O TCF parte do pressuposto de que as disposições legais impõem, irreversivelmente, grandes encargos de redução de emissões em períodos posteriores a 2030. Esse objetivo climático, que decorre do art. 20a da LF, é definido com base no acordo de Paris, cuja meta é limitar o aumento da temperatura média global a muito menos de 2°C e de preferência a 1,5°C acima dos chamados níveis pré-industriais. Para que esse objetivo seja alcançado, as reduções que serão ainda necessárias após 2030, terão de ser alcançadas com cada vez maior rapidez e urgência. Foi justamente essa espécie de estrangulamento de prazos, para o cumprimento das metas climáticas, que levou o TCF a reconhecer a inconstitucionalidade de parte das regulamentações.

Isso porque essas obrigações futuras de reduzir as emissões têm um impacto em quase todos os tipos de liberdade, porque praticamente todos os aspectos da vida humana contemporânea ainda envolvem a emissão de gases com efeito estufa. Significa dizer que tais comportamentos, hoje considerados usuais, passarão a ser potencialmente ameaçados por meio das metas de restrições drásticas de emissões de poluentes, após 2030. Por conseguinte, o legislador deveria ter tomado medidas de precaução para mitigar esses grandes encargos ao longo dos anos, a fim de salvaguardar a liberdade garantida pelos direitos fundamentais.

Na prática, as normas sobre o ajustamento da via de redução das emissões de gases com efeito estufa a partir de 2031 não são suficientes para assegurar que a transição necessária para a neutralidade climática seja alcançada a tempo. Com base nessa conclusão, o TCF determinou que o legislador alemão deva promulgar novas regulamentações até 31 de dezembro de 2022, com a finalidade de especificar mais pormenorizadamente como os objetivos de redução das emissões devem ser ajustados para períodos posteriores a 2030. A omissão do legislador em estabelecer regulamentações mais seguras, estabelecendo ônus proporcionais entre as gerações presentes e futuras, no que toca aos esforços de preservação do clima, foi o cerne do argumento de inconstitucionalidade.

Ao decidir pela inconstitucionalidade parcial do pacote do clima, o TCF fez as seguintes ponderações, divididas em 21 pontos básicos.

1. O direito fundamental de proteção à vida e à inviolabilidade corporal engloba a proteção contra os danos causados pela poluição ambiental, independentemente de quem ou de que circunstâncias são a fonte desses danos. O dever de proteção do Estado que decorre da LF também engloba o dever de proteger a vida e a saúde contra os riscos colocados pelas alterações climáticas, incluindo eventos meteorológicos extremos relacionados com o clima. Além disso, pode dar origem a um dever objetivo de proteger as gerações futuras. Considerando que as alterações climáticas também podem resultar em danos a bens individualmente considerados, o direito fundamental à propriedade impõe igualmente ao Estado um dever de proteção, no que diz respeito aos riscos causados pelas alterações climáticas.

2. Considerando a margem de manobra que a LF confere ao legislador no cumprimento desses deveres de proteção, não se pode verificar, apenas sob a perspectiva da configuração legislativa, uma violação de tais deveres. Isso porque a estratégia de proteção adotada pelo legislador persegue o objetivo da neutralidade climática, não se mostrando manifestamente inadequada para proporcionar a defesa contra os riscos das alterações climáticas, proteção exigida pelos direitos fundamentais.

3. Pode ficar em aberto neste momento se os deveres de proteção decorrentes dos direitos fundamentais também obrigam a Alemanha, em benefício dos requerentes que vivem no exterior, a tomar medidas contra os danos causados pelas alterações climáticas globais.

4. Os direitos fundamentais são violados pelo fato de os montantes de emissão permitidos até 2030, ao abrigo da lei de proteção do clima, reduzirem substancialmente as restantes opções de diminuição das emissões após 2030, pondo, assim, em risco praticamente todo o tipo de liberdade protegida pelos direitos fundamentais. Com isso, o TCF entendeu que a lei prevê um plano de redução de emissões até 2030, mas deixa em aberto como as metas restantes, até 2050, seriam atingidas, adiando, assim, o alto ônus relativo ao compromisso de redução da poluição ambiental para o período pós 2030. Consequentemente, as gerações mais jovens e futuras seriam muito mais impactadas que as atuais, pelos esforços coletivos necessários ao cumprimento das metas ambientais.

5. Como garantias intertemporais de liberdade (intertemporale Freiheitssicherung), os direitos fundamentais protegem os indivíduos contra uma ameaça abrangente à liberdade, transferindo unilateralmente para o futuro o ônus da redução de emissões com efeito estufa imposto pelo art. 20a da LF. Ao legislador caberia a adoção de precauções para assegurar uma transição de preservação da liberdade para a neutralidade climática, medidas que até agora não foram efetivadas.

6. As disposições contestadas na lei têm efeito de uma intervenção antecipada (eingriffsähnliche Vorwirkung) sobre a liberdade protegida pela LF. As possibilidades de exercer essa liberdade de formas que direta ou indiretamente envolvam emissões de CO2 esbarram nos limites constitucionais. Isso porque, na perspectiva atual, as emissões de CO2 contribuem para o aquecimento global de uma forma em grande parte irreversível. Sem embargo, não é dado ao legislador, por fundamentos constitucionais, aceitar uma alteração climática em progresso ad infinitum, sem tomar medidas efetivas.

7. As disposições legais que na atualidade permitem as emissões de CO2 constituem uma ameaça irreversível à liberdade futura, porque com cada quantidade de CO2 que hoje é permitida, se reduzem as possibilidades restantes de emissão em conformidade com o Artigo 20ª da LF. Consequentemente, qualquer exercício de liberdade que envolva emissões de CO2 estará sujeito a restrições cada vez mais intensas, também exigidas pela ordem constitucional. Vale dizer: o ônus imposto às gerações futuras é muito mais intenso em relação às atuais, o que caracteriza uma desproporcionalidade nos esforços de cada grupo. Na prática, as gerações presentes são muito menos impactadas que as futuras, no que tange aos esforços e privações que a preservação do clima exige.

8. É verdade que qualquer exercício de liberdade envolvendo emissões de CO2 teria que ser essencialmente proibido em algum momento para frear as alterações climáticas, porque o aquecimento global só pode ser evitado se as concentrações antropogênicas de CO2 na atmosfera pararem de aumentar. Todavia, um consumo extensivo do orçamento (cota) de CO2 já em 2030 agrava o risco de grave perda de liberdade, porque reduz o tempo disponível para desenvolvimentos tecnológicos e sociais que poderiam ser utilizados para fazer uma transição de um estilo de vida, que ainda hoje está amplamente associado às emissões de CO2, para um comportamento neutro do ponto de vista climático, de uma forma que respeite a liberdade.

9. O artigo 20a da Lei Fundamental obriga o Estado a proteger o meio ambiente e visa a alcançar a neutralidade climática. A proteção climática não tem precedência incondicional sobre outros interesses, mas deve ser equilibrada com outros bens e princípios constitucionais em caso de conflito. Entretanto, considerando que na situação atual as mudanças climáticas são consideradas quase inteiramente irreversíveis, qualquer comportamento que conduza a uma extrapolação do limiar crítico da temperatura para alcançar o objetivo de proteção do clima nos termos constitucionais, só seria justificável sob pressupostos estritos, como, por exemplo, para efeitos de proteção dos direitos fundamentais. Nesse contexto, o peso relativo ao mandamento de proteção do clima na ponderação aumenta ainda mais, à medida que as alterações climáticas se intensificam.

10. A obrigação de proteção do clima nos termos do Art. 20a da LF não é invalidada pelo fato de o clima e o aquecimento global serem fenómenos globais e de os problemas das alterações climáticas não poderem, portanto, ser resolvidos pelas contribuições de proteção climática de um só Estado. A incumbência de proteção climática do Artigo 20a da LF tem uma dimensão internacional especial. Ela obriga o Estado a buscar uma solução para o problema da proteção climática justamente em âmbito supranacional. O Estado não pode fugir à sua responsabilidade, ao apontar para as emissões de gases com efeito estufa em outros Estados. Pelo contrário, a dependência específica da comunidade internacional dá origem à necessidade constitucional de implementar as suas próprias medidas de proteção climática no âmbito interno e de não criar incentivos para que outros Estados minem a cooperação necessária.

11. O art. 20a da LF é uma norma jurídica justiciável, destinada a vincular o processo político a favor dos interesses ecológicos, tendo também em vista as gerações futuras que serão particularmente afetadas.

12. O legislador possui um espaço para tomada de decisões (Entscheidungsspielraum). No entanto, não é inteiramente livre ao ponto de preencher esse espaço conforme sua mera discricionariedade política. Se houver incerteza científica inerente às relações causais de relevância ambiental, o art. 20a da LF impõe um dever especial de cuidado (Sorgfaltspflicht) ao legislador. Consequentemente, têm que ser levadas em conta as indicações já seguras acerca das possibilidades de lesões graves ou irreversíveis ao clima.

13.  Neste momento, não pode ser verificada qualquer violação do dever de cuidado acima mencionado. É verdade que, devido a esse dever, as estimativas do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) sobre a dimensão do restante do orçamento global de CO2 devem ser levadas em consideração, muito embora envolvam incertezas. Contudo, dadas as dúvidas atualmente envolvidas no cálculo do orçamento remanescente, tal violação não é suficientemente extensa para ser considerada censurável pelo TCF ao abrigo do direito constitucional.

14. Assim, alguns dispositivos da lei de proteção clima6 não satisfazem o requisito decorrente do princípio da proporcionalidade, de que as reduções das emissões de CO2 ao ponto da neutralidade climática, que são constitucionalmente exigidas nos termos do art. 20a da LF, sejam distribuídas ao longo do tempo, de forma prospectiva, a fim de respeitar os direitos fundamentais.

15. Consequentemente, não se deve permitir que uma geração consuma uma grande parte do orçamento de CO2, suportando uma carga relativamente menor do esforço de redução, se isso tiver como consequência deixar as gerações futuras com uma carga de redução drástica e expor as suas vidas a perdas abrangentes de liberdade. Em algum momento no futuro, mesmo perdas graves de liberdade podem ser consideradas proporcionais e justificadas ao abrigo do direito constitucional, a fim de evitar as alterações climáticas. É precisamente por esta razão que se dá origem ao risco de ter que se aceitar perdas consideráveis de liberdade. No entanto, uma vez que as atuais regulamentações sobre as quantidades de emissões permitidas já estabeleceram um caminho para futuros ônus sobre a liberdade, os impactos na liberdade futura devem ser proporcionais do ponto de vista da atualidade.

16. Além disso, a tarefa de proteção objetiva decorrente do art. 20a da LF abrange a necessidade de tratar os fundamentos naturais da vida com tal cuidado e de os deixar em tal condição, que as gerações futuras que desejem continuar a preservar esses fundamentos não sejam forçadas a empenhar-se ao preço de privações radicais.

17. Os esforços exigidos pela LF para reduzir as emissões de gases com efeito estufa após 2030 serão consideráveis. Do ponto de vista atual, é impossível determinar se serão tão drásticos ao ponto de acarretar lesões inexigíveis aos direitos fundamentais. No entanto, o risco de violações graves é elevado e só pode ser conciliado com os direitos fundamentais de liberdade que serão potencialmente afetados no futuro, se forem tomadas medidas de precaução para gerir os esforços de redução previstos após 2030, de modo a que se respeitem os direitos fundamentais. Isso também exige que a transição para a neutralidade climática seja iniciada em tempo hábil.

18. Em termos concretos, é necessário formular especificações transparentes para uma maior configuração da redução de gases com efeito estufa em uma fase inicial, que forneçam orientações para os processos de desenvolvimento e implementação necessários e lhes transmitam um grau suficiente de pressão de desenvolvimento e certeza de planejamento.  Aqui, é imperativo, nos termos da LF, que sejam definidas antecipadamente novas medidas de redução para o período pós-2030, estendendo-se suficientemente para o futuro. Além disso, devem ser fixadas outras quantidades anuais de emissões e medidas de redução com tal detalhamento, a fim de que proporcionem uma orientação suficientemente concreta.

19. O legislador regulamentou a atualização da via de redução das emissões com efeito estufa de uma forma que é insuficiente nos termos do direito constitucional. Embora não se possa exigir que as quantidades de emissões decrescentes já estejam definidas com precisão desde o momento atual, até a data prevista para alcançar a neutralidade climática em 2050, é insuficiente que o Governo Federal seja obrigado a elaborar um novo plano, de uma só vez, em 2025, por meio de decreto regulamentar. Pelo contrário, seria pelo menos necessário especificar os intervalos em que os novos planos devem ser elaborados de forma transparente. Além disso, nos termos do procedimento estabelecido na lei, não é garantido que a próxima via de redução possa ser identificada em tempo hábil. Já parece duvidoso que o primeiro plano atualizado destinado a estabelecer os montantes anuais de emissões para períodos posteriores a 2030, seja elaborado, tempestivamente, em 2025.

20. Se o legislador continuar a confiar no envolvimento de uma autoridade executiva para emitir decretos, terá de impor especificações mais abrangentes a essa autoridade. Em particular, o legislador terá de colocar a autoridade sob a obrigação de apresentar um primeiro plano atualizado antes de 2025, ou, pelo menos, adotar as regulamentações pertinentes em uma data significativamente anterior, especificando até que ponto os planos para 2025 se devem prolongar no futuro. Se o legislador assumir a tarefa completa de atualizar a via de redução das emissões, ele próprio deverá regular todos os aspectos necessários em tempo hábil, estendendo-se suficientemente para o futuro. Ou seja, o legislador deverá, em qualquer caso, determinar a dimensão das quantidades anuais das emissões a serem fixadas para períodos posteriores a 2030, ou fornecer especificações mais detalhadas para a sua definição pela autoridade executiva responsável pela emissão dos decretos regulamentares.

Esses 20 pontos, que agregam os fundamentos sustentadores da decisão, deixam claro que, na prática, o TCF assegurou que as metas de redução das emissões até 2050 sejam divididas em objetivos de redução concretos para cada ano isoladamente considerado, entre 2022 e 2050.

Do ponto de vista da separação dos poderes, significa uma repreensão direta e clara por parte do TCF ao desenvolvimento legislativo de proteção do clima. O recado foi claro: a regulamentação legal é insuficiente para a redução das emissões a partir de 2031. Nesta linha, o TCF apelou ao legislador para que regulamente os objetivos de redução das emissões de gases com efeito estufa após 2030, de forma mais detalhada até o final de 2022. Do ponto de vista do controle de constitucionalidade, trata-se da figura do apelo ao legislador para que adote medidas corretivas, dentro do que o direito constitucional alemão denomina de dever de aperfeiçoamento (Nachbesserungspficht) legislativo.

A fundamentação em torno da existência de um direito fundamental de proteção à liberdade de natureza transgeracional, que se expressa por meio de garantias intertemporais de liberdade, evidencia uma forma peculiar de se conceber a própria teoria da representação política. Isso porque não é dado a um grupo, ainda que democraticamente eleito para representar a coletividade presente, tomar decisões que venham a onerar as gerações futuras, de modo desproporcional, em matéria de proteção ao meio ambiente. Dito de outro modo, a obrigação de proteger as gerações futuras impõe consideráveis freios à própria liberdade de conformação legislativa.

É claro que a decisão animou não apenas os autores das queixas constitucionais, como também os ambientalistas em geral. Se o Governo Federal guarda igual entusiasmo, sobretudo em ano de eleições gerais federais, é outra questão.

Por fim, considerando que a Constituição Brasileira também prevê a proteção do meio ambiente como um dever fundamental para as presentes e futuras gerações,7 os fundamentos da decisão do TCF alemão também podem ser reconduzidos à nossa realidade constitucional, motivo pelo qual merecem ser estudados, com atenção. Há muito o que fazer no Brasil em matéria de proteção do meio ambiente. Aprofundar e fortalecer a aplicação do direito constitucional em favor da pauta ambiental, é um bom caminho a ser trilhado.

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1 Clique aqui.

2 Ao abrigo do Acordo de Paris, em vigor desde 4/11/16, vários governos, incluindo o da Alemanha, comprometeram-se a tomar medidas efetivas para conter o aumento da temperatura global bem abaixo dos 2 graus Celsius.

4 1 BvR 2656/18, 1 BvR 96/20, 1 BvR 78/20, 1 BvR 288/20, 1 BvR 96/20, 1 BvR 78/20, julgados em bloco em 24/3/21, decisão anunciada em 29/4/21. Disponível clicando aqui.

5 Art. 20a da LF (proteção dos recursos naturais vitais): "Tendo em conta também a sua responsabilidade frente às gerações futuras, o Estado protegerá os recursos naturais vitais e os animais, no marco da ordem constitucional, por meio da legislação e de acordo com a lei e o direito, por meio dos poderes executivo e judiciário".

6 A saber, § 3(1) segunda frase e § 4(1) terceira frase, em conjunção com o Anexo 2 da KSG.

7 Art. 225 CF. "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

Marcelo Schenk Duque

Marcelo Schenk Duque

Doutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed. Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha. Professor do programa de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFRGS; Pesquisador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA). Professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul - ESMAFE/RS, onde exerce a coordenação da matéria de direito constitucional; Professor de diversos cursos de Pós-graduação lato sensu da UFRGS, PUC/RS, FESDEPRS, FMP, dentre outros. Professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Membro da Associação Luso-Alemã de Juristas: DLJV - Deutsch-Lusitanische Juristenvereinigung.

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