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O poder normativo da Anvisa e a (não) deferência institucional do STF: Perspectivas à luz da ADIn 4954

É considerável notar que a Suprema Corte adotou, de forma favorável, mesmo em nível simplificado, a análise de custo-benefício ao asseverar pelas desvantagens causadas pela norma regulatória na atividade econômica.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Atualizado às 18:28

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em sessão de julgamento realizada no dia 20 de agosto de 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, por unanimidade, nos termos do Ministro Relator Marco Aurélio Mello, improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 4954, que teve como objeto a lei 2.149/09 do Estado do Acre.1 Tal norma disciplina o comércio varejista de artigos de conveniência em farmácias e drogarias.

Na ocasião, o Procurador-Geral da República, ora requerente, compreendeu pela contrariedade da legislação estadual aos seguintes dispositivos normativos: o artigo 24, inciso XII, § 1º e § 2º, da Constituição de 1988; o artigo 6º, caput e 196 da Carta Federal; a lei 9.782, de 1999 (atribui à Agência Nacional de Vigilância Sanitária a competência de normatizar, fiscalizar e controlar produtos que se associam à saúde e de autorizar o funcionamento de farmácias).

Por último, a mais relevante para análise, a Resolução 173 de 2003 da Anvisa que estabelece a proibição da venda de artigos de conveniência em drogarias, sendo estas permitidas a comercializarem apenas drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e afins. Diante desse contexto jurídico, na perspectiva do parquet, houve usurpação de competência, a qual seria da União. A lei estadual restaria, assim, inválida por ferir a vigente ordem constitucional.

Nesse sentido, ao proferir seu voto sobre a questão da competência normativa e a atuação da agência reguladora, o Ministro Relator apontou que a referida Resolução RDC 173 da Anvisa representou um ineditismo infralegal marcado pela ofensa ao princípio da legalidade.2 Por isso, o Estado do Acre poderia editar lei regulando o comércio daqueles produtos, pois a Carta de 1988 atribuiu a competência legislativa suplementar aos estados-membros. Logo, pelo fato da legislação estadual não tratar de matéria de proteção e defesa da saúde, a atuação da agência por meio do instrumento regulatório - não aplicável à controvérsia - foi considerada, acertadamente, irrazoável.

Em outro momento, houve uma positiva e oportuna consideração acerca do papel da regulação efetuada pelas agências, assim, o poder normativo, em sede constitucional, não se revela uma força legiferante, mas tão somente um meio de pormenorização dos direitos e deveres das pessoas. Nessa conjuntura, é válido destacar os ensinamentos do artigo "Interpretation and Institutions" de Cass R. Sunstein e Adrian Vermeule. Os autores - ao tratarem como os tribunais devem abordar as agências reguladoras e suas respectivas interpretações sobre o direito - entendem que estas devam ser mantidas se forem razoáveis e não contradizerem as instruções claras do Congresso. Desse modo, os tribunais não estariam autorizados a rejeitar a interpretação da agência pela simples discordância.3

Tal referencial teórico é relevante para a análise da ADIn 4954. A regulação traduzida na Resolução 173 da Anvisa expressa uma situação nada condizente com a realidade social, marcada pela liberdade de atividade econômica em um contexto de concorrência. Com isso, ainda que a norma reguladora tenha sido editada para a proteção e defesa da saúde, revelou-se apartada desse escopo. Em virtude da falta de razoabilidade, o poder normativo da agência se esvaziou, favorecendo, assim, a oposição do STF à interpretação extraída daquele preceito normativo.

Em conclusão às observações da decisão colegiada, é considerável notar que a Suprema Corte adotou, de forma favorável, mesmo em nível simplificado, a análise de custo-benefício ao asseverar pelas desvantagens causadas pela norma regulatória na atividade econômica e com possíveis efeitos em termos de desemprego e bem-estar da população e nenhuma vantagem, por sua vez, na proteção à saúde.

Este panorama fundamenta-se na ideia de Cass R. Sunstein em outro artigo de sua autoria "Cost-Benefit Analysis, Who's Your Daddy?" quando o autor americano expressa que "em princípio, a análise de custo-benefício é mais bem defendida como a forma mais administrável de capturar os efeitos das políticas sobre o bem-estar (incluindo regulações)".4 Nessa perspectiva, em convergência ao pensamento de Mariano-Florentino Cuéllar e Jerry Louis Mashaw no artigo "Regulatory Decision-Making and Economic Analysis", depreende-se que os agentes reguladores possuíam orçamentos para quanto poderiam gastar com pessoal, laboratórios, pesquisa, mas não tinham orçamentos restringindo os custos que poderiam impor aos regulados, e à economia como um todo.5 Por isso, com base nos extratos teóricos acima, a Resolução 173 da ANVISA incidiu de maneira desproporcional na atividade econômica. Os reguladores desta agência, apesar da expertise e tecnicidade, não se atentaram aos efeitos dinâmicos que a regulação poderia proporcionar em termos sistêmicos, evidenciando, portanto, dois problemas: a falta de legitimidade democrática na tomada de decisão pela falta de diálogos com a sociedade civil e o deslize na persecução do interesse público, qual seja a proteção e defesa da saúde da população brasileira.

Diante do que foi exposto, percebe-se que as discussões sobre a qualidade regulatória perpassam pelas relações institucionais e, por conta desse cenário, não necessariamente as melhores respostas aos anseios populares, em termos de bem-estar coletivo, acontecerão pela ingerência de uma agência reguladora com seus respectivos instrumentos normativos. Dessa maneira, revela-se indispensável o devido empenho dos atores institucionais pela efetivação da análise de custo-benefício na qualidade de estratégia regulatória, pois este método leva em consideração as circunstâncias de lucros e prejuízos de forma calculada e estimada. Por fim, é notável assinalar que as relações entre Poder Judiciário, agências e Poder Legislativo são compreendidas na medida da sua complexidade, e as interpretações que porventura possam surgir deverão levar em conta as questões das capacidades institucionais de modo a se verificar a posteriori a melhor solução possível para os problemas da realidade social.

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1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.4954, do Plenário. Autor: Procurador-Geral da República. Intimado: Assembleia Legislativa do Estado do Acre. Brasília, 20 de agosto de 2014. Disponível clicando aqui. Acesso em: 23 jan. 21. Resolução 173 da Anvisa Disponível clicando aqui.

2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.4954, do Plenário. Autor: Procurador-Geral da República. Intimado: Assembleia Legislativa do Estado do Acre. Brasília, 20 de agosto de 2014. Disponível clicando aqui. Acesso em: 23 jan. 2021. p. 14.

3 SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. Chicago Public Law and Legal Theory Working Paper Series, Nº 28, 2002. p.31. Disponível em SSRN: clique aqui.

4 Tradução do autor. SUNSTEIN, Cass. Cost-Benefit Analysis, Who's Your Daddy?. Journal of Benefit-Cost Analysis. 2016. p. 3. Disponível clicando aqui.

5 CUÉLLAR, Mariano-Florentino; MASHAW, Jerry Louis. Regulatory Decision-Making and Economic Analysis. Stanford Law and Economics Olin Working Paper No. 525, Stanford Public Law Working Paper. 2016. p. 8. Disponível em SSRN: clique aqui  ou aqui.

Lucas Ferreira Barros

Lucas Ferreira Barros

Graduando em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/FND). Bolsista de Iniciação Científica (CNPQ/PIBIC/UFRJ) com projeto de pesquisa relacionado à atuação das agências reguladoras.

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