MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Migalhas de peso >
  4. A oneração excessiva do consumidor e a nova política de cancelamento, reembolso e remarcação de passagens aéreas na pandemia

A oneração excessiva do consumidor e a nova política de cancelamento, reembolso e remarcação de passagens aéreas na pandemia

A política instituída pela lei 14.034/20 onerou excessivamente o consumidor ao transferir-lhe os efeitos e o risco da operação do setor de transporte aéreo doméstico brasileiro.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Atualizado às 14:23

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus trouxe para o âmbito do direito diversos impactos, que foram sentidos em todas as áreas de atuação. No âmbito do direito do consumidor, em específico, os operadores do direito encontram um novo desafio.

A forma de se consumir mudou, agora as plataformas virtuais ganharam ainda mais importância, as prioridades de consumo também foram alteradas, vê-se uma tendência muito mais consciente e orgânica de consumo, seja pela crise que atravessa o país, seja pelos novos paradigmas da vida pós-pandemia.

Dentre todos os reflexos sentidos, a nova política de cancelamento, reembolso e remarcação de passagens aéreas em tempos de pandemia, instituída pela Medida Provisória 925/20, convertida na lei 14.034/20, merece um olhar mais crítico.

A referida legislação que institui medidas emergenciais para atenuar os efeitos da crise decorrente da pandemia ocasionada pelo covid-19 surge como resposta aos reclamos da aviação civil brasileira, que sofreu grande impacto econômico com as medidas de isolamento social instituídas pelas autoridades sanitárias mundiais, fechamento de fronteiras, lockdowns, etc.

Basicamente, a lei publicada em 05 de agosto de 20, prevê condições especiais para o reembolso, cancelamento e remarcação das passagens aéreas marcadas no período compreendido entre 19 de março de 20 a 31 de dezembro de 20.

Para os voos cancelados em decorrência da pandemia, a companhia aérea possui o prazo de até 12 meses contados da data do voo para efetuar a devolução do valor pago, observadas a atualização monetária, com base no índice INPC, permanecendo, ainda, o dever de prestar assistência material ao consumidor e a realocação, nos termos da Resolução 400, da ANAC.

Já para os casos em que foi o consumidor quem desistiu do voo marcado para o mesmo período e que pretende o reembolso do valor pago, a devolução do valor também pode ser postergada por 12 meses, porém o consumidor ainda estará sujeito ao pagamento de eventuais penalidades contratuais.

Ainda, é dado ao consumidor, em qualquer caso, seja quando houver o cancelamento do voo em decorrência da pandemia ou quando houver a desistência do voo, a opção de ficar com créditos para utilização, no valor maior ou igual ao da passagem comprada, a ser utilizado em nome próprio ou de terceiro, em até 18 meses a partir do seu recebimento.

Apesar de parecerem inofensivas, as disposições, na prática, possuem reflexos imensos no direito dos consumidores.

Conforme é sabido, o objetivo central do direito consumerista é tentar equilibrar a relação consumista que naturalmente é desigual, ao passo que o consumidor sempre se encontra em uma situação de vulnerabilidade perante o fornecedor de serviços, "pelo simples fato de lhe ser imposta a necessidade de adquirir produtos e serviços, nos modelos, opções e condições impostas por fornecedores", conforme palavras de Iuri Ribeiro Novais dos Reis1.

Porém, neste paradigma de pandemia, o consumidor deixa de ser apenas vulnerável e torna-se hiper vulnerável, sendo que a sua proteção deve - ou pelo menos deveria - ser redobrada e ganhar atenção especial de políticas públicas em decorrência da elevação do risco de consumo que se vivencia neste mundo pandêmico, conforme é a conclusão obtida por Adrianna de Alencar Setubal Santos e Fernando Antônio de Vasconcelos2.

Como própria consequência do princípio da vulnerabilidade, é vedado pela ordem de defesa do consumidor a oneração excessiva desse na relação, bem como a transferência do risco da operação do fornecedor.

Ocorre que, a partir da política instituída pela lei 14.034/20, o que se observa é que, na tentativa de se amenizar os efeitos da crise econômica vivenciada pela aviação civil brasileira em decorrência da pandemia vivenciada, transferiu-se ao consumidor parcela importante desses efeitos e, por consequência, parcela importante do risco da atividade exercida pelas companhias aéreas.

Sabe-se que o que vem sendo vivenciado desde 2020 é uma situação excepcional, que não poderia ser prevista pelas companhias aéreas, pelos consumidores, pelas entidades governamentais e assim por diante. Entretanto, analisando a ordem de defesa do consumidor, tem-se que a regra de responsabilização objetiva se torna um vetor para imputar ao fornecedor a responsabilidade por qualquer dano causado ao consumidor que se ligue ao risco da atividade exercida. Assim, esse risco da operação deve abranger, inclusive, aquilo que não lhe é previsto, como a paralização dos serviços prestados pelas companhias aéreas, que se arriscaram nesse ramo.

Ainda que não seja esse o entendimento majoritário acerca do tema, não é plausível que os efeitos causados pela pandemia no setor do transporte aéreo doméstico brasileiro sejam transferidos ao consumidor, pois esse além de ser a parte vulnerável - agora hiper vulnerável - também é imensamente inferior economicamente.

Nada obstante, ainda cabe a reflexão no sentido de que, além do risco estar sendo transferido aos consumidores, esses também vêm arcando com os prejuízos em seu poder de compra, em decorrência da grave crise que ultrapassa o país, que tem previsão de ser o 14a país com maior taxa de desemprego do mundo3, sem contar as disposições permissivas de redução salarial que também foram aprovadas no ano de 2020 e novamente agora no corrente ano.

Dessa forma, conclui-se que na tentativa de atender uma demanda urgente de um setor econômico de grande importância em nosso país, os consumidores brasileiros vêm sendo excessivamente onerados com as condições impostas pela lei 14.034/20 e há o esvaziamento dos objetivos da legislação consumerista.

Talvez as consequências das disposições não tenham sido bem avaliadas na ânsia de entregar ao lobby uma resposta satisfatória? Parece-me difícil. Ainda mais diante de tantas medidas de supressão de direitos que vêm sendo tomadas sob a justificativa de "estado de emergência".

Sem aprofundar muito mais a crítica, para os estudiosos juristas outras soluções poderiam ter sido implementadas na tentativa de amenizar os impactos da pandemia na economia que não a transferência dos efeitos fatais ao elo mais fraco das relações, o consumidor. Até porque, sem o consumidor e o seu poder de compra a economia não subsistirá.

________________

1 REIS. Iuri Ribeiro Novais dos. O princípio da vulnerabilidade como núcleo central do Código de Defesa do Consumidor. Revista dos Tribunais. Vol. 956/15, p. 89-114, junho 2015. DTR\15\7813.

2 SANTOS. Adriana de Alencar Setubal. VASCONCELOS. Fernando Antônio de. Novo Paradigma da vulnerabilidade: uma releitura a partir da doutrina. Revista dos Tribunais. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 116/2018. P. 19-49. Mar-abr/18. DTR\18\12690.

Nicolle Kopp Keller

Nicolle Kopp Keller

Servidora pública comissionada do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - TJPR. Bacharela em Direito pela FAE - Centro Universitário. Pós-graduanda em Direito do Consumidor pela Escola Superior da Advocacia - ESA.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca