MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. A criminalização do stalking e a proteção da mulher no contexto jurídico-social brasileiro

A criminalização do stalking e a proteção da mulher no contexto jurídico-social brasileiro

Dispositivos de proteção para a mulher, bem como definir as formas de violência existentes nesse contexto - até porque, como bem se sabe, não se trata apenas de coibir a violência física, mas sim toda e qualquer modalidade de violência que possa se dar em face da mulher.

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Atualizado às 12:53

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A violência contra as mulheres não é um assunto recente, tampouco algo novo no cenário mundial. Há séculos, o machismo socialmente enraizado em diversos países contribuiu para a colocação da mulher, na sociedade, em uma posição de subordinação, como alguém de menor importância e relevância no contexto social e, principalmente, como um ser carente de qualquer proteção estatal.

Com o passar do tempo - finalmente -, a luta em busca da igualdade de tratamento de gênero foi pauta de diversos movimentos sociais, que culminaram em conquistas históricas e muito necessárias - desde o direito de voto até a realidade atual, em que mulheres ocupam cargos de extrema representatividade e buscam, incessantemente, pela igualdade de direitos e deveres.

No âmbito jurídico, a questão da violência contra a mulher foi abordada como foco principal em 1994, na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará, a qual foi responsável por estabelecer dispositivos de proteção para a mulher, bem como definir as formas de violência existentes nesse contexto - até porque, como bem se sabe, não se trata apenas de coibir a violência física, mas sim toda e qualquer modalidade de violência que possa se dar em face da mulher.

Outros diplomas internacionais também abordam, ainda que de modo indireto, a proteção da mulher, o que demostra o reconhecimento desta como vítima de inúmeros delitos e merecedora de uma proteção especial. A partir disso tem-se, então, a tentativa supranacional de serem estabelecidos mecanismos que, de algum modo, visem à proteção das vítimas do gênero feminino.

Nesse contexto, constata-se que a visão das mulheres como socialmente vulneráveis e inferiores, em realidade, se dá como um resultado dos padrões sociais (e machistas) historicamente impostos. A colocação da mulher em posição de subjugação, subordinação, levou a uma aceitação social da violência de gênero, principalmente no âmbito doméstico. Nessa seara, tem-se a necessidade de criminalização de condutas que atentem contra a liberdade, intimidade e a dignidade das mulheres, a fim de protegê-las eficazmente.  

O Brasil, em verdade, tardou para tratar do assunto. Como de praxe, o legislador parece ter aguardado a ocorrência de diversas situações trágicas para, então, tomar medidas de proteção para as vítimas - no caso, mulheres. 

Foi assim, inclusive, que surgiu a primeira lei no ordenamento jurídico interno, que tratou, de modo extenso e específico, sobre a violência contra a mulher - a chamada Lei Maria da Penha (lei 11.340/06), inspirada, se é que assim pode-se dizer, em uma mulher que foi alvo, duas vezes, de tentativa de homicídio por seu ex-marido.

Desse modo, apenas em 2006, o legislador brasileiro inaugurou a aplicação de medidas visando coibir a referida violência de gênero. Ainda que tardiamente, outras diversas ações vêm sendo adotadas, no decorrer do tempo, com o mesmo intuito - coibir e punir, de forma mais severa e eficaz, a violência contra as mulheres.

Nesse sentido, a lei 13.718/18, por exemplo, trouxe mudanças significativas ao ordenamento jurídico brasileiro - foi a responsável por alterar a natureza da ação penal do crime de estupro, que antes era pública condicionada a representação e passou a ser pública incondicionada. Também coube à referida Lei a tipificação dos crimes de importunação sexual (artigo 215-A do Código Penal) e o delito de divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia (artigo 218-C do Código Penal) e, finalmente, também foi esta a lei responsável por estabelecer as modalidades de estupro coletivo e estupro corretivo, como causas de aumento do crime de estupro, prevista no artigo 226 do Código Penal.

Mas não é só. Outra mudança de extrema relevância na esfera penal e que também visou a proteção das mulheres, servindo como um dos mecanismos de coibir a violência contra elas, foi a recente criminalização da conduta de stalking - foco do presente artigo.

Em sua literalidade, a palavra stalking, em inglês, significa perseguição, e foi exatamente este o termo utilizado pelo legislador na tipificação do referido crime. O artigo 147-A do Código Penal, implementado pela lei 14.132/21, dispõe que é crime "perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.".

A pena cominada ao referido delito é de reclusão, de 6 meses a 2 anos, e multa. Ainda no artigo em questão, são previstas algumas situações em que a pena é aumentada em metade - destaca-se, principalmente, aquele previsto no §1º, inciso II, em que há o aumento de pena quando o crime é praticado contra mulher por razões do sexo feminino, nos termos do §2º-A do art. 121 do Código Penal.

Desse modo, entende-se o stalking ou o crime de perseguição, como um delito que exige uma perseguição reiterada por parte do autor, não consentida pela vítima e que lhe cause medo, angústia e sentimentos afins, além de repercutir diretamente na vida desta de maneiras diversas.

Embora seja um crime em que, em tese, qualquer pessoa pode figurar como vítima, tem-se que a mulher é o principal alvo nessa espécie delitiva - não é à toa que a criminalização da referida conduta era, há tempos, uma das prioridades da bancada feminina da Câmara dos Deputados. Tanto é assim que são utilizadas, como exemplo do que seria o stalking, as situações em que a mulher é perseguida por um ex-companheiro que não se conforma com o término da relação, ou quando alguém interessado por esta possui um sentimento de posse em relação à mulher e não desiste de persegui-la, dentre outras.

Dessa forma, o stalking, assim como as outras modalidades de violência em que a mulher figura como vítima, é uma prática conhecida socialmente há muito tempo, ainda que se tenha demorado a positivar a conduta como crime. No Brasil, inclusive, condutas assemelhadas à perseguição eram abarcadas pelo artigo 65 da Lei de Contravenções Penais ou, ainda, na esfera cível - o Tribunal de Justiça de São Paulo, em julgado recente anterior à criminalização da conduta especificamente, condenou um "stalker" ao pagamento de indenização para a vítima, ante a prática do chamado cyberstalking. Por meio de perseguição virtual, o autor invadiu "a esfera de privacidade de sua vítima, pelas mais variadas maneiras, promovendo a intranquilidade, fomentando o medo, difundindo infâmias e mentiras de modo a afetar a autoestima e a honra do perseguido".1

Também nos Estados Unidos o tema se mostrou de extrema relevância, de modo que foi até abordado em um seriado no streaming Netflix.  A série You, retrata, basicamente, a história de Joe, um psicopata e stalker que, nas duas temporadas da série, persegue mulheres de forma incessante, interferindo nas vidas de suas vítimas sem que elas percebam, a princípio, diante das atitudes obcecadas por ele perpetradas. O protagonista invade as redes sociais das mulheres pelas quais supostamente se apaixona; descobre onde elas moram, acompanha as vítimas em cada passo que elas dão, até conseguir envolve-las sentimentalmente e, de algum modo, controlar a vida destas. Isso se dá até o momento em que elas percebem a situação e tentam reagir - ao fazerem algo que o desagrada de algum modo, Joe opta por matá-las e/ou machuca-las de outra forma, executando pessoas próximas e, por óbvio, deixando consequências físicas e psicológicas irreparáveis às suas vítimas.

Como bem retrata o seriado, portanto, o stalking pode ser - e normalmente é - um ponto de partida para o agressor; embora configure um crime independente, as atitudes que permeiam o referido delito podem ser um meio para a prática de outros crimes contra mulher, principalmente o feminicídio.

Sendo assim, a criminalização da conduta em questão é de extrema importância e se mostra como mais uma maneira que o legislador encontrou de proteger a mulher contra a violência - no caso, desde a violência psicológica, que pode vir a causar danos imensuráveis à saúde da vítima, além de problemas no seu próprio cotidiano, trabalho, desempenho, convivência profissional e familiar, até outras formas de violência, que podem culminar em resultados nefastos e irreparáveis.

A tipificação do stalking, portanto, é um avanço significativo no combate à violência contra a mulher. Ainda que tenha demorado, o legislador brasileiro acertou em tipificar a conduta no Código Penal e, assim, buscar estabelecer mais um meio de proteção jurídica para as tantas vítimas ora existentes.

No que tange às críticas ao referido delito, por se tratar de um tipo penal muito abrangente e vago, com conceitos demasiadamente "abertos", por vezes, teremos que aguardar o posicionamento da nossa jurisprudência, a fim de descobrir quais serão as cenas dos próximos capítulos.

______________

1 Apelação Cível 1002596-16.2018.8.26.0484, 10ª Câmara de Direito Privado, Des. Rel. Ronnie Herbert Barros Soares. Julgado e publicado em 27.3.20.

Gabriela Reston Pinto Morais

Gabriela Reston Pinto Morais

Advogada. Mestranda em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP. Professora assistente de Processo Penal na PUC/SP.

Maria Carolina de Moraes Ferreira

Maria Carolina de Moraes Ferreira

Advogada. Pós-graduada em Direito Penal pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca