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Perdão X Haircut e tributação na recuperação judicial

O artigo discorre sobre diferenças entre os termos perdão e haircut e discute aspectos jurídicos ligados à natureza do artigo 50-A da LRF e da tributação do haircut na consolidação substancial.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Atualizado às 12:18

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução

A lei 14.112/20 ("Reforma") entrou em vigor no início deste ano e alterou o regime jurídico dos processos de insolvência. Com a Reforma, o conteúdo tributário da lei 11.101/05 ("LRF") aumentou significativamente e agora é possível encontrar em seu texto categorias tributárias clássicas, tais como "base de cálculo", "ganho de capital" e "lucro real". A incorporação de regras tributárias no diploma parece ser resultado de uma combinação de má-técnica legislativa com a natureza multidisciplinar dos processos de insolvência.

As questões discutidas neste artigo partem do artigo 50-A, introduzido na LRF pela Reforma. Para organizar a exposição, além desta introdução, o texto foi dividido em dois tópicos (A e B). O primeiro possui um conteúdo não-jurídico, onde arrisco compartilhar impressões de natureza antropológica sobre o perdão de dívidas. O tópico B é jurídico e abordará dois temas: (i) natureza jurídica do artigo 50-A da LRF; e (ii) a tributação do haircut na consolidação substancial.

Como foi dito, o tópico seguinte possui conteúdo antropológico. Por essa razão, caso o interesse do leitor seja estritamente jurídico, eu recomendo um haircut¹ no texto e um salto em direção ao tópico B.

A) Haircut versus Perdão de dívida. Aspectos linguísticos, religiosos e morais

Nos últimos tempos, é possível constatar uma transição no uso das palavras e do aparente predomínio do termo haircut para descrever o assunto objeto deste texto. A palavra haircut guia discussões, aparece em artigos, decisões judiciais, planos de recuperação e até na apresentação do Governo sobre as inovações da LRF. Dois pensamentos me ocorreram a partir daí.

O primeiro consiste no uso cada vez mais acentuado de expressões em inglês no meio jurídico. Na área de insolvência, além do haircut, temos o DIP Financing, cram down, equity, stay period, turnaround, watch dog e tantos outros. O futuro nos dirá se estamos diante de enriquecimento da capacidade de comunicação, o que é ótimo, ou aderência ao "american way of life", que pode ser bom ou ruim, a depender do lado que você estiver.

A segunda ideia decorre da comparação do termo haircut com o correspondente geralmente utilizado no português: o perdão. Simbolicamente, as palavras atraem elementos e sentimentos diversos. Haircut é moralmente neutra e sugere uma convergência entre o interesse do barbeiro e o do titular do cabelo. Já o perdão está ligado à ideia de pecado, culpa e benevolência. Na tradução mais fiel da Oração do Pai Nosso², o perdão aparece no seguinte contexto: "O pão nosso de cada dia nos dai hoje; E perdoa-nos as nossas dívidas como também nós perdoamos aos nossos devedores".

Traduções mais atuais da oração apresentam linguagem menos financeira e, nessa transição sutil, o bom cristão parece que passou a ser aquele que paga suas dívidas em dia, e não mais aquele que perdoa seus devedores e é perdoado. É possível notar certa similaridade entre a transição do Pai Nosso e a do vocabulário da insolvência, embora a segunda tenha adotado técnica ligeiramente diversa.  

O termo haircut normaliza a ideia do perdão de dívida³ e a blinda das contradições religiosas e morais que situação suscita. Em ambientes em que planos de recuperação são aprovados com altas taxas de deságio e prazos, o perdão sistemático de dívidas pode dar ideias perigosas para argentinos, gregos e "bárbaros" querendo passar a borracha no SPC. Nesse embate característico de formação de narrativas, o haircut engenhosamente conseguiu se colocar entre (ou além d)o perdão do Pai Nosso original e (d)o dever terreno de pagar as contas em dia.

A questão que remanesce é saber definir, se é que isso é possível, quando o não pagamento de dívida deve ser entendido como desonestidade e quando deve ser como uma questão de reciclagem social e/ou econômica.

B) Natureza do artigo 50-A da LRF e as controvérsias problemas da tributação na consolidação substancial

É consenso que o haircut gera, na contabilidade do devedor, um lançamento a crédito em conta de receita cuja contrapartida é um débito no passivo. Aumenta-se a receita, diminui-se o passivo e o resultado é um incremento no patrimônio do devedor, o que, por seu turno, gera a discussão sobre a incidência do Imposto de Renda e das contribuições sociais.

O tema foi objeto da Reforma e o novo texto legal tem a seguinte redação:

Art. 50-A. Nas hipóteses de renegociação de dívidas de pessoa jurídica no âmbito de processo de recuperação judicial, estejam as dívidas sujeitas ou não a esta, e do reconhecimento de seus efeitos nas demonstrações financeiras das sociedades, deverão ser observadas as seguintes disposições: 

I - a receita obtida pelo devedor não será computada na apuração da base de cálculo da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); 

II - o ganho obtido pelo devedor com a redução da dívida não se sujeitará ao limite percentual de que tratam os arts. 42 e 58 da lei 8.981, de 20 de janeiro de 1995, na apuração do imposto sobre a renda e da CSLL; e

De acordo com a solução dada pela Reforma, a receita decorrente do haircut não está sujeita à incidência do PIS/Cofins (inciso I). Já o ganho resultante deve ser gravado pelo IR/CSL, mas poderá ser compensado com prejuízos fiscais acumulados sem a trava dos 30% (inciso II).

Especialmente em relação ao PIS/Cofins4, a discussão que emerge consiste na natureza inovativa ou pedagógica da nova lei. Em outras palavras, a Reforma veio para introduzir uma regra de isenção do PIS/Cofins ou para reconhecer uma hipótese de não incidência5 que já existia?

A discussão é juridicamente relevante por duas razões. A primeira é óbvia e consiste na situação daquelas empresas que tiveram seus planos homologados anteriormente à vigência da nova legislação. Já a segunda decorre da circunstância de que o caput do artigo 50-A fala em "renegociação de dívidas de pessoa jurídica no âmbito de processo de recuperação judicial", o que acaba por excluir as empresas em processo de recuperação extrajudicial.

Nesse contexto, é importante lembrar que, nos últimos tempos, o procedimento de recuperação extrajudicial passou a ser mais utilizado e, se considerarmos que a Reforma criou mecanismos que podem favorecer a opção pelo caminho da recuperação extrajudicial, tudo indica que a tendência de aumento no número de casos será mantida.

Se o inciso I do artigo 50-A tiver natureza de isenção, a aplicação para as situações de recuperação extrajudicial enfrentará a barreira do disposto no art. 111, inciso II do CTN, que determina que a regra de isenção deve ser interpretada literalmente, o que tende a dificultar a aplicação extensiva.

O tema também deverá ser testado sob a perspectiva da isonomia. É que não é possível dizer que uma empresa em recuperação extrajudicial possui mais capacidade econômica do que uma que está em RJ. Em geral, a decisão por um caminho ou outro depende de vários fatores e não é correto dizer que a crise que justifica um pedido de recuperação extrajudicial é menor ou maior do que aquela que justifica uma RJ. Essa régua simplesmente não se aplica, o que gera uma dificuldade de se aceitar, sob a ótica da igualdade, a isenção do PIS/Cofins e liberação da trava dos 30% num procedimento e não no outro.

Passemos ao tema da consolidação. Em 10 de março deste ano, o portal Migalhas publicou artigo sobre a situação do passivo fiscal na consolidação substancial. A discussão partia da interpretação do artigo 69-K e §1º da LRF, que estabelecem que ativos e passivos dos devedores "serão tratados como se pertencessem a um único devedor" (caput) e que haverá a extinção "imediata de garantias fidejussórias e de créditos detidos por um devedor em face de outro" (§1º).

Os impactos tributários da nova disciplina da consolidação substancial serão diversos a depender da posição que se adote em relação às seguintes questões: com a consolidação substancial, os ativos e passivos fiscais devem também ser tratados "como se pertencessem a um mesmo devedor"? E, se positiva a resposta, qual é o limite temporal dessa suspensão da autonomia patrimonial?

Desenvolvo a ideia para demonstrar a importância dos questionamentos.

Quando estamos diante de empresa plurisocietária, especialmente em cenários de crise, é comum que as entidades compartilhem o caixa. Esse compartilhamento6 é refletido na contabilidade individual de cada pessoa jurídica por contas de ativos e passivos "entre partes relacionadas". Trata-se de relações de crédito/débito entres as entidades pertencentes ao grupo.

Essa circunstância é juridicamente relevante porque, como visto, o §1º prescreve que a "consolidação substancial acarretará a extinção imediata (...) de créditos detidos por um devedor em face de outro". Se as entidades forem analisadas de forma individual para fins fiscais, a extinção imediata que trata o comando legal provocará múltiplos haircuts intragrupo, porque os patrimônios individuais serão afetados positiva ou negativamente, a depender da posição de credora/devedora da entidade perante o grupo. O desafio que a disposição impõe decorre da circunstância de que, como regra, a tributação parte das demonstrações financeiras individuais da pessoa jurídica. Por outro lado, se considerarmos que as empresas em consolidação substancial devem ser tratadas como um único ente jurídico, inclusive para fins fiscais, a conclusão é que inexiste receita ou ganho/perda. Nesse cenário, teríamos um excepcional regime tributário que partiria de um balanço de consolidação.

Outra questão que evidencia a importância da discussão ora suscitada consiste no critério de alocação da receita resultante do haircut aprovado no plano de recuperação. Em consolidações substanciais, é bastante comum encontrar acentuados níveis de confusão patrimonial. Além disso, como visto, o §1º prescreve que as obrigações intragrupo serão extintas, o que pode aumentar o nível de confusão patrimonial. Sob essa perspectiva, é possível dizer que a interconexão e confusão patrimonial é tanto causa (artigo 69-J) como efeito da consolidação substancial, o que significa que, no meio do projeto de reestruturação, a identificação da relação dívida/entidade-devedora não é tão simples.

Esse ambiente poderá abrir as portas tanto para condutas oportunistas de contribuintes como para contestações intransigentes do Fisco. Por exemplo, o contribuinte pode procurar alocar o haircut na entidade com maior saldo de prejuízo fiscal ou distribuir a alocação de forma a consumir o prejuízo de todas as entidades com saldos daquele ativo diferido.

Conclusão

O tema da tributação do haircut nos processos de insolvência possui muitas nuances, porque a natureza do passivo e o regime tributário da pessoa jurídica podem indicar conclusões diferentes. A lei 14.112/20 encerrou parte das discussões e deu início a outras.

_______________

1. O termo haircut foi utilizado no texto propositalmente em excesso. Para entender as razões, sugiro a leitura do tópico A. 

2. Disponível aqui.

3. Sobre as contradições morais em torno do tema da dívida ver: GRAEBER, David. Debt: the first 5,000 years. Londes: Melville House, 2014.

4. A discussão pode ter também impacto no imposto de renda, especialmente em situações em que o devedor adote o regime do lucro presumido.

5. O tema da incidência do PIS/COFINS na redução de passivo possui diversas variações a depender da natureza do passivo. Considerando o escopo do presente artigo, o autor não entrará no detalhe de cada possível variação. 

6. Além do compartilhamento do caixa, outras operações podem afetar as contas ativas ou passivas entre as partes relacionadas.

Cláudio Lopes Cardoso Júnior

VIP Cláudio Lopes Cardoso Júnior

Advogado em São Paulo. Sócio da CCJ Advogados.

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