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O dilema dos contratos via Airbnb: análise a partir do artigo 112 do Código Civil no mundo das locações on demand

Há ferramentas razoáveis capazes de equacionar o desenvolvimento de novas formas de negociação cada vez mais entrelaçadas aos hábitos contemporâneos, em especial o compartilhamento.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Atualizado às 13:02

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Desembarcou em maio no Brasil a mexicana Casai oferecendo locação residencial on demand e prometendo investir 100 milhões de reais no país em seu processo de expansão, no qual pretende disponibilizar aos interessados uma experiência de moradia que une design , praticidade e tecnologia para locações de curtas ou longas temporadas1. A empresa chega para concorrer com a gigante Vitacon, que tem transformado o cenário imobiliário com gestão de locação e incorporação, tudo por intermédio de plataformas digitais, numa tentativa de atender aos novos anseios pós-modernos, que projetam no consumo parte importante da expressão da própria identidade.

Modelos como os mencionados ainda estão bastante restritos à grandes cidades, embora em franca expansão no Brasil e no mundo, além de representarem um verdadeiro upgrade ao já conhecido Airbnb e plataformas similares de aproximação para negócios.

A despeito deste incontornável movimento, no último mês de abril, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos, decidiu que convenções de condomínio com destinação residencial podem proibir a disponibilização de apartamentos por via do aplicativo Airbnb, tratando-se, na hipótese, de contrato atípico de hospedagem2. A questão nasce controversa e toca, em princípio, dois pontos: de um lado, a disputa entre direito de vizinhança e limitações ao direito de propriedade; de outro, a divergência quanto à natureza do contrato celebrado entre proprietário do imóvel e o interessado na permanência temporária.

Há quem suscite, na linha do Min. Luis Felipe Salomão e do civilista Marco Aurélio Bezerra de Melo3, tratar-se de contrato de locação por temporada, posição com a qual reconheço aderir integralmente. De outro lado, seguindo a linha do Min. Raul Araújo e do civilista Rodrigo Toscano de Brito4, estar-se-ia diante de um contrato de hospedagem sui generis, por vislumbrar serviços que extrapolam a via locatícia imobiliária. Pois bem, sendo esta última a conclusão da maioria dos ministros da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, a finalidade do imóvel caracteriza-se por comercial e, portanto, sujeita à limitação dos condomínios de destinação residencial.

Com o devido respeito às respaldadas opiniões divergentes, a disponibilização do imóvel via aplicativos tais como Airbnb deve ser interpretada à luz do artigo 112 do Código Civil5 e, portanto exige, indispensavelmente, o conhecimento do que pretendiam as partes com o contrato celebrado, para além do sentido literal de termos que, aliás, podem nos levar a equívocos, como os traduzidos do inglês guest (hóspede) e hostess (anfitrião).

Assim, não implica, nem deveria implicar na imediata presunção de hospedagem ou contrato sui generis, a relação cujo único desvio foi ser viabilizada por plataforma digital em consonância com os hábitos cada vez mais comuns da sociedade.

Nesta medida, a tecnologia que facilita a aproximação de contratantes não parece, de per si, afastar a natureza locatícia, visto não ter como elemento essencial  nada além da disponibilização de imóvel para moradia temporária, cuja finalidade seja lazer, tratamentos de saúde, estudos ou quaisquer outras por curtos períodos de tempo em unidade mobiliada ou não, conforme o já consolidado teor do artigo 48 da lei 8.245/906, vez que a viabilização de certas amenidades é mera liberalidade do locador.

Estabelecer em sentido diverso desloca elementos da interpretação de um contrato para o sentido literal da linguagem e passa a tratar uma exceção como regra, desconsiderando a declaração extraível do negócio jurídico, para focar no meio pelo qual ele viabilizou-se. Nesta senda de raciocínio, portanto, seria possível concluir que um proprietário de imóvel em cidade litorânea estaria autorizado a alugar para temporada o apartamento, desde que pela via particular ou até por intermédio de uma imobiliária; todavia, em sentido oposto, a convenção de condomínio poderia barrá-lo, se desenvolvesse o exato mesmo negócio via Airbnb.

Em seu voto, ainda não disponibilizado na íntegra, o Min. Raul Araújo destacou alguns serviços, como a opção de lavanderia disponível, para reforçar a descaracterização da locação. Contudo, é cada vez mais comum condomínios que possuem lavanderias e até minimercados à disposição dos moradores, o que não transforma o edifício automaticamente em um espaço comercial7.

Não se trata de questionar a necessária adesão do condômino às normas previstas em convenção ou pelo regimento interno, mas de ponderar eventual abuso de direito na limitação que, para além de partir da premissa de que todo anfitrião estaria mercantilizando o imóvel ao disponibilizá-lo em plataforma digital, também desconsidera que o conteúdo da propriedade como garantia constitucional e direito fundamental incorpora a noção do adequado aproveitamento do bem imóvel e desempenho de suas funções social e econômica, sem prejuízo da propriedade como instrumento da livre iniciativa.

Ainda que o direito de vizinhança tenha caráter preventivo e não demande o risco concreto e imediato para que limitações sejam incorporadas no regramento condominial, a fim de evitar uso prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes (art. 1.336, inciso IV, do CC/028), estes não podem inviabilizar o direito do proprietário de usar, gozar e dispor livremente do bem imóvel (art. 1.2289 e 1.33510, do CC), sob pena de ofensa a direito fundamental (art. 5º, inciso XXII da CF/88)11.

Para tanto, há ferramentas razoáveis capazes de equacionar o desenvolvimento de novas formas de negociação cada vez mais entrelaçadas aos hábitos contemporâneos, em especial o compartilhamento. Ferramentas consistentes em controle de circulação, cadastro dos inquilinos temporários, estabelecimento de regras mais rígidas para o uso de áreas comuns e aplicação de sanções, como , v.g., a prevista no artigo 1.337 do Código Civil12, parecem dotadas de maior razoabilidade do que a incisiva proibição.

Como bem diria o poeta Manoel de Barros, "liberdade caça jeito". A insistência em restrições objetivas e generalistas refletem um receio com o desconhecido e podem, sim, atrasar o fomento de certas atividades, mas a revolução na forma de acessar e experimentar bens na era digital é atual e incontornável. Sobre este assunto, falaremos numa próxima, quem sabe.

___________________

1 Disponível clicando aqui. Acesso em 19 de maio de 21.

2 Até o momento da conclusão do artigo o Superior Tribunal de Justiça não havia disponibilizado o conteúdo do acórdão - REsp 1.819.075 / RS. Informações extraídas do informativo de jurisprudência do STJ

3 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Airbnb e a vida condominial: notas sobre a decisão do Superior Tribunal de Justiça. Disponível clicando aqui. Acesso em 18 de maio de 21.

4 BRITO, Rodrigo Toscano de. Contrato atípico de hospedagem realizado através de plataformas digitais e sua incompatibilidade com a destinação residencial dos condomínios edilícios. Disponível clicando aqui. Acesso em 10 de maio de 21.

5 Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.

6 Art. 48. Considera - se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel.

Parágrafo único. No caso de a locação envolver imóvel mobiliado, constará do contrato, obrigatoriamente, a descrição dos móveis e utensílios que o guarnecem, bem como o estado em que se encontram.

7 Disponível clicando aqui. Acesso em 19 de maio de 21.

8 Art. 1.336. São deveres do condômino: [...]

IV - dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.

9 Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

10 Art. 1.335. São direitos do condômino:

I - usar, fruir e livremente dispor das suas unidades;

II - usar das partes comuns, conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização dos demais compossuidores;

III - votar nas deliberações da assembléia e delas participar, estando quite.

11 A matéria faz lembrar a nunca ultrapassada lição do saudoso Professor Renan Lotufo, chamando a atenção dos alunos de que o direito deve ser interpretado pela regra e não pela exceção. A regra, pois bem, é o proprietário responsável, o condômino cumpridor de seus deveres, o respeito às regras de vizinhança e a boa-fé o sujeito de direito privado.

12 Art. 1337. O condômino, ou possuidor, que não cumpre reiteradamente com os seus deveres perante o condomínio poderá, por deliberação de três quartos dos condôminos restantes, ser constrangido a pagar multa correspondente até ao quíntuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, conforme a gravidade das faltas e a reiteração, independentemente das perdas e danos que se apurem.

Parágrafo único. O condômino ou possuidor que, por seu reiterado comportamento anti-social, gerar incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores, poderá ser constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, até ulterior deliberação da assembléia.

Danielle Portugal de Biazi

Danielle Portugal de Biazi

Doutoranda em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP. Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP (2015). Especialista em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito (2012). Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2010). Professora de Direito Civil na Faculdade de Direito da Fundação Educacional de Votuporanga - UNIFEV. Co-autora das seguintes obras jurídicas: Risco, dano e responsabilidade. Editora JusPodivm (2018). Sucessão do cônjuge, do companheiro e outras histórias. Editora Saraiva (2014).

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