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"ADPF das Favelas", letalidade policial e estado de coisas inconstitucional

Quando detectadas falhas estruturais dos poderes públicos ensejadoras de um quadro de violação massiva e sistemática de direitos fundamentais de um número significativo de pessoas - por omissão (ou ineficiência) reiterada e persistente no cumprimento dos deveres estatais de defesa e de promoção do mínimo existencial constitucionalmente tutelado.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Atualizado às 14:53

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em 16 de fevereiro de 2017, sobreveio sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenando o Estado brasileiro por falhas na prevenção, apuração e punição da violência e do uso excessivo da força em duas operações policiais que, em 1994 e 1995, resultaram em 26 homicídios na Favela Nova Brasília, situada no Complexo do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro1.

Entre as medidas de reparação arbitradas, a Corte IDH enunciou a necessidade de o país adotar providências para que o Estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência oriunda das forças de segurança, tendo, outrossim, manifestado repúdio aos denominados "autos de resistência à prisão", lavrados para registro de homicídios cometidos por agentes policiais, cuja atuação em legítima defesa é presumida em detrimento da apuração diligente e imparcial das circunstâncias das mortes de cidadãos considerados "suspeitos".

Houve, ainda, a orientação da Corte IDH no sentido da "federalização" dos processos criminais relacionados às chacinas da Favela Nova Brasília - em virtude da constatação da incúria da Polícia Civil, do Ministério Público e do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro -, a qual foi acatada pela Procuradora-Geral da República Raquel Dodge, que suscitou, em 9 de setembro de 2019, incidente de deslocamento de competência (IDC 21/RJ)2 perante o Superior Tribunal de Justiça, onde se encontra pendente de julgamento pela Terceira Seção até a presente data.

Malgrado tal condenação histórica e as medidas reparatórias recomendadas pelo tribunal constitucional transnacional3, a violência e a letalidade policiais em territórios de favelas e nas periferias não pararam de fazer vítimas no Brasil, notadamente na cidade do Rio de Janeiro, no qual crianças e adolescentes (em sua maioria negros) como Ágatha Vitória Sales Felix (8 anos)4, Jenifer Silene Gomes (11 anos)5, Kauan Peixoto (12 anos)6, Kauã Rosário (11 anos)7, Kauê Ribeiro dos Santos (12 anos)8 e Kelvin Gomes (17 anos)9 foram mortos em decorrência de operações policiais desastrosas; situação configuradora de grave ofensa a direitos humanos que, antes mesmo da sindemia de covid-1910, ensejou a propositura, pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 635/RJ), apontando lesão ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos direitos à vida, à igualdade, à segurança, à inviolabilidade do domicílio, bem como a inobservância do dever estatal de proteção prioritária de crianças e adolescentes.

Após a grande comoção provocada pela morte do adolescente João Pedro Mattos Pinto11 (14 anos) em 18 de maio de 2020 - atingido por tiro de fuzil em incursão policial ocorrida no Complexo do Salgueiro no município de São Gonçalo -, o Ministro Edson Fachin, relator da apelidada "ADPF das Favelas", determinou: "(i) que, sob pena de responsabilização civil e criminal, não se realizem operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a epidemia do COVID-19, salvo em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro -responsável pelo controle externo da atividade policial; e (ii) que, nos casos extraordinários de realização dessas operações durante a pandemia, sejam adotados cuidados excepcionais, devidamente identificados por escrito pela autoridade competente, para não colocar em risco ainda maior a população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária"12. A decisão monocrática foi referendada em 5 de agosto de 202013.

Em 18 de agosto do mesmo ano, nova decisão do Plenário estipulou outras providências cautelares, tais como a ordem de que o Estado do Rio de Janeiro oriente seus agentes de segurança e profissionais de saúde a preservarem todos os vestígios de crimes cometidos em operações policiais, de modo a evitar a remoção indevida de cadáveres sob o pretexto de suposta prestação de socorro e o descarte de peças e objetos importantes para a investigação14.

Nesse cenário, causa impacto ainda maior a recente operação realizada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro na comunidade do Jacarezinho - localizada na Zona Norte carioca -, que deixou um saldo sangrento e brutal de 28 seres humanos mortos (entre eles, um policial civil) e tem sido considerada a mais letal da história da cidade, seguida pelas chacinas do Complexo do Alemão (19 mortos em 2007) e de Senador Camará (15 mortos em 2003), segundo levantamento do Instituto Fogo Cruzado, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do G115.

A gravidade dos fatos - assim como o clamor de parcelas da sociedade nas esferas local, nacional e internacional - trouxe à tona dúvida relevante sobre o descumprimento (quiçá sistemático) da ADPF das Favelas pelas forças de segurança fluminenses, o que levou à instauração de apuração preliminar pelo Procurador-Geral da República Augusto Aras16 e a pedidos de informações endereçados ao Governador do Estado, ao Procurador-Geral de Justiça, às Polícias Civil e Militar, ao Tribunal de Justiça e à Defensoria Pública.

Diante desse contexto de violação generalizada e contínua de direitos fundamentais dos moradores de favelas, exsurge a doutrina jurisprudencial do "Estado de Coisas Inconstitucional" (ECI), formulada pela Corte Constitucional Colombiana (CCC) e adotada pelo STF, em 2015, nos autos da ADPF 347/DF17, que tratou do nefasto sistema carcerário brasileiro.

O ECI retrata uma técnica decisória mediante a qual as cortes produzem "uma norma declaratória da contradição insuportável entre texto constitucional e realidade social", ou seja, cuida-se de mecanismo procedimental que declara uma "realidade inconstitucional"18. Mas não é só. Para além do reconhecimento de grave ofensa a direitos subjetivos individuais (dimensão subjetiva), o ECI adentra o problema da garantia objetiva dos direitos fundamentais, núcleo axiológico e normativo das constituições contemporâneas, que impõe ao Estado o dever de atuar proativamente em favor de sua efetivação19.

Nessa perspectiva, quando detectadas falhas estruturais dos poderes públicos ensejadoras de um quadro de violação massiva e sistemática de direitos fundamentais de um número significativo de pessoas - por omissão (ou ineficiência) reiterada e persistente no cumprimento dos deveres estatais de defesa e de promoção do mínimo existencial constitucionalmente tutelado -, competirá às cortes ou aos juízes constitucionais utilizarem-se do ECI para declarar "a absoluta contradição entre os comandos normativos constitucionais e a realidade social" e, na sequência, expedir "ordens estruturais dirigidas a instar um amplo conjunto de órgãos e autoridades a formularem e implementarem políticas públicas voltadas à superação dessa realidade inconstitucional"20.

O ECI apresenta, portanto, conexão intrínseca com as chamadas "sentenças estruturais", caracterizadas por: (i) afetar uma ampla quantidade de pessoas; (ii) envolver várias entidades estatais responsáveis por falhas sistemáticas em políticas públicas; e (iii) implicar ordens de execução complexas, mediante as quais o juiz da causa impõe a implementação de medidas interinstitucionais coordenadas para garantir a proteção de toda a população afetada e não apenas os demandantes de um caso concreto21.

Tal técnica decisória exige uma nova forma de pensar a atuação judicial. Em vez da "esperada" postura passiva dos magistrados, o ECI reclama o exercício de um papel afirmativo e político capaz de catalisar a formulação ou o aprimoramento de políticas públicas protetivas e/ou concretizadoras de direitos fundamentais que estejam sofrendo grave e massiva vulneração22.

A legitimidade democrática e institucional desse "ativismo judicial" decorre de seu caráter "estrutural" - ante o escopo precípuo de correção das falhas estruturais causadoras ou agravadoras da violação massiva de direitos fundamentais - e "dialógico"23, por envolver a promoção de um canal de diálogo constitucional inclusivo24 e interinstitucional25, associado à concepção deliberativa de democracia, que afasta a ideia de supremacia judicial para a superação de situações concretas de bloqueios políticos e institucionais inviabilizadores da realização do mínimo existencial de parcela significativa da população.

O triste aniversário da morte do menino João Pedro (simbólico em um contexto de banalização de violência que atinge crianças e adolescentes, em sua maioria negros, moradores de favelas) e a trágica operação policial no Jacarezinho revelam, de forma indubitável, as falhas estruturais do Estado do Rio de Janeiro em promover políticas públicas de redução da letalidade policial, o que caracteriza um quadro de violação generalizada e contínua de direitos fundamentais e autoriza o STF a adotar, no âmbito da ADPF 635/RJ, a postura ativista, estrutural e dialógica própria do reconhecimento do "Estado de Coisas Inconstitucional" (ECI).

Em abril deste ano, após o encerramento de audiências públicas convocadas para subsidiar a elaboração de um plano para a redução das mortes causadas em confrontos policiais no Rio de Janeiro, o ministro Edson Fachin explicitou a nítida gravidade do problema e a percepção de que, no atual estado de coisas, "nada há de constitucional", destacando, outrossim, a urgência do cumprimento das medidas exigidas pela Corte IDH no caso Favela Nova Brasília.

Diante desse quadro de flagrante e sistemático desrespeito a vidas humanas, remanesce a esperança - "otimismo da vontade" - de que o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional que, há tantos anos, avilta a segurança pública no Rio de Janeiro e a consequente adoção do litígio estrutural resultem na construção de respostas interinstitucionais capazes de superar e transformar a situação de omissão e ineficiência dos poderes públicos, de modo a garantir, concretamente, o mínimo existencial dos moradores das favelas fluminenses que, por serem "pobres de tão pretos e pretos de tão pobres", são alvo preferencial da desumanizadora violência policial utilizada, indevidamente, como estratégia de combate à criminalidade.

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1 Clique aqui. Acesso em 17/5/21.

2 Clique aqui. Acesso em 17/5/21.

4 Clique aqui. Acesso em 17/5/21.

5 Clique aqui. Acesso em 17/5/21.

6 Clique aqui. Acesso em 17/5/21.

7 Clique aqui. Acesso em 17/5/21.

8 Clique aqui. Acesso em 17/5/21.

9 Clique aqui. Acesso em 17/5/21.

10 Clique aqui. Acesso em 17/5/21.

11 Clique aqui. Acesso em 17/5/21.

12 ADPF 635 MC-TPI/RJ, Relator Ministro Edson Fachin, DJe-142 DIVULG 8/6/20 PUBLIC 9/6/20.

13 ADPF 635 MC-TPI-Ref, Relator Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 5/8/20, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-267  DIVULG 06-11-2020  PUBLIC 9-11-20.

14 ADPF 635 MC, Relator Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 18/8/20, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-254 DIVULG 20-10-2020 PUBLIC 21-10-20.

15 Clique aqui. Acesso em 15/5/21.

16 Clique aqui.

17 ADPF 347 MC/DF, Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016.

18 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de coisas inconstitucional. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 192.

19 HERNÁNDEZ, Clara Inés Vargas. La Garantía de la dimensión objetiva de los derechos fundamentales y labor del juez constitucional colombiano em sede de acción de tutela: el llamado "estado de cosas inconstitucional". Revista del Centro de Estudios Constitucionales. Ano 1, N. 1, Universidad de Talca, Chile, 2003. p. 212.

20 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Op. Cit., p. 193-194.

21 GARAVITO, César Rodríguez; FRANCO, Diana Rodríguez. Cortes y cambio social - como la Corte Constitucional transformó el desplazamiento forzado em Colombia. Bogotá: Centro de Estudios de Derecho, Justicia e Sociedad, Dejusticia, 2010, p. 16.

22 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Op. Cit., p. 195.

23 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Op. Cit., p. 225-254.

24 GARGARELLA, Roberto. O novo constitucionalismo dialógico, frente ao sistema de freios e contrapesos. In: VIEIRA, José Ribas; LACOMBE, Margarida; LEGALE, Siddharta. Jurisdição constitucional e direito constitucional internacional. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 37-75.

25 GODOY, Miguel Gualano de. Devolver a Constituição ao povo: crítica a` supremacia judicial e diálogos institucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

Ivoney Severina de Melo Pereira do Nascimento

Ivoney Severina de Melo Pereira do Nascimento

Analista judiciário do Superior Tribunal de Justiça (ocupando, atualmente, o cargo de assessora de Ministro) e mestranda em Direito, Regulação e Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (UnB).

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