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O "poste geral da república" e a Síndrome de Bartleby

A omissão do PGR provoca uma falha grave no sistema acusatório brasileiro.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Atualizado às 17:44

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O escritor americano Herman Melville (1819-1891), autor de Moby Dick, sua obra mais famosa, é também autor de Bartleby, o escrevente, um conto pouco conhecido. Nesse conto, o melancólico Bartleby trabalha em um escritório de advocacia em Wall Street, como escrevente, inicialmente ativo, sendo tomado depois por uma paralisia encantatória que o impede de fazer quaisquer serviços. Cada dia mais circunspecto e sem apetência para a execução das tarefas designadas pelo patrão, às determinações respondia sempre: "Eu preferia não fazer!" (I would prefer not to).

Esta pulsão negativa, o desinteresse, o não fazer nada, recebeu o diagnóstico no meio literário como a "Síndrome de Bartleby", por parêmia ao escrevente preguiçoso. No conto, Bartleby vive sempre na penumbra, inapetente ao cargo e relutante ao cumprimento do seu ofício. Seu rosto fletia uma permanente tristeza. No original está registrado: "Ainda posso ver-lhe as feições - sua fragilidade asseada, sua miséria apresentável, sua ruina insondável! Era Bartleby." ("I can see that figure now - pallidly neat, pitiably respectable, incurably forlorn! It was Bartleby." ).

O escrevente, para passar despercebida a sua inatividade, se postava atrás de um biombo,. Ele chega a dizer "I would prefer to be left alone here" (Eu preferiria que me deixassem sozinho aqui, sendo que este "aqui" era atrás do biombo). De tão amorfo e sem motivação, Bartleby era um morto-vivo. O personagem parecia traduzir nas feições a célebre frase do escritor Albert Camus: "os homens morrem e não são felizes".

Pois bem. Transpondo os umbrais da mítica literária, o personagem de Melville pode ser comparado atualmente com o nosso Procurador-Geral da República, Dr. Augusto Aras. Tem ele demonstrado uma letárgica inapetência para o desiderato do seu cargo e desidiosa omissão no cumprimento das atribuições funcionais instituídas pela Constituição Federal, simbolicamente o seu "patrão", especialmente quando se trata de apurar os crimes cometidos por integrantes do governo ou apoiadores de Bolsonaro. Adestra-se à cômoda posição da não-investigação.

O professor de Direito Constitucional da USP  Conrado Hubner Mendes, em artigo recente no jornal Folha de São Paulo, chamou Augusto Aras de "Poste Geral da República" e "servo do presidente", por ter "engavetado investigações criminais contra Damares por agressão a governadores; contra o Ministro Heleno por ameaça ao STF; contra a Deputada Carla Zambelli por tráfico de influência; contra Eduardo Bolsonaro por subversão da ordem política ao sugerir golpe". Por isso, integraria "o bando servil".

No ano passado, Augusto Aras pediu o arquivamento de investigações contra o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Também a seu pedido, o Ministro Dias Toffoli do STF mandou arquivar três inquéritos abertos com base no acordo de delação premiada fechado pela Polícia Federal com o ex-governador do Rio Sérgio Cabral. Os inquéritos, que tramitavam em sigilo no Supremo, tinham como alvos ministros do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas da União. Na decisão mais recente, no início deste mês, Aras não quis investigar o pagamento de dinheiro para a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, por Fabrício Queiroz, pivô do esquema de rachadinhas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro.

Assim como Bartleby, Augusto Aras tem adotado o mantra: "Eu preferia não fazer!" (I would prefer not to). Há quem enxergue nessa ergofobia o seu desejo de ser indicado pelo presidente Bolsonaro ao cargo de Ministro do Supremo Federal, ou, minimamente, a sua recondução ao cargo de Procurador-Geral, em mais um mandato de dois anos.

A omissão do PGR provoca uma falha grave no sistema acusatório brasileiro. Nesta última semana, pensa-se que dado o fato de Aras sempre pedir o arquivamento de investigações, o Ministro Alexandre de Moraes não comunicou à Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a operação contra o Ministro Ricardo Salles. A opção de deixar Aras de fora do assunto, deixou exposta certa desconfiança sobre a atuação do PGR.

Volta-se à Bartleby...O filosofo Gilles Deleuze fez uma releitura da obra de Melville. Para ele, o advogado que contrata o escrevente Bartleby tenciona colocar-lhe numa posição de devedor permanente, por saber que ele não tinha referencias objetivas para o cargo. No dizer do filósofo, "Pode-se supor que a contratação de Bartleby foi uma espécie de pacto, como se o advogado, depois de sua promoção, tivesse decidido converter esse personagem, sem referências objetivas, num homem de confiança que lhe deveria tudo. Quer fazer dele o seu homem." É bem possível que o Presidente Bolsonaro ao nomear Augusto Aras fora da lista tríplice, ou, ao lhe sinalizar com a possibilidade de sua indicação como ministro do STF, queira lhe converter à condição diminuta de "homem de confiança que lhe deveria tudo."

O final do conto de Melville traz a narrativa de que Bartleby fora demitido e, sem dinheiro, é preso pelo não pagamento do aluguel. Em visita à prisão, o ex-patrão do escrevente dá dinheiro ao cozinheiro ("cara-da-boia") para que este prepare comida diferenciada para o preso. Quando o jantar é oferecido a Bartleby, a resposta é dura e direta: "Prefiro não jantar hoje" (I prefer not dine today). Alguns dias depois o narrador-patrão volta a visitar Bartleby e o encontra morto ao pé do muro, de inanição. Por comparação à realidade, se for intenção do Presidente servir-se da fidelidade funcional de Aras em troca de uma nomeação para o STF, convém a ele, como prova de sua grandeza pessoal e em defesa da instituição que hoje representa, dar a mesma resposta de Bartleby: "Prefiro não jantar hoje!". Melhor morrer de inanição do que de vergonha.

Marcos Araújo

Marcos Araújo

Professor Assistente da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mestre e Doutorando em Direito Constitucional. Membro do Instituto dos Advogados do Brasil. Associado da Associação dos Advogados de São Paulo - AASP. Professor da Pós-Graduação no Curso de Direito da Universidade Potiguar. Criador do programa estadual "OAB VAI À ESCOLA".

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