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A revisão da coisa julgada lastreada em precedente

Possibilidade de revisão da coisa julgada incidente sobre contratos de previdência complementar, por força da alteração do estado de direito corolário da edição de precedente de Corte Superior.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Atualizado às 16:08

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

- Introdução.

O contrato de previdência complementar é um dos exemplos mais pronunciados de relação de trato sucessivo, não raro podendo contemplar um século de duração, desde a primeira contribuição do participante ao plano, no início de seu vínculo laboral, até o adimplemento da última prestação à pensionista.

Partindo-se da natureza de longuíssima duração dessa espécie de contrato, repousa ínsito o caráter dinâmico das estipulações emanado da necessidade de reavaliação periódica dos cálculos atuariais, segundo o plano de custeio, estribado, em sede geral, na teoria da imprevisão - artigo 478 e seguintes do Código Civil; e, em particular, na norma do artigo 17 da LC 109/01. No cerne de aludidas inferências, erige-se a reciprocidade das obrigações (sinalagma contratual), notadamente a correlação entre prestação e contraprestação.

Havendo predisposição do contrato a variações decorrentes de fatores conjunturais e estruturais, nesse contexto se inserem eventuais intervenções judiciais que venham a influir sobre aludidos pactos. Exsurge daí instituto autorizativo da revisão dos efeitos da coisa julgada, na hipótese de alteração no estado de fato ou de direito, de acordo com a norma do art. 505, I do Código de Processo Civil. O atual CPC, aliás, não inovou acerca da matéria, apenas reproduzindo a previsão do art. 471, I do CPC/73. Entrementes, ostenta peculiar relevância o fato de o novo CPC se balizar em um sistema de precedentes e seus ecoantes efeitos normativos.

- Exceção à intangibilidade da coisa julgada.

Sabendo-se que o contrato previdenciário está infenso a adaptações resultantes da evolução dos cálculos atuariais, as decisões judiciais supervenientes se imbricam em tais avenças e se sujeitam, ainda com maior ênfase, à norma autorizadora da revisão com base em eventual modificação de fato ou de direito.

Conforme preconiza a doutrina, reconhecendo-se a cláusula rebus sic standibus afixada em tais avenças, "A sentença que regula relações jurídicas permanentes e sucessivas contém uma cláusula rebus sic standibus: havendo modificação superveniente no estado de fato ou de direito, é lícito rever o quanto se decidiu" (DIDIER JR., 2018:636). Isso porque o art. 505, I, CPC prevê que a revisão, no caso, constitui exceção à soberania da coisa julgada ("Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo: I - se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão"). Cuida-se, assim, de mitigação da regra geral de intangibilidade da coisa julgada, para o específico caso de relações de trato sucessivo, dotadas de cláusula rebus sic standibus, ex vi artigo 478 do Código Civil, diante da superveniência de alteração no quadro fático ou jurídico.

Assim, enquanto aspectos processuais previamente examinados estão cobertos pela eficácia preclusiva da coisa julgada, o direito material contemplado por relação jurídica de trato sucessivo não se sujeita ao mesmo óbice, mormente pelo conteúdo variável do contrato abordado, que mesmo antes de qualquer intervenção judicial já se encontrava presente. Afinal, "a eficácia preclusiva só atinge aquilo que foi deduzido ou poderia ter sido deduzido pela parte à época da decisão" (Id.). É certo, então, que: "Todas as posteriores alterações na configuração dos efeitos jurídicos declarados, não são atingidas pelo caso julgado" (PORTO, 2011:87).

Releva assinalar, aqui, a distinção entre coisa julgada formal e coisa julgada substancial. A primeira hipótese "não obsta a que, em processo posterior, mudado o estado de coisas que se teve em consideração no momento de decidir, a coisa julgada possa ser modificada". No segundo caso, "A eficácia plena da coisa julgada só se obtém quando se haja operado a extinção de todas as possibilidades processuais de revisão da sentença, quer no próprio feito [...] quer em qualquer outro feito" (COUTURE, 2008:241). Em outras palavras, algumas relações jurídicas, dentre as quais as de trato continuado, seja o pacto de locação, a prestação alimentícia ou a previdência complementar, verão a intangibilidade da coisa julgada se operar meramente no plano formal.

Seguindo a lógica preconizada, já se decidiu: "a sentença leva em consideração as circunstâncias de fato e de direito que se apresentam no momento da sua prolação. Tratando-se de relação jurídica de trato continuado, a eficácia temporal da sentença permanece enquanto se mantiverem inalterados esses pressupostos fáticos e jurídicos que lhe serviram de suporte (cláusula rebus sic stantibus)" (MS 11.045/DF, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, Corte Especial, julgado em 3/2/10, DJe 25/2/10). Como se vislumbra, cuida-se de acórdão exarado pela Corte Especial do STJ, acerca de relação de trato continuado, cuja celeuma de fundo se refere à cessação de vantagem a servidor em função de mudança estatutária.

O aresto acima mencionado bem ilustra que a causa de pedir da demanda de revisão decorre de fato posterior - alteração do estado de direito - que, tanto não atinge o passado, quanto projeta efeitos futuros, quer dizer, "A nova sentença terá, portanto, natureza constitutiva com eficácia ex nunc, provocando a modificação ou a extinção da relação jurídica afirmada na primitiva demanda" (ZAVASCKI, 2011:11). Além disso, há evidente distinção entre os pedidos da demanda anterior (vantagem adicional) e o pleito de revisão (aplicação de nova ordem normativa), não se configurando a tríplice identidade ensejadora do óbice da coisa julgada.

Não obstante, a Súmula 239 da Corte Suprema já abriu caminho nesse sentido, prevendo: "Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores"; em típico caso envolvendo obrigação de trato continuado objeto de alteração superveniente no campo do direito material.

Logo, a norma do art. 505, I, CPC admite exceção à intangibilidade da coisa julgada, viabilizando incursionar no direito material de trato sucessivo, sujeito à mutação decorrente de fatores exógenos e endógenos ao pacto, hipótese em que a eficácia preclusiva se limita à seara formal. Aludida exceção à intangibilidade da coisa julgada pressupõe excepcional concorrência de dois requisitos, a saber: (A) relação contratual de trato sucessivo; e (B) alteração do estado de fato ou direito.

- Alteração do estado de direito em razão de precedente.

O contrato previdenciário foi alvo de escrutínio pelo Judiciário ao longo das últimas décadas, tendo-se cristalizado a interpretação no sentido de vedar a integração de vantagens extra-regulamentares aos benefícios concedidos, em decorrência da norma do art. 3º, parágrafo único da LC 108/01 (Os reajustes dos benefícios em manutenção serão efetuados de acordo com critérios estabelecidos nos regulamentos dos planos de benefícios, vedado o repasse de ganhos de produtividade, abono e vantagens de qualquer natureza para tais benefícios).

A interdição do repasse de acréscimos de qualquer natureza alcançou a pacificação a partir do julgamento dos Temas Repetitivos 539 e 540, pelo Superior Tribunal de Justiça, através do seguinte enunciado: "O auxílio cesta-alimentação, parcela concedida a título indenizatório aos empregados em atividade mediante convenção coletiva de trabalho, não se incorpora aos proventos de complementação de aposentadoria pagos por entidade fechada de previdência privada" (REsp 1.207.071/RJ, Rel. Minª. MARIA ISABEL GALLOTTI, Segunda Seção, julgado em 27/6/12, DJe 8/8/12). Entretanto, prestações decorrentes de julgados anteriores continuaram a ser pagas e a acentuar desequilíbrios em planos de benefícios de entidades de previdência, em razão do descompasso entre as receitas e os pagamentos. Aludidas decisões não estariam sujeitas a reexame caso não se encontrassem inseridas em relação de trato sucessivo objeto de modificação no estado de direito, notadamente a edição do precedente com caráter normativo acima mencionado.

Impõe-se observar, em se tratando de relação de trato continuado, mormente de contrato previdenciário, que a alteração de caráter normativo se dá sobre um regime jurídico, ou seja, "não se está referindo apenas a um específico fato jurídico que teve seu julgamento diverso dos demais, mas à norma jurídica concreta que irá reger as relações futuras, quiçá para sempre. Se a existência de decisões contraditórias em um Estado democrático que pretende que todos os cidadãos sejam iguais perante o Direito já é algo nefasto, a preocupação se potencializa quando tais decisões possuem eficácia prospectiva" (OLIVEIRA, 2015:157). Evidentemente, gera-se indesejável quadro de desequilíbrio entre associados de um determinado programa contratual, alguns agraciados com vantagens posteriormente vedadas por precedente, uma vez que autoriza diferentes tratamentos a aderentes formalmente regidos pelo mesmo estatuto.

Os ruidosos efeitos da incongruência gerada pelo choque entre precedente e a coisa julgada obsoleta, no exato caso de relações que se desdobram no tempo, aliás, foram magistralmente realçados pelo saudoso Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI: "Os efeitos da ofensa ao princípio da igualdade se manifestam de modo especialmente nocivos em sentenças sobre relações jurídicas de trato continuado: considerada a eficácia prospectiva inerente a essas sentenças, em lugar da igualdade, é a desigualdade que, em casos tais, assume caráter de estabilidade e de continuidade, criando situações discriminatórias permanentes, absolutamente intoleráveis inclusive sob o aspecto social e econômico. [...] a doutrina [...] contrária à orientação do STJ, está na contramão do movimento evolutivo do direito brasileiro, que caminha no sentido de realçar cada vez mais a força vinculante dos precedentes dos Tribunais Superiores" (REsp 1.063.310/BA, Primeira Turma, julgado em 7/8/8, DJe 20/8/8). Ou seja, o próprio fundamento - isonomia -, que norteou a vetusta concessão de vantagem, atualmente milita em sentido diametralmente oposto.

A edição de precedente, no caso vedando a concessão de vantagem em contrato sucessivo, se revela como alteração no estado de direito, mormente por ser reconhecido pela legislação processual a obediência compulsória dos juízos e tribunais, conforme determina o art. 927 do CPC: "Os juízes e os tribunais observarão: [...] III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos". Nesse diapasão: "o enunciado de um julgamento de tribunal a que a Constituição atribui força vinculante representa preceito geral e abstrato que deve figurar, dentro do respectivo alcance, ao lado das fontes ordinárias do direito positivo (lei e regulamentos)" (THEODORO JÚNIOR, 2017:1189).

A propósito, reconhece-se como alteração do estado de direito e seu consequente efeito normativo, a declaração de inconstitucionalidade, em controle concentrado: "a partir da data da publicação da decisão do Supremo [...] se opera uma relevante modificação do estado de direito [...] Essa modificação, embora não seja apta a desconstituir automaticamente os efeitos passados e já consumados da sentença que julgou o caso concreto, terá, certamente, influência em relação aos seus efeitos futuros" (ZAVASCKI, 2011:21). Evidentemente, pois, deflui inegável caráter normativo de precedente erigido por órgão com a última palavra na interpretação de normas de natureza infraconstitucional, no caso o Superior Tribunal de Justiça.

Nesse contexto, não sobejam dúvidas acerca da natureza normativa dos efeitos de precedentes listados no art. 927 do CPC, sendo certo, ainda, reclamarem aplicação prospectiva a relações sucessivas, inclusive sobre a coisa julgada correlacionada, como meio de garantir uniformidade do tratamento do direito vigente, porquanto "o sistema jurídico brasileiro não alberga a eficácia prospectiva (ex nunc) da coisa julgada em relação a fatos jurídicos ocorridos após a consolidação jurisprudencial (marco temporal) em sentido contrário ao julgado. Trata-se de hipótese de inaplicabilidade (ineficácia, portanto) da decisão anteriormente transitada em julgado [...] bem como de inexistência do óbice da coisa julgada [...] a consolidação jurisprudencial dos tribunais superiores em sentido contrário àquele consignado na decisão transitada em julgado constitui nítida alteração das circunstâncias jurídicas existentes quando da formação da coisa julgada, apta a obstar seus efeitos" (OLIVEIRA, 2015:193).

- Conclusão.

O contrato de previdência complementar está infenso a modificações derivadas de fatores conjunturais e estruturais, durante a sua execução. Tal característica fundamental, aliada à norma do art. 505, I do CPC (presente a natureza de trato continuado), revelam possível concluir que eventual precedente jurisprudencial constitui modificação no estado no direito material capaz de autorizar a revisão judicial e fazer cessar os efeitos prospectivos da coisa julgada.

Não obstante a possibilidade de revisão destacada na norma legal, a decisão judicial que afeta a prestação vinculada a plano de benefícios específico continua surtindo efeitos até o fim da contratualidade, inclusive aos demais aderentes alheios à coisa julgada. Assim, a pertinência da revisão da coisa julgada, em decorrência da alteração do estado de direito superveniente, milita em corrigir desequilíbrio que acomete o plano em relação a todo o universo de interessados e que não cessa enquanto não corrigida a incongruência ou ultimado o contrato.

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COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do Direito Processual Civil. Tradução de Henrique de Carvalho. Florianópolis, Conceito Editorial, 2008.

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 13ª Ed. Salvador, Juspivm, 2018.

OLIVEIRA, Paulo Mendes de. Coisa Julgada e Precedente: Limites temporais e as relações jurídicas de trato continuado. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2015.

PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil. 4ª Ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011.

THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 50ª Ed. Vol. III. Rio de Janeiro, Forense, 2017.

ZAVASCKI, Teori Albino. Coisa julgada em matéria constitucional: eficácia das sentenças nas relações jurídicas de trato continuado. In: Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001.

Josué Hoff da Costa

Josué Hoff da Costa

Advogado (BTH Adv. Associados). Especialista em Direito Civil e Mestre em Direito da Empresa.

Laura Wolff Pletsch

Laura Wolff Pletsch

é Advogada (BTH Adv. Associados). Especialista em Direito dos Contratos e Direito do Consumidor.

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