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Transferências especiais: O descontrole do orçamento obscuro no STF

A novidade trazida pela EC 105/19 pode custar a transparência e o controle de bilhões de reais.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Atualizado às 07:57

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

As transferências especiais podem entrar em breve na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF). Estabelecidas pela Emenda Constitucional 105/19, essas transferências buscam dar celeridade à execução de emendas parlamentares individuais impositivas.

Contudo, o mecanismo compromete a transparência e o controle na aplicação dos recursos, assim como a economicidade, a eficiência e a efetividade do gasto público.

As transferências especiais na lei orçamentária saltaram de R$ 621 milhões em 2020 para R$ 1,99 bilhão em 2021. O valor pode ser aumentado em até quatro vezes se o instrumento puder ser utilizado para emendas de bancada, a depender do resultado da ADIn 6786.

Na ação, questiona-se autorização, da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2021, para que emendas de bancada estadual também aloquem recursos mediante transferências especiais.

A autorização está no §1º do art. 76 da LDO 2021, que havia sido vetado porque a Constituição restringe o uso das transferências especiais às emendas individuais. Porém, o veto foi rejeitado pela grande maioria dos parlamentares e a alocação das emendas de bancada nessa modalidade aguarda manifestação do STF.

Duas são as características principais das transferências especiais. Primeiro, dispensam a celebração prévia de convênio ou qualquer outro instrumento para o repasse dos recursos. Além disso, uma vez transferidos, os recursos passam a pertencer ao ente indicado pelo parlamentar. A justificativa seria evitar gargalos e atrasos comuns nos repasses por meio daqueles instrumentos.

Na lei orçamentária anual, estão alocadas na ação "0EC2 - Transferências Especiais", sem detalhes sobre o objeto da despesa a ser realizada. Sabe-se a natureza (corrente ou de capital) e o ente que receberá os recursos. Mas não há informações que permitam identificar, por exemplo, em que área serão aplicados (saúde, educação, transporte urbano etc.) nem para que finalidade (construção de hospital, pavimentação urbana etc.).

A EC 105/2019 define algumas condições para uso dos recursos, destinadas a minimizar o impacto fiscal nos entes recebedores. Por exemplo, não podem ser considerados na receita do ente para fins de repartição nem para o cálculo dos limites de dívida e despesa com pessoal. Também não podem ser utilizados nessas despesas e pelo menos 70% dos repasses devem ser destinados a despesas de capital (investimentos e inversões financeiras).

Contudo, o texto da EC 105/19 não deixa claro se a fiscalização dessas condições cabe ao Tribunal de Contas da União (TCU) ou aos Tribunais de Contas dos Estados e dos Municípios (TC). Na PEC 48/19, que deu origem à emenda constitucional, a fiscalização da aplicação dos recursos pelos entes era atribuída ao respectivo Tribunal de Contas. Contudo, o trecho foi omitido na versão aprovada pelo Congresso Nacional.

Pelo sistema de pesos e contrapesos republicano, o Poder Legislativo é o titular do controle externo, com auxílio do Tribunal de Contas. Na Constituição, as normas que tratam da fiscalização da gestão pública conferem ao TCU jurisdição sobre recursos federais, enquanto os TC devem fiscalizar os recursos dos respectivos entes.

Ao se confrontar as transferências especiais com essa lógica, surgem questões que evidenciam a sua incoerência com o arcabouço republicano: As transferências especiais, alocadas pelo Legislativo federal, passam ao controle do Legislativo local, que não participou do processo alocativo? Pode o Tribunal de Contas do ente endereçar determinações e recomendações à União? Em caso de dano ao erário, o recurso será devolvido aos cofres da União ou do ente que recebeu a transferência?

Também é perceptível que as transferências especiais fogem do modelo de federalismo estabelecido pela Constituição de 1988. Nele, cada ente federado decide onde alocar seus próprios recursos, seguindo algumas regras gerais constitucionais, como mínimos para educação e saúde, mas sem interferências da União.

Quando descentraliza recursos próprios para estados e municípios, a União visa aumentar a capilaridade na oferta de políticas públicas e atender demandas locais que estejam relacionadas a programas e ações federais. Para garantir o uso regular, eficiente e efetivo dos recursos, a União normalmente exige projetos e acompanha/fiscaliza sua execução.

Entretanto, em prol da celeridade, as transferências especiais sacrificam esse modelo. A partir de decisões resultantes do processo político orçamentário, a União aloca recursos que, na verdade, pertencerão aos próprios entes. Para transferi-los, dispensa estudos e avaliações para o repasse do recurso.

Acontece que não há evidências de que a celeridade na descentralização de recursos da União para os entes, por si só, implica entregas mais ágeis e alinhadas ao interesse público. A exigência de projetos e planos de trabalho previamente ao repasse tem por finalidade justamente garantir a convergência dos projetos locais aos objetivos fundamentais que devem ser buscados por meio do orçamento público.

A estruturação desses documentos, pelos órgãos federais e antes do repasse de recursos, ajuda tanto entes sem capacidades institucionais1 para elaborá-los como aqueles que as têm. Isso tende a aumentar a eficiência e as chances de sucesso na aplicação dos recursos.

Ao invés de gerar atrasos, poupa tempo do ente recebedor. Na prática, as transferências especiais apenas mudam a esfera responsável pelos estudos, visto que estados, municípios e DF não estão liberados da obrigatoriedade de licitar ou de justificar a dispensa/inexigibilidade de licitação. Assim, o tempo supostamente economizado no repasse dos recursos será gasto pelo próprio ente, na elaboração de projetos, os quais não raro são de baixa qualidade.

Segundo apuração do TCU, a principal causa para paralisação de obras no país são projetos básicos deficientes. Em seguida, são apontadas a insuficiência de recursos financeiros de contrapartida de estados/municípios/DF e a dificuldade de gestão dos recursos recebidos pelos entes. As constatações estão em fiscalização julgada em 2019, realizada com dados de mais de 30 mil obras públicas financiadas com recursos federais.

Em outra auditoria, julgada em abril de 2021, o TCU apurou que uma portaria utilizada pelo Ministério do Desenvolvimento Regional para agilizar transferências de verbas aumentou o risco de dano ao erário. Publicada em 2013, a portaria foi mencionada como causa de irregularidades em diversas fiscalizações do TCU, confirmando que instrumentos de gestão que sacrifiquem a transparência e o controle violam a economicidade, a eficiência e a efetividade do gasto.

O uso de transferências especiais para alocação de emendas de bancada estadual potencializa as distorções apontadas. Além de contrariar a Constituição, o § 1º do art. 76 da LDO 2021, contestado na ADIn 6786, contraria normativo do próprio Congresso Nacional.

A resolução 1/2006-CN exige, para emendas de bancada, identificação precisa do objeto e que os projetos indicados sejam de "grande vulto" ou "estruturantes". Deixa inequívoco, portanto, que as indicações de bancada não podem dispensar planos de trabalho e projetos antes do repasse ao ente.

No último dia 15, o Ministério da Economia e a Secretaria de Governo da Presidência da República publicaram portaria com normas de execução orçamentária e financeira das transferências especiais.

A portaria evidencia a atuação limitada da União em relação a essas transferências. Na essência, são elencados os passos de uma mera transação bancária, em âmbito federal, para que os recursos cheguem à conta corrente indicada, com seu registro e notificação aos interessados (parlamentares e entes).

Contudo, as incoerências e indefinições em torno das transferências especiais demandam, no mínimo, mecanismos robustos que permitam acompanhar todo o trajeto dos recursos. Esses mecanismos já existem e são amplamente conhecidos pelos entes, como a Plataforma + Brasil, usada na execução de convênios, e as iniciativas para padronizar marcadores e indicadores contábeis e orçamentários em toda a Federação, conduzidas pela Secretaria do Tesouro Nacional.

Na análise das transferências especiais, vale lembrar uma das máximas de Willian Edwards Deming, uma das maiores referências em administração, produtividade e qualidade: "Não se gerencia o que não se mede; não se mede o que não se define; não se define o que não se entende; não há sucesso no que não se gerencia".

A novidade trazida pela EC 105/19 não ataca as causas dos problemas que atrasam ou inviabilizam empreendimentos públicos no país. Ao invés disso, pode dificultar ainda mais a sua identificação, ao comprometer a transparência e o controle dos recursos.

Ainda que desejável, a celeridade no repasse dos recursos certamente deve ser ponderada por outras premissas, em especial os preceitos fundamentais e inafastáveis de uma república federativa, constituída na forma de um Estado Democrático de Direito. A expectativa é que o julgamento da ADIn 6786 torne esses limites mais claros.

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Levantamento de Governança Pública elaborado pelo TCU em 2014/2015 apontou que cerca de metade das organizações estaduais e municipais estariam em estágio inicial de governança pública.

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*O artigo é opinião da autora e não reflete posição oficial do TCU.

 

Virgínia de Ângelis Oliveira de Paula

Virgínia de Ângelis Oliveira de Paula

Auditora Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União.

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