MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Migalhas de peso >
  4. A omissão das relações laborais na LGPD

A omissão das relações laborais na LGPD

A omissão legislativa, somada ao cristalino desequilíbrio entre as condições das partes, nas relações laborais, evidencia, ainda mais, a necessidade da adoção de estratégias inteligentes e seguras para a adequação empresarial à LGPD.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Atualizado às 08:36

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)

Desde o seu surgimento, a lei 13.708/18, Lei Geral de Proteção de Dados, mais conhecida como LGPD, impactou profundamente as mais distintas relações sociais, sendo a relação de trabalho uma das mais atingidas.

O grande mérito da lei foi inaugurar, na sociedade, uma nova cultura, com o escopo de tutelar a proteção da privacidade. Diz-se nova cultura em razão da alteração substancial do paradigma de apropriação dos dados. Antes, os dados pessoais eram repassados pelo titular - ou captados à revelia - para um terceiro, que passava a deter o domínio dos dados.

Agora, com a nova cultura imposta pela LGPD, o titular passa a ser, exclusivamente, o proprietário de todos os seus dados pessoais, e não mais quem capta ou armazena. Cabe ao titular decidir o destino dos seus dados, do início ao fim do seu tratamento.

Nesse cenário, a lei sedimentou a diretriz principiológica da autodeterminação informativa, de modo que o tratamento de dados não foi vedado, todavia, passou a ser regulamentado. O titular passou a ser o verdadeiro responsável por escolher, selecionar e dispor dos seus dados pessoais.

Na verdade, a edição da lei, no Brasil, não pode ser romantizada: a intenção do legislador brasileiro foi se adequar ao cenário internacional, eis que, no contexto da Revolução Informacional, a proteção dos dados pessoais passou a ser a âncora das economias capitalistas mundiais.

Desde o início da nova Quarta Revolução Industrial, como pontuado por Klaus Schwab, a sociedade passou a ser impactada pela inserção de inovações tecnológicas diversas, tais como a inteligência artificial, a inteligência das coisas, os nanosensores, o big data, a impressora 3D, dentre outras. As novas tecnologias de informação (TIs) permutaram a realidade da vivência social, já que promoveram a formação de uma verdadeira economia capitalista global e firmaram a existência de sociedades interligadas, em rede, como delineia Manuel Castells.

A utilização das mais diversas técnicas automatizadas, através dos mecanismos próprios da Revolução Informacional, possibilitou o sequestro de dados pessoais e sensíveis para o soerguimento de perfis individuais, os quais passaram, por sua vez, a basearem a tomada de decisões econômicas, políticas e sociais, em cenário internacional. Assim, na nova sociedade informacional, os dados pessoais estavam sendo cada vez mais utilizados para finalidades econômicas alheias ao conhecimento dos titulares.

A captação de dados pelo algoritmo de redes sociais, por exemplo, revela contornos inimagináveis da usurpação dos dados para a fabricação de um perfil econômico do seu titular como um potencial consumidor. Portanto, fazia-se emergente tutelar não somente os dados pessoais em si, mas o indivíduo portador.

Por essa razão, foi iniciada, no mundo, uma urgente corrida para a proteção dos dados pessoais, considerado o verdadeiro "petróleo" da nova sociedade informacional.

O grande iniciar dessa corrida foi firmado em 2018, quando foi editado, pela União Europeia, o Regulamento Geral de Proteção de Dados, com o intuito de regulamentar os dados pessoais. O RGPD representa verdadeiro marco da proteção de dados pessoais, tendo exercido notória influência para a produção legislativa dos mais distintos países, inclusive ao Brasil.

Sem quaisquer dúvidas, a LGPD reflete diretamente muitos pontos abordados pelo RGPD europeu. Todavia, a problemática surge quando verifica-se que a LGPD não tratou, de forma específica, da proteção dos dados pessoais no âmbito das relações de trabalho, tal como fez o Regulamento Europeu e as leis de proteção editadas em Portugal e na Espanha, por exemplo.

Apesar de ser silente quanto à matéria, é cediço que a LGPD se aplica às relações laborais. Todavia, a ausência de regulamentação específica traz à tona uma onda de insegurança jurídica para as partes que celebram o contrato individual de trabalho. Aliás, a insegurança jurídica é perceptível antes mesmo do pacto laboral: a etapa pré-contratual, para seleção de candidatos aos postos de trabalho, depende, obrigatoriamente, da captação de diversos dados pessoais e, em determinados programas, de dados sensíveis.

O obstáculo se torna ainda maior em razão da natureza das relações de trabalho. É dizer, o cenário desafiador da hipossuficiência do trabalhador versus o poder disciplinar do empregador evidencia que a regulamentação genérica, ampla e indiferenciada acarreta diversas controvérsias. Como exemplo, por mera amostragem, há correntes que defendem que o consentimento do trabalhador, titular dos dados pessoais, não pode se limitar unicamente ao consentimento definido pela lei como "livre, informado e inequívoco", já que, por ser subordinado ao empregador, o consentimento sempre será compulsório, especialmente por não ser permitida a discussão das cláusulas do pacto laboral pela figura hipossuficiente da relação.

Assim, as partes da relação de trabalho se deparam com uma linha tênue entre o direito à privacidade do obreiro e o direito à propriedade do empregador, eis que o poder fiscalizador é necessário, em diversas ocasiões, para a gerência da atividade empresarial, ao passo em que a privacidade é direito inquestionável do trabalhador.

O vácuo legislativo impacta, ainda, na tomada de decisões pelo empregador. A necessidade de assegurar o consentimento informado, determinado pela lei, por exemplo, acarretará na necessidade de perpetuar o conhecimento do trabalhador quanto ao direcionamento dos seus dados pessoais e sensíveis. Faz-se imperioso materializar a informação do trabalhador quanto aos novos procedimentos adotados na empresa, para atender a finalidade, a necessidade e a adequação na coleta daquele dado.

Como algumas das possíveis soluções para sanar a lacuna normativa, destacam-se a elaboração de um regulamento interno, a celebração de Acordos Coletivos de Trabalho com sindicatos e a constituição de uma comissão para perpetuar o conhecimento do tratamento dos dados aos trabalhadores.

Dada a natureza destoante das relações de trabalho, a mera reformulação dos processos de fluxo de dados não se revela suficiente para a implementação correta da LGPD, já que a prevenção e a necessidade de prestação de contas, estabelecidas pela lei, impõem ao empregador um ônus imprescindível para o processamento seguro dos dados pessoais que controla e opera.

Assim, a omissão legislativa, somada ao cristalino desequilíbrio entre as condições das partes, nas relações laborais, evidencia, ainda mais, a necessidade da adoção de estratégias inteligentes e seguras para a adequação empresarial à LGPD.

Aline Pires Gomes

Aline Pires Gomes

Advogada da área trabalhista de Renato Melquíades Advocacia.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca