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A cidade do Direito

O gozo efetivo desse conjunto de serviços - tornados direitos pela CF - é que compõe o direito à cidade.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Atualizado às 17:23

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Num livro considerado à época "desconcertante", publicado originalmente em 1980 - e chamado Analyse social de la ville -, H. Reichert e J. D. Remond analisam a cidade na perspectiva de diferentes formações profissionais. Assim, vão falar da cidade dos geógrafos, da cidade dos arquitetos, dos sociólogos, etc, para concluírem que a cidade é um sistema complexo e aberto. Daí este "reino das potencialidades" permitir diversas visões e concepções. Os autores não falam da cidade dos advogados mas é perfeitamente possível analisar a cidade a partir da visão dos operadores do Direito. Nesse sentido, o fundamental será investigar o modelo jurídico urbano que decorre da Constituição Federal, ou seja, a chamada "constituição urbanística". Assim, me parece que de tal análise será possível concluir que a cidade dos advogados revela o "sonho acordado" de que ela atenda três requisitos fundamentais que são, antes, linhas de um programa unidirecional - ela:

a) precisa garantir o direito à cidade;

b) deve ter uma adequada ordenação do solo, promovida pelo Poder Público; e

c) não pode ser uma cidade do capital ou para o capital.

Tentarei explicar cada um deles que, evidentemente, se relacionam porque o direito à cidade exige a ordenação e limita a atuação do capital.

Difundida a partir da obra clássica de H. Lefébvre (1968), a expressão "direito à cidade" parece, muitas vezes, mais uma fórmula retórica que efetiva, uma "palavra de ordem" que marca posição contra as injustiças sociais transformadas em "injustiças espaciais". Porém, com a da Constituição Federal de 1988 é possível dar-lhe um conteúdo concreto, operacional: garantir o direito à cidade é garantir os direitos sociais na cidade. A CF elenca no art. 6º diversos direitos sociais, muitos de natureza "urbana", como por exemplo, o direito à habitação, ao transporte, ao lazer. Mas não é só. O texto diz: "são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados". A garantia do direito à cidade envolve a efetiva disponibilização desses direitos todos, que se traduzem em serviços públicos acessíveis e universais. Assim, o direito à habitação envolve não só a construção da edificação em si como também o acesso aos serviços públicos de saneamento urbano, à infraestrutura urbana como um todo, além de outros como o transporte em condições adequadas. O gozo efetivo desse conjunto de serviços - tornados direitos pela CF - é que compõe o direito à cidade.

De outro lado, a cidade dos advogados precisa ter uma ordenação adequada, que faça o interesse público prevalecer sobre os interesses privados dos proprietários imobiliários. Na cidade, não cabe imaginar que uma mão invisível vai organizar o sistema. Não vai: o plano é que fará isso. É preciso, pois, que o Poder Público promova o planejamento da ocupação, do uso e do parcelamento do solo urbano para que a função social da propriedade e da cidade seja verificada. E quem deve isso é o ente municipal na forma do disposto no art. 30/VIII da CF. Essa ordenação é matéria do chamado Plano Urbanístico Diretor que é uma lei municipal diferente das outras por 3 motivos: a) exige motivação técnica (as decisões não podem ser tomadas de modo arbitrário, sem fundamentação); b) depende de discussão com a população em debates e audiências públicas para tornar-se uma "causa compartilhada"; e c) é composta por normas e por cartas que, reunidas, explicitam as diretrizes urbanísticas adotadas.

Portanto, falar-se em ordenação adequada do território urbano é falar-se em plano diretor que é uma lei municipal, sim, mas com características muito próprias. Como já registrou o Tribunal de Justiça de São Paulo, em maio de 2021:

"A natureza, o caráter, objetivos e importância do Plano Diretor para o desenvolvimento da cidade, reclamam procedimento legislativo complexo, exigente da participação direta de profissionais das variadas áreas da vida urbana, sobre que vai atuar" (ADI 2120876-52.2020.8.26.0000).

Por fim, a cidade dos advogados não é a cidade do capital no sentido - inverso - de que a Constituição quer a punição de quem pratica a especulação imobiliária, ou seja, de quem usa a cidade para ganhar dinheiro. A cidade será um bem comum no sentido próprio do termo, que se baseia na ideia central de solidariedade. O mecanismo financeiro da especulação imobiliária é bastante conhecido e provoca deformações enormes no tecido urbano. No art. 184/§4º, a Constituição preocupou-se em punir os proprietários que deixam seus imóveis ociosos, exercendo o direito de propriedade de modo antissocial. É o caso do lote vazio, ou seja, do lote devidamente constituído, ligado à infraestrutura urbana, mas que não recebeu a urbanização secundária, a edificação. Da mesma forma, a gleba, isto é, a manutenção no espaço urbano de grandes áreas vazias e ainda não urbanizadas exatamente porque se aguarda a valorização do entorno. A Constituição ainda quer a punição do proprietário de lote subutilizado (com uma pequena edificação considerando a área dele) e, ainda mais, do lote edificado mas cuja edificação não está sendo utilizada. Este último caso será o mais importante porque indicará que o bem está sendo utilizado como reserva de valor. No entanto, é evidente que todas essas situações fáticas precisam ser comprovadas adequadamente porque outros motivos podem estar determinando a ociosidade - e podem eles ser razoáveis.

Enfim, ao contrário da cidade dos arquitetos, não é o espaço estruturado "como uma obra", ou obra acabada, tal como escrevem H. Reichert e J. D. Remond, citados de início. A cidade dos advogados, que é a cidade do Direito Urbanístico ou dos operadores em geral do Direito, constitui um campo aberto para a afirmação de direitos subjetivos uma vez que as 3 linhas da nossa "constituição urbanística", antes citadas, estão longe de ser implementadas devidamente pela maioria das cidades brasileiras. O direito à cidade não é garantido, a ordenação urbana não é promovida e a cidade é destinada a atender o capital, por exemplo, abrindo "avenidas imobiliárias" que só servem para valorizar os lotes lindeiros ou estipulando índices urbanísticos extraordinários que atendem os interesses dos proprietários e das incorporadoras na criação de solo artificial. É que, como mostrou Bernardo Secchi, na obra de mesmo nome (de 2013, publicada no Brasil em 2019), a cidade dos ricos não é a mesma cidade dos pobres - não há integração social e cultural nos loteamentos de acesso controlado, nas áreas favelizadas, nos centros degradados - e a normas urbanísticas podem agravar a desigualdade ao invés de superá-la em nome do interesse coletivo.

Em conclusão, a cidade dos advogados será, antes, de tudo, um programa de construção de direitos subjetivos a serem efetivados, concretizados, à luz do que determina a CF: a "constituição urbanística" é nitidamente programática. Em Presidente Prudente, por exemplo, os direitos urbanos não são implementados: aqui não se garante o direito à cidade (e os problemas frequentes do transporte coletivo é um exemplo vivo disso), não se promove a ordenação solo (o terrível plano diretor de 2018, fixando coeficiente de aproveitamento máximo = 8, torna isso óbvio; em São Paulo, com base no plano de 2014, é a metade disso) e não se pune ou se controla a especulação imobiliária (pelo contrário: a avenida "progresso", feita por particulares para valorização de suas terras lindeiras, será um caso evidente e deveria antes se chamar avenida "progresso pro meu bolso"). A cidade dos advogados é, pois, um projeto de cidade do futuro que depende de uma construção diuturna, permanente, para que saia do papel e ingresse na vida dos homens. Será uma terra de direitos não a serem conquistados - porque não há um sujeito passivo específico, que não será somente o Estado (tal como determina o art. 225 da CF em relação ao meio ambiente) - mas a serem construídos por todos, coletivamente.

José Roberto Fernandes Castilho

VIP José Roberto Fernandes Castilho

Professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura da FCT/Unesp.

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