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Desjudicialização da execução civil no sistema multiportas de solução de conflitos

Letícia Baddauy e Bruno Poliseli

A desjudicialização da execução no Brasil, feita em conformidade com a Constituição federal, preservado o acesso à Justiça e as garantias processuais do jurisdicionado, alinha-se à meta 9 do Poder Judiciário, de integrar a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas.

terça-feira, 29 de junho de 2021

Atualizado às 09:41

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O Código de Processo Civil de 2015 (Lei 13.105/15) expressamente instituiu no ordenamento jurídico brasileiro o sistema multiportas de solução de conflitos. Esta valiosa contribuição para a legislação do país revela uma tendência mundialmente reconhecida, segundo a qual os sujeitos parciais do processo ganham maior protagonismo no deslinde da controvérsia, através da possibilidade de escolha do método de solução de conflitos conforme as particularidades do litígio.

A criação de novos instrumentos diversificados de obtenção da tutela jurisdicional contribui, ademais, para a solução da atual crise judiciária, consequência, dentre outros fatores, da excessiva concentração de atividades sob o comando da magistratura.

O sistema da justiça multiportas consiste em um esforço e modelo para a criação de formas de solução de conflitos que não se limitem à utilização da via judicial. Trata-se de garantir ao jurisdicionado meios alternativos de persecução da tutela de seus direitos, tanto por métodos autocompositivos quanto adversariais, que podem se mostrar mais efetivos que o processo judicial heterocompositivo, dadas as especificidades do caso concreto.

Através desta garantia de diversos meios diferentes de solução de conflitos, o sistema multiportas atribui às partes maior liberdade de negociação e de influência nos termos do procedimento, uma vez que permite a submissão da disputa não somente ao juiz estatal, mas a outras instâncias idôneas, capazes de solucionar o conflito de forma mais adequada, seja em razão de maior agilidade, maior capacitação dos agentes, natureza dos litigantes etc.

O que se observa, ainda, é que o fenômeno da justiça multiportas ocorre em direção oposta a uma anterior confiança intensa depositada no poder de pacificação do Estado, exercido através do Poder Judiciário, mais especificamente pela autuação do juiz. As diversas reformas pelas quais passou o Código de Processo Civil de 1973 demonstraram a referida crença de que o juiz estatal fosse a melhor instância para solução dos litígios, vez que seus poderes foram ampliados àquela época. No Brasil, acreditou-se em "super poderes" da magistratura, no sentido anteriormente exposto. Contudo, os resultados em termos de efetividade do processo não confirmaram o investimento legislativo feito no processo mais intervencionista. A consolidação do sistema multiportas trilha caminho inverso, de modo que o papel do Poder Judiciário é redimensionado para que as partes se tornem mais participativas.

Voltando ao quadro de crise de efetividade e gargalos presentes na atividade desenvolvida pelo Poder Judiciário, seu maior exemplo pode ser encontrado no ambiente da execução forçada, cuja tramitação judicial sofre de profunda morosidade.

O relatório Justiça em Números 2020, ano base 2019, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça apontam para os seguintes preocupantes dados: 77 milhões de processos em andamento, dos quais 54% são de execução, incluídas aqui as execuções fiscais. Cerca de 13% do volume de processo em andamento referem-se a execuções civis (excluídas as fiscais), com um taxa de congestionamento de mais de 80%1. Parece não haver dúvida de que medidas para alterar este quadro precisam ser tomadas no Brasil. Não é outra a percepção do próprio CNJ, que conta inclusive com um grupo de trabalhos instituído para estudar o problema e propor soluções. Neste cenário, a desjudicialização da execução civil é assunto que ganha força.

Mesmo se reconhecendo o caráter jurisdicional da execução, não se pode afirmar necessariamente o seu monopólio nas mãos do Poder Judiciário, e tampouco nas mãos somente do Estado, uma vez que não há reserva de jurisdição no ordenamento pátrio. Tal fato se observa, por exemplo, da análise do instituto da arbitragem.

A desjudicialização da execução civil, portanto, assim como a desjudicialização da cognição, por meio da arbitragem, em conjunto com os demais meios de realização de um sistema multiportas, configura instrumento pelo qual o jurisdicionado está habilitado a perquirir a tutela satisfativa através de outros métodos que, potencialmente, poderão se mostrar mais adequados e eficientes que o Poder Judiciário. Para mais, mesmo que o escopo da execução seja diferente daquele do processo de conhecimento, nomeadamente por conta de seu fim satisfativo, isto não significa um instransponível empecilho para a desjudicialização.

É fato que o fenômeno da desjudicialização já vem ocorrendo no Brasil há algum tempo, com diversas experiências bem sucedidas (embora, em nosso entendimento, ainda subaproveitadas pela advocacia).

Além da menção já feita ao juízo arbitral, muitos procedimentos, antes estritamente judiciais, foram retirados do monopólio do Poder Judiciário, sem que tenham resultado em inconstitucionalidades. A título de elucidação, alguns dos meios desjudicializados de tutela jurídica que se destacam no sistema brasileiro são i) recuperação extrajudicial de empresas (Lei 11.101/2005, arts. 161 a 167), ii) retificação de registro de imóveis diretamente em cartório (Lei 10.931/2004), iii) usucapião extrajudicial (CPC/2015, art. 1.071), iv) divórcio consensual administrativo (CPC/2015, art. 733) e inventário por escritura pública (CPC/15, art. 610, § 1º). Para que sejam admissíveis os meios extrajudiciais, devem ser respeitados os princípios constitucionais do processo civil, em especial o contraditório e a ampla defesa.

No que se refere à execução, os destaques atuais são para os projetos de lei 6204/19 e 4257/19, de iniciativa da Senadora Soraya Thronicke e do Senador Antônio Anastasia, respectivamente. O primeiro trata da desjudicialização da execução civil entre particulares, especialmente instituindo a figura do agente de execução, a ser, nos termos do projeto, exercida pelo tabelião de protesto. O segundo, da desjudicialização da execução fiscal.

Por fim, a desjudicialização da execução no Brasil, feita em conformidade com a Constituição federal, preservado o acesso à Justiça e as garantias processuais do jurisdicionado, alinha-se à meta 9 do Poder Judiciário2, de integrar a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, adotanda-se a prevenção e desjudicialização de litígios.

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2 Clique aqui, acesso em 20 de junho de 2021

Letícia Baddauy

Letícia Baddauy

Sócia fundadora do L. Baddauy Advocacia. Professora na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Árbitra. Fellow CIArb. Diretora de Arbitragem na CAMAGRO.

Bruno Poliseli

Bruno Poliseli

Acadêmico de Direito na Universidade Estadual de Londrina (UEL).

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