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A (in)viabilidade da hipótese de tributação sobre os livros a partir da reforma tributária

Não há embasamento jurídico e econômico para as alegações do Ministério da Economia no que tange à incidência de contribuição sobre os livros.

terça-feira, 29 de junho de 2021

Atualizado às 10:33

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O atual governo federal, desde a posse, tem como um de seus principais objetivos a concretização de uma reforma tributária no país. Diante disso, foi apresentado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 3.887/2020, que traz a proposta de criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), objetivando a simplificação do sistema tributário nacional por meio da substituição dos tributos de Contribuição para o Programa de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), que há muito tem sido alvo de críticas pelos contribuintes. Ocorre que, de acordo com o Ministério da Economia, com a referida reforma, passar-se-ia a tributar a venda de livros e do papel destinado à sua impressão.

A Constituição Federal estabeleceu algumas restrições ao poder de tributar, objetivando, segundo Marcus Abraham1, proteger a segurança jurídica, a liberdade e a igualdade, e, ainda, assegurar o devido processo legal e a inafastabilidade da função jurisdicional, sendo a imunidade tributária uma das espécies de limitação ao poder de tributar, aludindo a uma exclusão do próprio poder de tributar. Trata-se de ferramenta constitucional utilizada para proteger direitos fundamentais a qual se atribui a condição de cláusula pétrea inerente às garantias fundamentais.

A alínea 'd' do inciso VI do artigo 150 da CRFB/88 estabelece a imunidade sobre os livros, jornais, periódicos e o papel destinado à impressão. O referido dispositivo, instituído inicialmente no ordenamento jurídico por iniciativa do à época Deputado Jorge Amado com intuito de imunizar exclusivamente o papel destinado à impressão, tem como objetivo a proteção da produção cultural e da liberdade. Conforme bem salientado por Luis Eduardo Schoueri, a imunidade sobre livros "decorre da confluência do dispositivo específico de indução econômica e com aquela proteção. O espectro, portanto, não pode ser equiparado aos das normas imunizantes para cuja construção concorre a Capacidade Contributiva"2.

A vedação constitucional se destinada especificamente aos impostos (espécie do gênero tributo), de modo que, para os tributos de maneira geral, não há imunidade tributária - o que se permite é a concessão de isenção tributária, que deve decorrer de lei e, ao contrário da imunidade, não configura uma limitação ao poder de tributar ou um dever de não tributar, mas o exercício da competência tributária, em que o próprio ente se isenta de cobrar determinado tributo, apesar da existência de um fato gerador e de uma obrigação tributária. Deste modo, em que pese a existência da imunidade tributária sobre os livros e periódicos, esta se refere exclusivamente aos impostos.

Considerando tal fato, com relação ao PIS/PASEP e à Cofins, as quais se pretende substituir pela CBS por meio da Reforma Tributária, o legislador, na Lei nº 10.865/2004, reduziu a zero suas alíquotas incidentes sobre a receita bruta decorrente da venda de livros. Deste modo, com a reforma tributária e a instituição da CBS, em substituição ao PIS e à COFINS, o dispositivo supracitado perderá a eficácia, já que a isenção tributária se refere a tributos que serão substituídos, de modo que, em tese, não haveria inconstitucionalidade em eventual cobrança do novo tributo sobre os livros, até que se promulgue uma nova lei instituindo a isenção tributária sobre o novo tributo.

Entretanto, em que pese a legalidade da operação de cobrança tributária quando observada a literalidade do texto constitucional, o que se esperava era a manutenção da isenção, ainda que com a substituição do Pis/Cofins, o que não é o objetivo do Ministério da Economia, que, no documento "Perguntas e Respostas sobre a CBS - Versão 2.0", elencou 3 (três) motivos para considerar plausível a cobrança dos tributos sobre os livros, sendo estes: (i) ausência de avaliações que indiquem redução do preço dos livros após a concessão da isenção e ausência de correlação entre a redução das contribuições e eventual redução do preço dos livros; (ii) famílias de baixa renda não consomem livros não-didáticos, que são consumidos em sua maioria por famílias com renda superior a 10 salários-mínimos; e (iii) escassez de recursos públicos e a possibilidade do dinheiro ser objeto de políticas focalizadas.

De acordo com o Ministério da Economia, não há indicadores de que a redução das contribuições resultou na efetiva redução do preço dos livros. Entretanto, a Fundação Instituto de Pesquisas Econômica (Fipe) realiza anualmente uma pesquisa para a Câmara Brasileira do Livro (CBL) e para o Sindicato Nacional de Editores de Livros, e os resultados evidenciam a redução do preço dos livros após a isenção das contribuições. Na pesquisa, demonstra-se que o preço médio real dos livros caiu 35% desde 2006. Conforme se verifica do gráfico abaixo, os preços constantes das obras gerais, que era de 20 reais em 2006, caiu até 12 reais em 2013, a partir do qual se manteve estável, ainda que com pequenas variações3.

Além disso, um levantamento realizado por Haroldo Ceravolo Sereza4 demonstrou, por meio de um exemplo concreto, que os dados reais corroboram com a pesquisa da Fipe: "Em abril de 2004, foi lançado o livro A Revolução dos Cravos (ed. Alameda), de Lincoln Secco, um livro de 296 páginas em formato 14 x 21 (o mais tradicional formato de livro no país) por R$ 38,60. Corrigido pelo IGP/M até novembro de 2019, o livro custaria R$ 94,93; pelo IPCA, R$ 89,41[1]. Atualmente, um livro semelhante, escrito como uma tese ou dissertação por um professor universitário, custaria bem menos. Fale com eles, de Daisy de Camargo, da mesma editora, lançado em 2019 com um tamanho 9,5% menor (268 páginas, mesmo formato), tem o preço de capa de R$ 50,00[2], um decréscimo, em termos reais, evidente. Sugiro também aos economistas que nos leem a verificação do preço do livro comparado à gasolina, à pizza e à entrada de cinema - entre outros. Quase que certamente, o livro viveu uma deflação que não se verificará, em igual proporção, com a maioria dos preços de produtos presentes no mercado, sejam eles essenciais ou não, duráveis ou não, do mercado de cultura ou não".

Diante disso, é possível concluir que os preços dos livros diminuíram com o passar dos anos e, não coincidentemente, a partir da concessão da isenção tributária sobre os livros. Em contrapartida, não há estudos que evidenciem que a referida isenção não foi benéfica para a democratização do acesso à leitura por meio da redução de preços - isto porque, de fato, na realidade, observam-se diversos benefícios a partir da concessão da isenção de Pis e de Cofins sobre os livros.

Além disso, é importante esclarecer que as isenções legais, assim como as imunidades tributárias, são instituídas com diversos objetivos além da garantia ao direito fundamental de igualdade, observando a capacidade contributiva. A isenção tributária de Pis e de Cofins sobre os livros, inserida na lei 10.865/04 pela lei 11.033/04, foi inserida na legislação por emenda do Deputado Pedro Correa sob a seguinte justificativa: "A presente proposta visa a corrigir uma grande injustiça com a educação do Brasil. Como é do conhecimento geral, grande parte do conhecimento adquirido pelos professores da sociedade brasileira em geral depende da importação de livros e periódicos, para que possamos assimilar os conhecimentos desenvolvidos externamente, sobretudo nesse mundo globalizado. Assim, a medida estabelece a isenção das contribuições para livros e periódicos, permitindo que a sociedade aufira os conhecimentos produzidos no exterior. Outra consequência e esta com efeitos imediatos, será o aumento no custo do transporte rodoviário de mercado."

Nota-se que, a princípio, o objetivo do legislador nunca foi a correção de eventual desigualdade no acesso à leitura, mas a garantia de acesso ao conhecimento produzido internacionalmente, para desenvolvimento da educação brasileira, e, em contrapartida, o aumento no custo do transporte rodoviário de mercado. Não obstante, ainda que se considere que a referida isenção foi instituída com intuito de sanar a desigualdade social no acesso à leitura, os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019 (POF) apontam que as famílias de baixa renda consomem mais livros do que as de renda superior a 10 salários-mínimos, ao contrário do que concluiu o Ministério da Economia.

Em análise aos dados do POF, Daniel Serra Lima concluiu que "45% do valor total gasto com a aquisição desses bens - ou cerca de R$ 584 milhões, em valores absolutos - são atribuíveis às famílias com renda mensal inferior a R$ 5.724,00, sendo parcela significativa (18,34% do total) imputável às famílias com renda inferior a R$ 2.862,005".  Diante disso, proporcionalmente, "as famílias com rendimentos mensais inferiores a R$ 1.908,00 são as que comprometem a maior parcela de seus orçamentos com a aquisição desses itens, que representam 0,5% das suas despesas totais. Tal percentual cai para 0,3% no recorte de famílias com renda mensal superior a R$ 23.850,00".

Dado o exposto, nota-se que o objetivo da isenção de Pis/Cofins sobre os livros não era incentivar a leitura dos indivíduos de baixa renda, e, ainda que fosse, a análise dos gastos proporcionais permitiu concluir que, na verdade, as famílias de baixa renda gastam proporcionalmente mais com livros do que as famílias com renda acima de 15 salários-mínimos, somando-se a isso o fato de que essas despesas aumentaram após a concessão da isenção, o que contraria a conclusão do Ministério da Economia de que a isenção tributária beneficia as famílias de renda elevada, quando, na verdade, traz resultados positivos com relação às famílias de baixa renda.

Por fim, com relação à alegação escassez de recursos públicos, o Ministério da Economia afirma que "a tributação dos livros permitirá que o dinheiro arrecadado possa ser objetivo de políticas focalizadas". O que se considera, portanto, é que, a partir da tributação de Pis/Pasep e de Cofins sobre os livros, o governo federal possa incentivar a leitura por meio de políticas públicas focalizadas, ou seja, redirecionando os recursos aos indivíduos de baixa renda.

Inicialmente, há de se considerar que, conforme já demonstrado, a isenção tributária não foi estabelecida visando corrigir eventual desigualdade de acesso à leitura a depender da capacidade contributiva do indivíduo, mas visando o desenvolvimento da educação nacional ao facilitar o acesso aos livros. Deste modo, considerando que a implementação de política pública focalizada se configura como um mecanismo de suposta compensação da desigualdade social, não haveria razão para sua implementação quando não é este o objetivo principal da redução dos custos decorrentes de tributação sobre os livros.

Além disso, torna-se incabível a tributação com objetivo extrafiscal de efetuação de política focalizada em se tratando de direito fundamental como o direito à educação, principalmente porque esse tipo de política aplicada a direitos fundamentais pode ser prejudicial ao desenvolvimento do país, tratando-se de uma política imediatista de intervenção precária que converte a obrigação básica e o dever estatal universalista de proteção aos direitos fundamentais em responsabilização de determinados grupos da sociedade, que seriam os garantidores da efetivação das políticas sociais voltadas ao acesso à leitura.

Vale ressaltar um dado interessante trazido pela pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas em parceria com a CBL e o SNEL, que demonstra que 47,5% dos livros adquiridos no país são didáticos, tendo como maior comprador o próprio Governo, de modo que a eventual arrecadação decorrente da oneração sobre os livros será reduzida significativamente em virtude da imunidade tributária recíproca.

Soma-se a isso o fato de que, segundo a OCDE, o Brasil tem a 14ª maior carga tributária do mundo e a maior da América Latina. A carga tributária representa 33,17% do PIB, de acordo com o levantamento realizado pelo Tesouro Nacional em 2019, sendo, desta porcentagem, sendo que as contribuições sociais de Pis/Pasep e de Cofins representam 3,98% do PIB. Diante de tamanha carga tributária, claramente a escassez de recursos públicos não está correlacionada com a arrecadação de tributos, mas com todo o sistema econômico brasileiro e com a administração dos recursos públicos.

Tendo em vista todo o exposto, compreende-se que não há embasamento jurídico e econômico para as alegações do Ministério da Economia no que tange à incidência de contribuição sobre os livros, de modo que não há, portanto, justificativas para a não manutenção da isenção tributária sobre os livros, que tanto tem contribuído para a educação brasileira.

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1 ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

2 SCHOUERI, Luis Eduardo. Direito Tributário. 8ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

3 FIPE. Desempenho real do mercado livreiro, 2018. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 21.04.2021.

4 SEREZA, Haroldo Ceravolo. O livro custa caro? Reflexões sobre preço e valor do livro. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 21.04.2021.

5 LIMA, Daniel Serra. FRANCO, Fernando Raposo. A nova CBS e a tributação dos livros: benefício para quem?. Data de Publicação: 22.09.2020. 

Eduarda Erbiste do Carmo

Eduarda Erbiste do Carmo

Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Pós-Graduanda em Direito Financeiro e Tributário pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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