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Contratos de concessão comercial: o que o caso Ford ensina sobre a boa-fé nos contratos empresariais

Os contratos comerciais, tal como os civis, sofrem necessariamente a eficácia da boa-fé, seja como parâmetro interpretativo, como limite ao exercício de posições jurídicas e como fonte de deveres adicionais de conduta.

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Atualizado às 08:13

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução

Reina no imaginário jurídico brasileiro a crença de que a boa-fé tem eficácia mitigada no campo do direito comercial. Com efeito, corrente é a afirmação de que nas relações entre "contratantes iguais", nas quais inexistem desníveis estruturais, como sói ocorrer, em regra, nas relações empresariais, a boa-fé objetiva teria importância reduzida. Com isso, busca-se, em geral, afastar o reconhecimento pelo juiz ou árbitro de deveres adicionais de conduta no caso concreto.

O discurso, porém, carece de fundamentação. O equívoco mostra-se já sob uma perspectiva histórica, pois foi no campo do direito comercial medieval que a boa-fé objetiva - tal como hoje compreendida1 - surgiu e se desenvolveu na Alemanha, penetrando posteriormente na jurisprudência do antigo Tribunal Imperial alemão (Reichsgericht) e, na sequência, no direito civil2.

A partir do direito germânico, a noção se expandiu para outros ordenamentos jurídicos, sendo recepcionada no Brasil principalmente através da obra pioneira de Clóvis do Couto e Silva3 e, no plano legislativo, no Código de Defesa do Consumidor, vez que o art. 131 do antigo Código Comercial de 1850 permaneceu letra morta durante sua vigência, como lucidamente coloca José Carlos Moreira Alves4.

Sob o aspecto sistemático, a crença também não se sustenta, pois a boa-fé, enquanto mandamento de eticidade e proteção da confiança, é princípio estruturante de todo direito, principalmente do direito obrigacional5. Longe de constituir um entrave ao funcionamento do comércio, a boa-fé objetiva - ao regular o comportamento dos agentes econômicos e tutelar as expectativas - garante previsibilidade e segurança, reduzindo os custos de transação e aumentando a eficiência do sistema.

Não por acaso os comercialistas há muito advertem que um mercado sem respeito à boa-fé e à proteção da confiança tenderia ao colapso, porque dificultaria a fluidez das relações econômicas6. A ciência jurídica ocidental alcançou aqui o point of no return: a boa-fé objetiva é a regra de ouro do comércio jurídico e o desafio agora é corrigir os desvios de sua aplicação na experiência brasileira, conferindo racionalidade e coerência à teoria da confiança, desenvolvida à partir do princípio.

De qualquer forma, o fato de haver equilíbrio (real) de forças entre os contratantes só impede - in abstracto - o surgimento de alguns deveres laterais de conduta, como informação e esclarecimento, não dispensando a exigência de deveres outros como lealdade, cooperação, diligência e sigilo, de acordo com as peculiaridades da situação concreta. Tão pouco obsta a incidência do princípio como cânone interpretativo-integrativo do negócio jurídico e como freio ao exercício de direitos, inclusive da autonomia privada e da liberdade contratual.

Temida por ser um "conceito vago", a boa-fé objetiva, como ensina com propriedade a doutrina alemã, consiste no mandamento da eticidade no comércio jurídico, desdobrando-se em dois comandos centrais: agir com retidão e ter consideração pelos interesses legítimos da contraparte, ainda quando perseguindo a satisfação de seus próprios interesses - inclusive o fim de lucro, inerente à atividade empresarial7.

Devido à função elementar de tutela da confiança no comércio jurídico, a boa-fé implica, necessariamente, limitação de conduta e equilíbrio de forças na relação jurídica (equilíbrio contratual).

É o chamado núcleo duro do conceito da boa-fé (retidão e consideração pelos interesses da contraparte) que vai guiar a aplicação do princípio em suas três funções básicas: como cânone hermenêutico máximo (art. 113, caput CC2002), como controle do exercício abusivo de posições jurídicas (art. 187 CC2002) e como fonte de deveres ético-jurídicos de conduta (art. 422 CC2002), ditos deveres laterais de conduta ou, hodiernamente, deveres de consideração (Rücksichtspflichten), a englobar uma gama de comandos jurídicos individualizáveis: lealdade, informação, esclarecimento, alerta, conselho, sigilo, proteção stricto sensu, guarda, diligência, cooperação, etc.

Nas relações obrigacionais duradouras, as quais exigem maior contato e colaboração entre as partes, a boa-fé incide de forma plena em todas as suas funções: guiando a interpretação contratual, limitando o exercício de posições jurídicas e criando deveres adicionais para os contratantes, os quais, quando violados, dão ensejo ao dever de indenizar e, em casos excepcionais, à resolução do contrato.

Dessa forma, a eficácia do princípio sobre os contratos comerciais decorre lógica e necessariamente de sua função (proteção da confiança no comércio jurídico) e posição central no sistema jurídico e no Código Civil, que, vale lembrar, regula de forma unificada o direito civil e comercial8.

Não paira, portanto, a menor dúvida acerca da eficácia da boa-fé dos arts. 113, 187 e 422 CC2002 nos contratos de concessão comercial de veículos, disciplinados pela lei 6.729/1979, conhecida como Lei Ferrari, que, enquanto diploma especial e anterior à codificação, nada disciplina sobre a boa-fé e as consequências jurídicas de sua violação. A incidência ainda mais se justifica em razão da natureza e das características da relação contratual existente entre concedente e concessionário, como adiante demonstrado.

Karina Nunes Fritz

Karina Nunes Fritz

Doutora (summa cum laude) pela Humboldt Universität de Berlim (Alemanha). Prêmio Humboldt de melhor tese de doutorado na área de Direito Civil (2018). LL.M na Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Secretária-Geral da Deutsch-lusitanische Juristenvereinigung (Associação Luso-alemã de Juristas), sediada em Berlim. Diretora Científica da Revista do Instituto Brasileiro de Estudos sobre Responsabilidade Civil (IBERC). Foi pesquisadora-visitante no Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Alemão) e bolsista do Max-Planck Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Professora, Advogada e Consultora. Facebook: Karina Nunes Fritz. Instagram: @karinanfritz15

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