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Sobre a ilegalidade da prisão de Roberto Dias, ocorrida no âmbito da CPI da Covid-19

O advogado, em qualquer arena, é profissional indispensável à administração da justiça. E, por óbvio, na CPI não deve ser diferente.

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Atualizado às 12:16

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)

No último dia 7 de julho, o Brasil assistiu a um show de abuso quando o presidente da CPI da Covid-19, senador Omar Aziz, deu voz de prisão em flagrante ao depoente Roberto Dias, ex-diretor de logística do Ministério da Saúde.

Acompanhei tal depoimento atento, durante as infindáveis/exaustivas horas de sessão, e dele, até chegar à própria voz de prisão, pude formar alguns juízos, os quais elenco abaixo:

  1. o depoente foi submetido a um tratamento desrespeitoso por alguns senadores(as), que sempre voltavam a perguntas já feitas, querendo forçar a versão de que o tal encontro não teria sido casual. Aliás, o próprio excessivo prazo a sessão, com perguntas repetidas por inúmeras vezes por parlamentares diversos, tornam duvidosa a respeitabilidade à dignidade do depoente;
  2. o depoente foi submetido a uma inquirição longa, como dito, e, nalguns momentos, ficava aparente o exercício de pressão psicológica exercida sobre o mesmo, um verdadeiro constrangimento para que a "verdade" [para alguns membros da CPI] fosse declarada, enfim, por ele;
  3. o ponto de desencontro - o fato da reunião ocasional com amigo seu e representante de empresa - já seria considerado um fato de pressão e desabonador ao depoente e, portanto, deveria levá-lo à possibilidade de calar-se ou até mesmo mentir, eis que, se acaso não fosse ocasional esse encontro, ensejaria mais desconfianças sobre o suposto pedido de propina e, assim, submete-lo consequentemente a processo criminal por corrupção passiva ou concussão, se provada a solicitação ou exigência de vantagem indevida;
  4. no Brasil não há a figura do "crime de perjúrio". Tal delito, em terras norte-americanas, se aplica de forma mais ampliada, inclusive ao investigado que mente em juízo. Aqui no Brasil, diferentemente, o investigado/acusado pode silenciar ou mesmo mentir, pois imperante a garantia fundamental da vedação à autoincriminação e o consequente dever de o órgão acusador ter de provar a prática de um crime;
  5. vale repisar, o depoente Roberto, nessas incursões feitas pela CPI para buscar elementos da suposta solicitação/exigência de propina, poderia calar-se e até mesmo mentir, pois se materializava aí sua condição de suspeito. Essa é a regra do jogo aqui no Brasil, sem contar que o próprio presidente da CPI poderia alertá-lo, quando das perguntas mais ácidas e passíveis de colocá-lo em condição de suspeito - especialmente sobre o suposto pedido de propina -, sobre a possibilidade de não responder, inclusive fazer cessar o compromisso inicialmente firmado sobre dizer a verdade, aplicável apenas àquele que esteja funcionando na qualidade de testemunha;
  6. o artigo 342 do Código Penal não contempla o suspeito/investigado/réu que mente como sujeito ativo do delito de falso testemunho, pois imperante, como dito acima, a garantia fundamental que veda a autoincriminação e, portanto, a produção de provas contra si;
  7. desde o início da sessão, o presidente da CPI, portando-se como autoridade investigadora, deveria ter informado Roberto de que qualquer pergunta que pudesse colocá-lo em suspeita poderia ensejar seu silêncio, como manda a Constituição Federal, silêncio esse que sequer poderia prejudicá-lo. E digo ainda que essa medida independeria de salvo-conduto obtido por Roberto, via habeas corpus, junto ao STF, pois se trata de obrigação, como visto, imposta pela Constituição às autoridades investigadoras, de informar o suspeito/investigado/réu sobre o exercício do direito ao silêncio. Vale lembrar que os direitos e garantias individuais se fazem presentes na Constituição e são autoaplicáveis, devendo o Poder Público respeitá-los; e
  8. a prisão, com base nesses elementos, é nula, e merece ser corrigida pelo STF, se acaso proposta medida judicial competente pela defesa de Roberto, anulando-se ainda eventual imposição e pagamento de fiança. Também pode ser nulificada pela própria autoridade coatora, em exercício de humildade e de autotutela. Essa segunda opção, pelo que ficou bem claro no fim das acaloradas discussões entre senadores de oposição e da base governista, certamente não ocorrerá.

Neste breve texto, deixo meu registro de repulsa ao que ocorrido no último dia 7. É uma repulsa, inclusive, ante o mau exemplo dado à sociedade, agredida como coletivo ao fustigar-se o fundamental e individual direito de ir e vir do depoente, pois qualquer um que sentar-se na CPI na condição de testemunha ou suspeito estará sujeito a isso, a uma ilegalidade flagrante, inclusive à sua honra e dignidade.

Também não posso deixar de registrar que os poderes investigativos previstos no §3º do artigo 58 da Constituição Federal, que são dirigidos às CPIs, típicos de autoridades judicias, se não usados de forma moderada são um verdadeiro explosivo na mão de pessoas sem o devido preparo técnico para operá-los. E não supre essa deficiência a existência de assessoria técnica qualificada, pois, ali no momento da confusão, no momento em que a autoridade operante dos poderes emite decisão, a possibilidade ou a própria ofensa à ordem jurídica pode se consubstanciar em fato quase que irremediável, de quase impossível reparação.  

Ainda, anoto que os advogados e advogadas atuantes na CPI, segundo minha percepção, sofrem com o sufocamento de suas vozes, ou mesmo com desrespeitos. Relembro o recente fato em que o senador Otto Alencar se dirigiu ao eminente advogado criminalista Alberto Zacharias Toron de forma extremamente jocosa, o que não se pode admitir. O advogado, em qualquer arena, é profissional indispensável à administração da justiça. E, por óbvio, na CPI não deve ser diferente.

É preciso que a OAB, nesse particular, inste a CPI a observar rigorosamente o quanto elencado no art. 7º da lei 8.906/94 (!). Por algumas vezes, vi o senador Marcos Rogério pontuando ao presidente da CPI que observasse as prerrogativas da advocacia, as quais, em verdade, são dirigidas à defesa dos interesses e direitos dos seus constituintes. Assim, clama-se pela plena atenção às prerrogativas dos advogados e advogadas, de modo a se manifestarem pela ordem quando assim for necessário, não serem ameaçados e orientarem seus clientes em plenitude.

Não pontuo aqui questões regimentais do Senado da República, a exemplo da seguinte situação: se a sessão da CPI, no momento da voz de prisão, já deveria ter sido interrompida ante o início plenário/Senado da ordem do dia, essa ordem de prisão tardia, por si só, seria nula. Creio que as razões supra, por si só, sejam bastantes a motivar tecnicamente minha repulsa jurídica pelo que vi ontem. Um absurdo, do qual nenhum cidadão desta República merece ser vítima!

Como costumamos ouvir por aí, "pau que dá em Chico também dá em Francisco". O ideal é que esse "pau" seja substituído pelo respeito ao ser humano, pela observância rígida aos direitos fundamentais-individuais etc. Muitas coisas equivocadas, verificadas no âmbito penal ou processual penal, ocorrem em razão dos que não sabem operar as ferramentas estatais mais drásticas. Não custa relembrar que o direito penal é remédio amargo e residual, ou seja, não pode ser usado como se fosse um instrumento qualquer.

Essa humilhação vista no dia 7 de julho de 2021, à qual foi submetida o senhor Roberto Dias, jamais será esquecida pela sociedade brasileira. Já passou da hora de repensarmos, como sociedade, em qual lugar queremos chegar.

Alessandro Ajouz

Alessandro Ajouz

É Advogado. Exerceu as funções de Advogado da Apex-Brasil e do SESCOOP-Nacional (entidades do Sistema "S") entre os anos de 2012 e 2019.

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